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Ramuz, a assimilação impossível

No documento Casanova - República Mundial das Letras (páginas 136-139)

Antes de se tornar defensor do "sotaque valdense" e o fundador dos Cahiers vaudois, Ramuz, jovem escritor suíço, tentara durante lon- gos anos, antes da guerra de 1914, assimilar-se - como Michaux pouco antes dele

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ao meio literário parisiense e, de suíço de Vaud que era, "tomar-se" romancista francês, isto é, ser consagrado como tal. No entanto, é sua própria proximidade que o impede de integrar-se em Paris: próximo demais -falando francês com sotaque -, isto é, provinciano demais aos olhos das instâncias consagradoras para ser aceito, e não suficientemente afastado

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isto é, estranho, exótico, novo -para suscitar o interesse das instâncias críticas, é excluído e rejeita- do de Paris ao final de alguns anos. Ele próprio contou a patética expe- riência de jovem poeta provinciano em Raison d'être, publicado em 1914, no momento de sua volta a seu país. Raison d'être será o primeiro número da revista que funda ao à Suíça e o manifesto fundador dos Cahiers vaudois, criados com seus amigos

Edmond e Paul

Texto capital para a compreensão do itinerário e da trajetória de Ramuz, Raison d'être coloca em prática sua vontade de provocar uma reviravolta na lei parisiense e inverter a ordem dos "valores": quer transformar os traços desvalorizados em diferença proclamada. Essa "volta ao país natal" marca portanto sua decisão de transmutar em identidade reivindicada o estigma de seu sotaque e de suas maneiras. Evocando a vida parisiense, escreve: "Esforço-me em vão por partici- par dela, sou desajeitado dentro dela, percebo isso, e minha falta de habilidade aumenta. O embaraço em que a gente se encontra torna-se ridículo (tem-se vinte anos); se mais falar, nem mesmo andar.

As diferenças de entonação ou no sotaque, ou ainda, nas ati- tudes, são piores que as mais acentuadas e incomodam-no bem mais. O inglês continua sendo um inglês, o inglês não surpreende, é 'classi- ficado': eu sou quase parecido aos que me cercam e querendo ser to- talmente parecido, só fracasso num nada, mas temvelmente

Extremamente lúcido sobre a tragédia e as escolhas impossíveis diante das quais se vêem todos os que não saíram do centro, voltará, mais de vinte anos depois em Notes d'un Vaudois, à hostilidade de Paris. Como se a capital da literatura não pudesse perceber, ou seja, consagrar e reconhecer, todos os que não estão "na distância correta": "O provin- ciano que se tomou parisiense adota na rua as aparências de Paris e o jeito de Paris [ele] faz questão principalmente de não passar por provinciano uma Paris bastante hostil porque parece excluir de antemão todos os que não lhe pertencem: os que não adaptam seu jeito ao jeito da cidade, seus gestos, suas entonações, suas mímicas, aos da cidade Ou você é ou não é. Se não for, não tente parecer que é,

será notado e tudo o mais e de tal maneira que a aventura acabará para você com a expulsão mais ou menos dissimulada, mas

Essa proximidade distante que faz dele um personagem híbrido, falso estrangeiro e verdadeiro provinciano, eterno camponês de Paris que não consegue ser aceito em alguma especificidade classificada, ele analisa-a tão bem que ele próprio teoriza a distância necessária para ter uma chance de ser percebido. O que se chamou acima o "dile- ma de Ramuz" é precisamente essa clarividência com relação à distân- cia que convém manter das instâncias consagradoras. A ruptura deliberada é precisamente a estratégia, quase consciente em seu caso, que vai adotar para ser reconhecido em Paris, "exagerando suas pró- prias diferenças", ou seja, instaurando uma distância "certa" com uma Paris impossível de contornar e que não quis assimilá-lo.

32. C. Raison p. 29.

33. C. F. Ramuz, Paris. Nores d'un cir., 66.

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Os revoltados

"A indigência dos meios que atribuídos é tão difícil de imaginar que ela parece desafiar qualquer credibilidade. Língua, cultura, valores intelectuais, escalas de valores morais, nenhum desses dons que se recebe no berço pode ou vai servir-lhe O que fazer? Ele se apodera sem hesitação de outros instrumentos, esse ladrão, não forjados nem para ele nem para os objetivos que pre- tende perseguir. O que importa? Estão ao seu alcance, ele os do- brará em função de seus desígnios. A língua não é sua língua, a cultura não é a herança dos ancestrais, esses meandros de pensa- mento, essas categorias intelectuais, éticas, não têm validade em seu meio natural. Que armas ambíguas ele vai usar!"

Mohammed Dib, Le Voleur de feu

A segunda grande "família" de estratégias literárias é a da diferen- ciação ou da dissimilação, sempre ao mesmo tempo, pelo menos nos tempos de fundação, literária e nacional'.

Apesar das variações históricas evidentes, pasma constatar que, com as primeiras manifestações da concorrência instaurada pela Plêiade francesa para rivalizar com o uso obrigatório do latim e com a poesia italiana, assiste-se ao surgimento da quase totalidade das estratégias dos fundadores literários que se tornará a encontrar sob formas por assim dizer intactas ao longo de todo o processo de unificação do cam- po, ou seja, durante os quatro séculos seguintes: a tarefa principal dos fundadores da literatura é, de certa forma, "fabricar a diferença".

Nenhum recurso específico é acumulável enquanto as produções literárias são inteiramente assimiláveis ao espaço dominante. A

1. Dentro do movimento geral de literária, a fase de fundaçáo (e de consti- tuição do literário) deve ser distinta das etapas seguintes. durante as quais se inicia o processa de emancipação literária dos espaços nacionais.

reclamada por Du Bellay da prática da tradução dos clássicos latinos e gregos testemunha o fato de que a simples translação dos recursos latinos para o francês, sem nenhuma inovação própria, isto é, sem "mais-valia" ou sem diferença evidente e reivindicada, tinha como conseqüência perpetuar o domínio sem partilha da língua latina. Mais do que isso, essa prática que retomava, sem mudar uma única palavra, a tradição literária predominante só acrescentava ao próprio patrimônio . latino e reforçava a evidência de sua supremacia. Em outras palavras, para lutar contra uma dependência e instaurar uma rivalidade, era pre- ciso criar a diferença e por aí formar um espaço literário.

Todos os intelectuais das "primeiras gerações literárias" - como Du Bellay - compreenderam ao mesmo tempo o fenômeno da anexa- ção literária pelos espaços dominantes de que eram vítimas e a neces- sidade de criar uma distância e uma diferença. Em 1817, escrevia-se assim na Irlanda, antes dos primeiros textos dos intelectuais do cimento: "Nem o nem o público, vítima de um preconceito incômodo contra as produções irlandesas, dão qualquer estímulo à lite- ratura indígena. Se um compatriota atinge a celebridade com suas publicações, conquista-a na Inglaterra e não em sua pátria. De fato, os irlandeses não têm opinião independente em matéria literá- ria"'; e no Magazine, ainda em 1826: "É a expatriação dos talentos nacionais a causa do incontestável empobrecimento do rico legado intelectual de nosso país Triste constatação, na verdade, de que esses talentos abundantes na Irlanda pareçam definhar enquan- to não são transplantados, e adquiram, na própria terra que os produ- ziu, a aparência de plantas exóticas."' A ausência total de diferença reivindicada impede qualquer produção específica de surgir e de ser reconhecida como tal. Só produções literárias declaradas e constituí- das como específicas e nacionais podem permitir acabar com a depen- dência dos escritores do espaço literário (e político) dominante.

Por isso, encontra-se em muitos fundadores literários a mesma condenação -pronunciada na maioria das vezes em termos vigorosos -da imitação. Du Bellay já evocava no capítulo intitulado "Pourquoy

2. de origines à 1800, p. 567. Citado por

Rafroidi, Lille, Universitaires de 1972, p. 9.

3. Ibid., p.

Langue n'est si riche que la Greque Latine", os poetas imitadores que "deixaram nossa língua tão pobre e nua que precisa de e (se podemos nos expressar assim) das penas de outrem"'. E o tema retoma, reiuventado, em contextos e histórias muito afasta- dos uns dos outros. Emerson, verdadeiro fundador dos princípios da cultura e da literatura americanas, em seu Apelo aos estudantes ameri- canos, formulou uma espécie de declaração de independência intelec- tual da América, essencial para os criadores das gerações seguintes. Proclamando que a "imitação é um suicídio", acrescentava: "Cada época deve escrever seus próprios livros; ou melhor, cada geração, a seguinte. Os livros de um período passado não convêm a este Escutamos por tempo demais as musas polidas da Europa."

O caso dos escritores latino-americanos é um exemplo

batório do mesmo fenômeno: durante todo o século e pelo menos até os anos 40, eles produziram uma literatura mimética. O intelectual venezuelano Arturo Uslar Pietri, um dos "inventores" do que se tomará de certa forma a fórmula geral de toda a literatura latino-americana a partir dos anos 60, o "realismo insistiu em seus ensaios sobre a influência européia na América Latina. Mostrou em particular a importância das imitações românticas: Atala de Chateaubriand (1821) - cujo subtítulo é Os amores de dois selvagens no deserto e que re- presenta em uma paisagem falsa personagens artificiais de índios exó- ticos apaixonando-se e sofrendo em meio às conveuções sentimentais mais refinadas do romantismo

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tomou-se um modelo incontornável e contribuiu para moldar a tradição do indigenismo tropical. A influência desse texto foi profunda por tanto tempo América Latina que, ainda em 1879, o escritor equatoriano Juan León Mera que, destaca Uslar Pietri, vivia em uma região de população indígena muito densa, "re- nuncia a seu próprio olhar sobre os índios equatorianos e projeta no nada a falsa visão de Chateaubriand".

É nesse sentido que se pode compreender por que o escritor no Carpentier publica em Havana nos 30 um texto manifesto no qual proclama a necessidade de cessar esse estado de subordinação intelectual e acabar com uma produção literária 4. Du Bellay, et de 23.

REVOLTADOS

zida à idêntica: "Na América Latina. o entusiasmo aue vem da Europa gerou um certo espírito de imitação cuja deplorável quênciafoi retardar em vários lustros nossos próprio modo de expres- são. No decorrer do século com quinze ou vinte anos de atraso, investimos em todas as febres do velho continente: romantismo, sianismo, simbolismo; Rubén Darío estreou como filho espiritual de Verlaine, da mesma forma como o de Théodore de

Sonhamos com marquesas e abades, enquanto os índios contavam lendas maravilhosas indissociáveis de nossas paisagens Muitos domínios artísticos americanos vivem nesse momento sob o signo de Gide, quando não é Cocteau ou simplesmente Lacretelle. É um de nossos males -deveríamos dizer uma de nossas fraquezas

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que devemos combater com ardor. Mas, infelizmente, não basta dizer 'cortemos os laços com a Europa' para a produzir expres- sões originais e representativas da

Produzir essa expressão original é fabricar a diferença, seja, criar recursos específicos. Como as fundações literárias estão ligadas às fundações nacionais, os escritores das primeiras gerações empre- gam todos os meios à sua disposição -literários

nais - para agrupar e concentrar essas riquezas literárias. Esses meios serão diferentes de acordo com o patrimônio inicial do espaço literário considerado. Nos espaços literários mais dotados de imediato, os ca- minhos de enriquecimento adquirem a forma de diversos desvios do patrimõnio central: intraduções (ou seja, importações de textos cano- nizados), importações de técnicas e de procedimentos literários, de- signação de novas capitais literárias nacionais, etc.

Nos espaços literários que surgiram mais tarde, e mais desprovi- dos, a grande inovação que as teorias herderianas difundirão e que modifica o conjunto das estratégias e das afastamento lite- rário é a idéia de "povo". Essa noção, com as de nação e de língua, que, no sistema de pensamento inaugurado por Herder, são sinôni- mas, fornece muitos instrumentos aos fundadores literários: a coleta de narrativas populares transformadas contos e lendas nacionais;

6. ante joven literatura 28 de junho de

Havana. A para o francês é minha.

a criação de um teatro nacional e popular, que permite ao mesmo tem- po difundir a língua nacional, os conteúdos populares como terial desse teatro e constituir um público nacional; a reivindicação da antiguidade de um patrimônio (no caso da Grécia ou do México, por exemplo), ou o questionamento da medida do tempo literário. Ramuz, que melhor do que ninguém compreendera esse mecanismo, emprega- va ele próprio o termo de "capital" para referir-se aos recursos em "diferença" dos pequenos países: "Alguns países só contam por suas diferenças conseguem utilizar essas diferenças que são seu verdadeiro capital de maneira que elas apareçam no banco univer- sal como câmbios e intercâmbios."'

No documento Casanova - República Mundial das Letras (páginas 136-139)

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