• Nenhum resultado encontrado

A tradução é a grande instância de consagração específica do uni- verso literário. Desdenhada como tal por sua aparente neutralidade, ela é contudo a via de acesso principal ao universo literário para todos os escritores "excêntricos": é uma forma de reconhecimento literário e não uma simples mudança de língua, puro intercâmbio horizontal que se poderia (deveria) quantificar para tomar conhecimento do volume das transações editoriais no mundo. A tradução é, ao contrário, o maior desafio e a arma primordial da rivalidade universal entre os jogadores, uma das formas específicas da luta no espaço literário internacional, instrumento de geometria variável cujo uso difere de acordo com a posição do tradutor e do texto traduzido, isto é

-

para retomar uma distinção empregada por Itamar -, segundo a posição da língua "fonte" e da língua "alvo". Aqui se estabeleceu a desigualda- de literária das línguas de onde procede, pelo menos em parte, a

Aqui pretendo apenas uma função muita particular da tradução, que a litera- tura consagrada a esse objeto parece ter omitido, por não considerar a diferença entre o capital lingiiístico e o capital propriamente e a especificidade de transferên- cias do último.

"Laws of for

MUNDO FABRICA DO UNIVERSAL

gualdade dos protagonistas do jogo literário mundial. Por isso o ponto de vista adotado sobre essa transferência lingüística depende do senti- do no qual se opera (tradutor ou traduzido) e da relação entre as lín- guas entre as quais se realiza. A combinação desses dois fatores determina os principais casos analisados neste livro.

Para as línguas "alvo" (de chegada) mais desprovidas especifica- mente, a tradução

-

que é então uma

-

é uma maneira de agrupar recursos literários, de importar de certa forma grandes tex- tos universais para uma língua dominada (portanto para uma literatura desprovida), de desviar um legado O programa de tradução dos clássicos dos românticos alemães, que se elaborou ao longo de todo o século é, como detalharemos adiante, um empreendimento desse tipo. As obras de grande ruptura literária, as que marcaram épo- ca no centro, são muitas vezes traduzidas pelos próprios escritores, geralmente internacionais e poliglotas, e que, querendo romper com as de seu espaço literário, tentam introduzir em sua língua as obras da modemidade central (por aí mesmo, contribuem para perpe- tuar sua dominação). Dauilo foi assim tradutor dos poetas húnga- ros (Ady, Radnoti), russos (Mandelstam, Tsvetaieva) e franceses (Corneille, Baudelaire, Lautréamont, Verlaine, Prévert, Queneau) para o servo-croata; Vergilio introduziu em Portugal, Amo Schmidt foi o destemido tradutor de Joyce para o ale-

mão, Borges o de Hari E. E. Robert

Penn Warren2'; Nabokov traduziu Lewis para o russo; início

do século, o japonês Daigaku (1892-1981) importou Verlaine, Apollinaire, Cocteau e para o Japão, contribuindo desse modo para revolucionar em profundidade todas as normas estéticas em curso nesse espaço literário então em mutação: o húngaro Dezso Kosztolányi traduziu para sua língua natal Shakespeare, Byron, Wilde, Baudelaire, Verlaine. Esses intermediários desempenham, de certa for- ma, um papel inverso dos internacionais das grandes capitais: eles não introduzem a periferia no centro para consagrá-la, na verdade tomam o 19. Isto uma importação de textos estrangeiros em forma de traduções.

V. Ganne e M. Minon, de traduction", Ducrocq p. 58.

20. Cf. " A importação de textos", p. 21. Cf. P. de 123.

centro conhecido (e o que foi consagrado no centro) em seus países, traduzindo sua produção central. Importam, para apresentá-la, a modernidade decretada no meridiano de Greenwich; por isso desem- penham um papel essencial no processo de unificação do espaço.

Para as grandes línguas "fonte" (ou seja, a mesma operação consi- derada do outro ponto de vista), a tradução literária então concebida como permite a difusão internacional do capital n o central. Reconduzindo, graças aos poliglotas dos pequenos países, o poder e o prestígio dos grandes países literários, ela permite apresen- tar o poder específico de uma língua e de uma literatura que pleiteiam a universalidade e aumentar assim seu crédito específico. Ademais, difunde a norma em vigor no centro, com o atraso inerente ao tempo de latência da própria tradução.

Ao contrário, para as grandes línguas "alvo", isto é, quando a tra- dução é a importação para o centro de textos literários escritos em línguas "pequenas" ou em literaturas pouco valorizadas, a translação linguística e literária é uma maneira de anexar, de desviar obras em proveito dos recursos centrais: "o capital universal cresce", diz

graças a atividade dos grandes tradutores consagradores. A dominação por eles impõe-lhes, oblige, "descobrir" escritores não indígenas e conformes suas categorias literárias. ope- ração considerada a partir de uma "pequena" língua "fonte", isto é,

como exportação de textos para uma lingua literária central, é bem mais que uma simples mudança de língua: é, na realidade, a ascensão

à literatura, a obtenção do certificado literário. É essa gração que nos interessa aqui.

A noção de "literariedade", ou seja, de crédito literário ligado a uma lingua, independentemente de seu capital propriamente

tico, permite portanto considerar a tradução dos dominados literários como um ato de consagração que dá acesso à visibilidade e à existên- cia literárias. Os que em línguas pouco ou não reconhecidas como literárias, muito desprovidas de tradições próprias, não podem ser consagrados literariamente de imediato. É a tradução para uma grande língua literária que vai fazer seu texto entrar para o universo

22. Ou seja, como exportação de textos nacionais para uma outra lingua. Cf. V. Ganne e M. Minon, "Géographie de traduction", cit. p. 58.

DO UNIVERSAI literário: a tradução não é uma simples "naturalização" (no sentido de

uma mudança de nacionalidade), ou a passagem de uma língua para outra; é, muito mais especificamente, uma "literarização". Os escritores do boom latino-americano passaram a existir no espaço literário

cional a partir de sua tradução para o francês e do seu reconhecimento pela crítica francesa. No mesmo sentido, Jorge Luis Borges ele era uma invenção da França. O reconhecimento de Danilo coincide também com sua tradução para o francês e sua consagração na França, que o faz sair da "sombra" O reconhecimento universal de (seu prêmio Nobel) data de sua autotradução do bengali para o inglês. Pius Ngaudu Nkashama, intelectual e escritor da República Democrática do Congo (ex-Zaire), salienta e sublinha, ao mesmo tempo que nega, o papel central da tradução-consagração para os escritores africanos: "O defeito dos autores africanos foi muitas vezes crer que um texto literário só tinha valor caso fosse credenciado como tal por um Ocidente magnânimo Tudo acontece como se um autor em uma língua africana só alcançasse objetivamente o ato literário a partir do momento em que produzisse um texto em outras linguagens, no caso, as do colonizador Poderia ser-lhe concedido um crédito moral com base nas traduções devidamente autorizadas mundo

Definir a tradução dos autores dominados como uma literarização, ou seja, uma verdadeira metamorfose literária, uma mudança de esta- do, permite resolver toda uma série de problemas gerados pela crença na igualdade, ou melhor, na simetria entre as operações de tradução, concebidas uniformemente como simples translações de língua a língua. A transmutação literária é garantida com a passagem pela fronteira mágica que faz um texto redigido em uma língua pouco ou não literá- ria, ou seja, inexistente ou não reconhecida no "mercado verbal", al- cançar uma língua literária. Por isso defino aqui como literarização

qualquer operação - tradução, autotradução, transcrição, escrita dire- ta na língua dominante - pela qual um texto proveniente de uma re- gião desprovida literariamente consegue se impor como literário junto a instâncias legítimas. Qualquer que seja a língua em que sejam escri- tos, esses textos devem "ser traduzidos", isto é, obter um certificado

23. Pius Ngandu Nkashama. Paris,

1992, p. 24-30. Os grifas meus.

de literariedade. Salman Rushdie, escritor indiano de língua inglesa, que aparentemente não precisa colocar para si o problema da tradução, evoca contudo uma espécie de autotradução constitutiva:

gicamente, a palavra 'traduzir' vem do latim traducere, 'conduzir além'. Conduzidos que fomos para além do local de nosso nascimento, so- mos homens 'traduzidos'. Em geral admite-se que se perde algo na tradução. Agarro-me obstinadamente à idéia de que também se pode ganhar algo com

A série das operações de transmutação e de tradução dos textos literários representa uma espécie de gama de

literárias, um conjunto contínuo de soluções que permitem escapar ao despojamento e à invisibilidade literários. Assim é possível se detectar no itinerário de muitos escritores, em todas as etapas de sua consagra- - progressiva, todos os graus da transformação dos textos segundo os imperativos da visibilidade por parte das instâncias consagradoras. Para Strindberg, assim como para Joyce, não se trata de serem traduzi- dos ou de escreverem em francês, mas de alcançar a literatura e o de escritor pela adoção - direta ou mediatizada pela tradução

-

de uma língua que encarna a literatura por excelência.

No documento Casanova - República Mundial das Letras (páginas 87-89)

Outline

Documentos relacionados