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REVOLTADOS namento muito herderiano do universalismo francês, "que cada es-

No documento Casanova - República Mundial das Letras (páginas 148-151)

A importação de textos

REVOLTADOS namento muito herderiano do universalismo francês, "que cada es-

trangeiro naquele país se comportasse e vestisse de acardo com seus costumes, o que acarreta que não conheçam jamais estrangeiros pro- priamente Na Alemanha, ao contrário, e para se opor à tradi- ção intelectual francesa, o princípio da fidelidade. É Herder quem escreve: "E a tradução? Em caso algum pode ser embelezada Os franceses, orgulhosos em demasia de seu gosto nacional, para tudo nele se baseiam, em vez de se adaptarem ao gosto de uma outra Mas nós, pobres alemães, em compensação, aindaprivados de público e de pátria, ainda livres da tirania de um gosto nacional, queremos ver essa época tal como ela

Ademais, a gramática comparada das línguas indo-européias, introduzida pelos lingüistas e alemães, permitia erguer as línguas germãnicas à mesma categoria de antiguidade e nobreza do latim e do grego. Colocar as línguas germânicas num bom lugar na família indo-européia e decretar a superioridade das línguas européias sobre as outras é para os lingüistas alemães proporcionar

incomparáveis de luta contra o domínio francês. Acei- tando tacitamente o fundamento da legitimidade definida pela antigui- dade linguístico-literária, os filólogos fornecem portanto armas científicas à competição nacional travada pela totalidade do espaço literário alemão. Isso não significa que um projeto coletivo de rivali- dade com a França esteja em andamento na Alemanha - embora a lucidez de todos os protagonistas dominados seja notável -, mas que a própria filologia, que fará progressos objetivos imensos no estudo das línguas e dos textos, inscreve-se em uma rivalidade constitutiva do conjunto do espaço literário e intelectual alemão no momento de sua emergência. A lingüística faz portanto a língua alemã ter acesso a uma antiguidade, a uma "literariedade" que a segundo as categorias de pensamento e as representações culturais hierárquicas do mundo - ao nível do latim. A combinação de dois modos de constituição do patrimônio literário permitirá que a Alemanha atinja com rapidez a categoria de nova potência literária européia.

50. A. W. Schlegel, der kiassischen Stuttgart, 1964, p. citado por A. Berman, p. 62.

51. Citado por A. Berman, p. 69. O grifo meu.

Além dessas importações literárias, os espaços pouco dotados cujos recursos culturais residem em sua maioria nos restos de uma civiliza- ção antiga prestigiosa (Egito, Irã, Grécia ...), e que assistiram ao con- fisco de seu patrimônio pelas grandes potências intelectuais, podem também tentar reapropriar-se de recursos próprios, em particular dos textos nacionais dos quais foram despojados. O trabalho de tradução interna, praticado por muitos intelectuais desses paises -passagem de um estado antigo aum estado moderno da nacional, traduções do grego antigo para o grego moderno, por exemplo -, é uma manei- ra de reconquistar e "nacionalizar", reivindicando a continuidade lin- güística e cultural da qual procedem, textos que todos os grandes países da Europa anexaram há muito, declarando-os universais. Por suas tra- duções inglesas de lendas populares gaélicas, Hyde contribuíra muito para o enriquecimento do espaço literário irlandês; suas traduções internas promoveram de certa forma o capital nacional nas duas línguas. Deve-se compreender no mesmo sentido a edição critica dos Can- tos de Omar Khayam -matemático, astrônomo e poeta dos séculos e da Hégira (cerca de 1050-1123 pelo escritor iraniano Sadegh Hedayat. Sua história trágica talvez resuma por si só a situação terrível dos escritores desses países que, espoliados culturalmente, são condenados a uma existência literária e excêntrica. Sadegh Hedayat, "único escritor iraniano de renome internacional", segundo seus comentadoress3, suicidou-se em Paris em 195 Estudou na Sorbonne nos anos 20, voltando depois a seu pais no inicio dos anos 40, após ter escrito na entre 1935 e 1937, a que é hoje considerada sua obra principal, La [A coruja cega], traduzida para o francês dois anos após sua mortes! o único texto da literatura moderna do Irã que se sustenta diante das obras clássicas da Pérsia, mas também diante dos grandes livros da literatura mundial deste Tradu- tor de para o persa, mas também apaixonado pela Pérsia antiga,

52. Sadegh Hedayat, edição critica, Paris, 1993.

53. M. E Sadegh Paris,

Jose 1993, p. 8.

54. Sadegh Hedayat, Paris, Jose

REVOLTADOS

viu-se entre uma modemidade literária inacessível e uma grandeza nacional desaparecida: teve "a experiência conjunta da tradição em ruína no contemporâneo e do contemporâneo por meio das ruínas da Sua análise literária e histórica dos textos de Khayam praticada com os históricos ocidentais faz-se em nome de uma restituição da obra "autêntica" contra as confusões, aproximações e erros da maio- ria dos comentadores que só anexaram à obra preocupações européias, sem nela ver nem a unidade, nem a coerência, por falta de um ponto de vista especificamente persa. Sadegh Hedayat analisa os textos nas cate- gorias ocidentais para erguer-se ao mesmo tempo contra a tradição reli- giosa de seu país e contra as imposições da tradição filológica alemã, entre outras, que se apoderara dos comentários e legítimos da obra de despojando assim o espaço iraniano de um dos clássicos que poderia valorizar no mercado literário internacional.

O trabalho do escritor sul-africano Mazizi Kunene, que traduziu para o inglês epopéias zulus que ele próprio transcrevera, procede do mesmo mecanismo. Essas traduções internas são, para os escritores das "pequenas" nações, uma das maneiras de reunir os recursos literá- rios disponíveis.

Todas essas estratégias visam constituir um patrimônio literário, ou seja, encontrar meios de "ganhar", "recuperar", "tomar" ou "recobrar" o tempo "perdido". De fato, é do ponto de vista da antiguidade que a relação de força é mais desfavorável. Anobreza literária depende estrei- tamente da antiguidade na qual se arraigam as genealogias literárias.

Por isso, a "batalha pela antiguidade" (ou, o que dá no mesmo nas sociedades cuja história foi de certa forma interrompida ou suspensa, 56. p. 35.

57. Houve uma primeira alemã em 1818 pelo austríaco

em seguida. uma versão francesa assinada por intérprete da embaixada da França na em prosa de 1857, comentada por Gautier e Renan. de Khayam no Ocidente data de 1859, com uma versão inglesa de 75 quadras assinada por Edward Essa coletânea teve grande sucesso entre os e continua sendo um dos "clássicas" de língua inglesa. Muitas outras seguir-se, todas com liberdades com respeito aos manuscritos, aos tex- tos originais e formas poéticas. Cf. Malaparte, "Note I'adaptation des Quatrains", Sadegh Hedayat,

pela "continuidade") é a forma por excelência da luta pelo, e por meio capital literário que se exerce no universo literário. Proclamar a antiguidade de sua fundação literária, sob a forma, própria aos conjun- tos nacionais, da "continuidade" nacional é, nos espaços literários uma das estratégias específicas para se impor como prota- gonistas legítimos ou para entrar no jogo pretendendo a posse de gran- des recursos literários.

Receber o crédito de pertencer à mais velha nobreza literária (ou cultural no sentido amplo) é uma posição tão disputada que mesmo as mais dotadas de capital literário devem encontrar os meios de afirmar sua primazia histórica para não assistir à contestação de sua posição. Stefan Collini mostra dessa maneira a insistência dos historia- dores da literatura inglesa no decorrer do século na continuidade sem falhas da tradição literária e da permanência lingüística: "Sentir a continuidade", explica, "é a principal condição para definir a identidade c, portanto, para legitimar o orgulho dos altos feitos de Skeat, especialista inglês no estudo dos textos literários, afirmava assim em 1873 que os olhos dos estudantes "deviam ser abertos para a unidade da língua inglesa, para o fato de que há uma sucessão ininterrupta de autores, desde o reinado de até o de Vitória, e que a língua que hoje falamos é absolutamente una em sua essência desde a linguagem falada nos dias em que os ingleses invadiram a ilha primeira

Na mesma lógica, os países relativamente excentrados que, como o México ou a Grécia, podem evocar, além das descontinuidades ou das rupturas, um enorme passado cultural, buscam dessa forma obter um benefício suscetível de modificar sua posição na estrutura mundial. Mas por terem sido as nações mexicana e grega modernas fundadas apenas no decorrer do século não podem reivindicar plenamente os recursos culturais dos quais se reapropriaram posteriormente, após profundas fraturas históricas, e elas não conseguem rivalizar de fato com os grandes centros literários.

Em O labirinto da Octavio Paz tentou nos anos 50 eno-

brecer e fundar a identidade nacional mexicana restabelecendo uma

Stefan Collini, p. 359.

W. Skeat, for with

(Cambridge, p. em S. Collini, p. 359. A

continuidade perdida entre todas as heranças históricas - e principal- mente reconciliando a herança pré-colombiana com a história da colo- nização espanhola e as estruturas sociais que ela deixou. Tentou especialmente, nesse livro que se tomou um clássico nacional do Mé- xico, levar seu pais modernidade politica e cultural proclamando ao mesmo tempo sua continuidade histórica e seu dever de critica com relação a essa herança politica. Quarenta anos depois, em seu discurso quando recebeu o prêmio Nobel, ainda afirma, mostrando por ai que se trata de uma aposta essencial da constituição e do futuro do México e de sua cultura: "O México pré-colombiano, com seus templos e deu- ses, certamente é um amontoado de minas, mas o espírito que o ani- mava não morreu. Fala-nos na linguagem cifrada dos mitos, das lendas, das maneiras de viver, das artes populares e dos costumes. Ser um escritor mexicano é estar a escuta do que esse presente nos diz - essa presença. É ouvi-la, falar com ela, decifrá-la: dizê-la

O termo "continuidade" aparece também na escrita do outro grande escritor mexicano, Carlos Fuentes. Embora provavelmente conheçamos poucos exemplos históricos de uma "fratura" tão grande quanto a da "descoberta" da América, Fuentes insiste, em O espelho entewado, na "permanência" cultural do continente: "Essa tradição que se estende das pedras de Chichén Itzá e Machu Picchu as modernas influências indígenas na pintura e na arquitetura. Do barroco da era colonial a literatura contemporânea de Jorge Luis Borges e Gabriel Garcia Márquez Poucas culturas do mundo possuem uma riqueza e continuidade comparáveis Este é um livro dedicado a busca da continuidade cultural que possa instruir e transcender a desunião econômica e a frag- mentação política do mundo hispânico.

É a mesma lógica, a do enobrecimento pela reapropriação da he- rança antiga, que conduz a Grécia, no momento de sua emergência como nação no decorrer do século a tentar reconstituir uma uni- dade histórica e cultural nacional em reação principalmente a hipóte- ses (acusadoras) alemãs segundo as quais os gregos modernos não

60. Paz, La Quére p. 15.

61. Carlos Fuentes, Le sur Monde,

Paris, 1994, p. 11-12. [Ed. Rio de Janeiro, Rocco, 2001, p. 9-10.]

teriam uma única gota de sangue heleno, seriam de "raça" e teriam nenhum direito privilegiado a uma herança que não lhes "pertenceria": é a época da Megalè No plano político, a "Grande Idéia" inspira o projeto de anexar à nação os temtórios outrora ocupados pelos ilustres ancestrais bizantinos, inclusive, é claro, Constantinopla, para tentar restaurar uma continuidade territonal e histórica. Do lado dos intelectuais, suscita estudos históricos, folclóricos e linguísticos e leva os escritores a voltar ao arcaísmo estético para "provar" serem helenos. Já o historiador Constantin Paparrigopoulos, para apoiar a tese da "Grande Idéia", publica entre 1860 e 1872 uma vasta e famosa

História da nação grega, na qual "estabelece" uma continuidade entre os diferentes períodos da história grega, a Antiguidade, o período bizantino e o período

Mas os gregos estavam de certa forma em desvantagem para en- trar na competição pela "captação de herança" da qual haviam sido vítimas. A "passagem" dos textos da Antiguidade grega para a língua alemã, como vimos, a princípio anexara-os ao alemão, em seguida europeu, despojando assim a jovem nação grega de sua imen- sa riqueza potencial. Os grandes especialistas, e historiado- res da Grécia antiga eram então alemães, e a "degrecização" dos gregos que realizavam em nome da ciência e da história era provavelmente uma forma, pelo menos em parte, de afastar os que poderiam preten- der herança em nome da especificidade nacional da qual os alemães eram precisamente os teóricos.

A proclamação da antiguidade literária é uma estratégia nacional tão eficaz que mesmo as nações literárias mais "jovens" a ela recorrem. Stein, por exemplo, muito preocupada com a fundação de uma literatura americana, decretou assim em de Alice B. Toklas: "Gertrude Stein fala sempre dos Estados Unidos como o país mais velho do mundo, porque, graças transformações resultantes da Guerra de Secessão e da reorganização comercial que a ela se seguiu,

62. Cf. Bouchard, "Une Renaissance. La formation de nationale

Grecs

. .

de de Montréal.

1974, p. ver também Mario Vitti, de grecque

Paris, 1989, p. 185 e 63. principalmente: Vitti. p.

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