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Kafka, traduzido do ídiche

No documento Casanova - República Mundial das Letras (páginas 165-168)

Contra todas as aparências e ao inverso das evidências criticas mais difundidas em torno de sua obra, Kafka pertence provavelmente a essa mesma "comunidade" literária. De fato é possivel descrever todo o empreendimento literário de Kafka como um monumento ergui- do à glória do idiche, lingua perdida e esquecida dos judeus ociden- tais, e como uma obra fundamentada em uma prática desesperada da lingua alemã, lingua da assimilação dos judeus, lingua daqueles que, assimilando-os, conseguiram fazer com que os judeus de Praga (e mais

amplamente de toda a Europa Ocidental) esquecessem sua própria cul- tura. Do ponto de vista de Kafka, o alemão é uma língua "roubada", como dirá com muita precisão, e cujo uso será portanto para ele sem- pre ilegítimo. Nesse sentido, seria possível considerar sua obra inteira- mente "traduzida" de uma língua que não sabia escrever, o ídiche.

Como cidadão de Praga, como judeu e como intelectual, Kafka ocupa uma posição política e literária muito complexa. Como cidadão de Praga, está no centro dos debates do nacionalismo checo; como judeu, confronta-se com a questão do sionismo, mas também com o surgimento do Bund Oriental; e como intelectual, vê-se diante da problemática do engajamento nacional em oposição à do estetismo tal como o praticam seus amigos do Círculo de Praga. A partir dessas três posições simultâneas, em geral contraditórias e contudo

ciáveis, pode-se imaginar a posição de Kafka. Ele está na interseção precisa de todos esses espaços intelectuais, políticos e literános: Pra- ga, decerto capital ao mesmo tempo nacional e cultural do nacionalis- mo checo, mas também cidade onde ainda se afirmam os intelectuais judeus germanizados que então formam o Círculo de Praga; Berlim, capital literária e intelectual de toda a Europa Central; além disso, o espaço político e intelectual da Europa Oriental, universo onde surgem movimentos e partidos nacionalistas e operários judaicos e onde se con- frontam as teses do Bund (idichistas) e dos sionistas; sem

Iorque, nova cidade da imigração judaica, foco político, literáno, tea- tral e poético das populações judaicas imigradas da Rússia e da Polônia. Os judeus da Europa Central e Oriental no final do século estão em uma posição quase comparável à de todos os outros povos da região que buscam uma via de emancipação nacional. Mas, com uma enorme diferença: dominados entre os dominados, vítimas do ostracismo e do estigmatizados e sem território, por toda a Europa, devem, mais do que qualquer outro povo dominado, realizar um esforço teórico e político gigantesco para elaborar, fazer admitir e legitimar suas teorias nacionais (nacionalistas). O conflito teónco e po- lítico que esquematicamente opõe os sionistas aos partidários do Bund nasce provavelmente desse estado de dominação extrema e dessa situa- ção única: os primeiros, herdeiros de Herder, da fundação de uma nação verdadeira, identificada a um território nacional (a Pales- tina), os segundos, favoráveis a uma solução autonomista e diasporista.

A partir dessa posição de dominação inseparavelmente literária, lin- güística e política, pode-se tentar descrever a posição e o projeto literá- rio, mas decerto também politico (nacional) de Kafka. Ele descobre o universo cultural e as reivindicações políticas e lingüísticas dos idichistas (na maioria das vezes partidários do Bund, mas também seimistas

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por meio das peças de teatro ídiches apresentadas em Praga durante alguns meses, no final de 1911 e no início de 1912, por um grupo da Polônia. A partir de sua descoberta da muitos elementos permitem pensar que busca se engajar do lado do idichismo, ou seja, da elaboração de uma cultura popular judaica e leiga3'. Ao mesmo tempo,

é possível levantar a hipótese de que, conforme o modelo que se tentou descrever,

é colocado (ou coloca a si mesmo) na posição de um escritor fundador, que luta pelo pleno reconhecimento de seu povo e de sua na- ção, engajado na elaboração de uma literatura nacional judaica. Assim, tomar-se-ia membro paradoxal, tragicamente distante, do espaço judai- co ídiche e no entanto escritor ativo a serviço dessa "nação" judaica em via de emergência (ou de um movimento nacional que luta pelo reco- nhecimento dessa nova nação), como tal engajado na criação de uma literatura popular e nacional, a serviço do povo e da cultura judaicos.

O que toma a situação de Kafka de compreensão é que ela é

o inverso exato (e portanto o simétrico oposto) de seus contemporâneos. Intelectual de primeira geração em um universo intelectual no conjun- to mais burguês que ele, Kafka é muito diferente de seus congêneres, entre os quais seu amigo Max Brod: é socialista, idichista, anti-sionista, quando todos os seus companheiros são sionistas, nacionalistas,

bebraizantes, antiidichistas. Pertencente a uma comunidade judaica da Europa Ocidental amplamente assimilada e germanizada, está, no entanto, em uma posição trágica e contraditória: não conhe- ce o idiche e portanto não pode se colocar diretamente a serviço da obra coletiva da qual descreve a grandeza e a beleza principalmente em A Muralha da China. Por isso, adotará uma solução paradoxal e contudo insuperável: escrever em alemão para o povo judaico assi- milado e contar a tragédia da assimilação. Desse modo, dever-se-ia

31. Baseio-me aqui em um estudo histórico e literário de textos de (a ser que conduzi alhures e que fornece os elementos de "provas" históricas e analíticas necessárias a

reler As pesquisas de um cão ou América como testemunhos da vonta-

de quase etnológica de Kafka de proporcionar aos judeus germanizados uma narrativa de sua própria história esquecida (sabe-se que o verda- deiro titulo, imaginado pelo próprio Kafka, do texto que Brod publicou sob o nome de América, era justamente O e de denunciar o horror da assimilação (da qual ele próprio é produto) que nada mais é, para ele mesmo e em seus próprios termos, que a negação de si, em proveito da necessária afirmação de uma existência nacional judaica popular e laicizada.

Em outras palavras, Kafka, escritor que quer estar a serviço de um movimento nacional e socialista judaico em luta pela existência de uma futura "nação" judaica, toma-se, como todos os escritores a serviço de uma causa nacional, um artista político. Mas é obrigado a abandonar a língua do povo

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ou a enlutar-se por ela - em proveito da língua dominante. Está portanto, muito exatamente, na posição de todos os colonizados que, nos períodos de emergência de movimentos de inde- pendência nacional, descobrem sua identidade e sua especificidade jus- tamente no momento em que compreendem o estado de dependência e de despojamento cultural ao qual a assimilação os conduziu. Como Joyce decidiu escrever em inglês, mas subverter essa língua por dentro, Kafka decide portanto pelo alemão, mas para colocar literariamente questões literárias, políticas e sociais desconhecidas antes dele, e tentar recuperar em alemâo as categorias próprias da literatura ídiche emer- gente (que são as de todas as literaturas em formação): as formas e os gêneros literários ditos "coletivos", ou seja, os que têm em comum o fato de pertencer a uma coletividade, como os contos, as lendas, os mitos, as crônicas

...

É precisamente nesse sentido que se pode ler a obra de Kafka como uma espécie de "tradução" do ídiche.

A situação dos escritores judeus alemães de Praga, descrita por Kafka em sua famosa carta a Max Brod de junho de 1921, é um resu- mo extraordinário para abordar a situação de todos os escritores domi- nados, acuados, justamente por sua dominação cultural e lingüística, a escrever e falar a língua dos que os submeteram a ponto de fazê-los

32. Cf. Claude David,

vol. I, "Bibl. de Pléiade", 1976, p. 811. Claude David precisa que significa: "aquele de quem se perdeu a pista".

esquecer sua lingua e sua cultura. Esses escritores "viviam", explica Kafka a Max Brod, "entre três impossibilidades (que chamo por acaso impossibilidades de linguagem, é mais simples, mas seria possível

de forma completamente diferente): a impossibilidade de não es- crever, a impossibilidade de escrever em alemão, a impossibilidade de escrever de outra maneira, ao que seria quase possível acrescentar uma quarta impossibilidade, a impossibilidade de escrever era portanto uma literatura impossivel sob todos os Da mesma maneira, Kateb Yacine poderia ter escrito: os escritores árabes estão dilacerados entre três impossibilidades (que denomino impossibilidades de lingua-

gem, mas que são também impossivel não

escrever, impossibilidade de escrever em francês, impossibilidade de escrever em árabe, impossibilidade de escrever de outra forma

... Os

companheiros de Kafka, membros do Circulo de Praga, são portanto, segundo ele, obrigados a escrever em alemão, mas são tão assimilados que até esqueceram que haviam esquecido sua própria cultura e que a escrita em alemão era o sinal patente de sua dominação. É o mesmo que dizer que estão na posição de todos os intelectuais dominados ou colonizados que procuram por meio da língua uma saída à aporia constitutiva na qual se encontram presos. Por isso Kafka empregará na mesma carta - e quase nos mesmos termos que Jean Amrouche a propósito dos escritores argelinos da primeira geração - o tema ex- plícito do roubo da língua e da ilegitimidade. A lingua alemã é para os intelectuais judeus "a de um bem estrangeiro que não foi adquirido, mas do qual se apoderaram com uma mão apressada (relativamente) e que permanece um bem estrangeiro, mesmo que não se consiga encontrar o menor erro de linguagem"; sua literatura é uma "literatura impossível sob todos os aspectos, uma literatura de ciganos

que roubaram a criança alemã no berço e que com muita rapidez

prepararam-na de uma maneira ou de outra, porque alguém deve sem- pre dançar sobre a corda (mas nem era a criança alemã, não era nada, dizia-se simplesmente que alguém deveria dançar)")'.

33. F. Carta a Max Brod, junho de 1921. p. 1087. 34. No tento alemão, distingue três maneiras de apropriar-se da lingua alemã, uma

é (confessa), outra, (tácita); a ultima só se adquire com com- bate interior, verdadeira tortura para o escritor

E

O célebre trecho de seu Diário em que Kafka explica o amor in- completo por sua mãe pela contradição lingüística

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revelador prodi- gioso do lugar central dessa língua materna faltante e sempre analisado em termos exclusivamente psicológicos

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saiu de fato diretamente de suas reflexões sobre a língua ídiche. Aparece no meio das anotações consagradas a Lowy e às lembranças do ator: "Ontem, veio-me à mente que, se nem sempre amei minha mãe como ela merecia e como eu era capaz de amá-la, foi unicamente porque a língua alemã me impediu de fazê-lo. A mãe judia é uma 'Mutter', essa maneira de chamá-la toma-a um pouco ridícula (a palavra Mutter é ridícula em si já que na Alemanha); damos a uma mulher judia o nome de mãe alemã, mas esquecemos que há aí uma contradição e que a contradição penetra tanto mais profundamente no sentimento. Para os judeus, a palavra Mutter é particularmente alemã, contém contra sua vontade tanta frieza quanto esplendor cristãos, daí a mulher judia chamada Mutter ser não apenas ridícula, mas também estrangeira para

O alemão como língua estrangeira ao mesmo tempo que materna (dilema para o qual Rilke, que também o sentia, encontrará outras so- luções) é uma língua emprestada, da qual se tomou posse pela assimi- lação, isto é, na lógica da reflexão de Kafka e nos termos precisos da discussão política que se desenvolve então nos círculos judeus de toda a Europa, roubada vergonhosamente à custa do esquecimento de si e da traição da cultura judaica.

Essa leitura, que me proponho argumentar em outra parte, que engloba mais do que exclui as inúmeras interpretações anteriores (psico- lógica, filosófica, religiosa, metafísica, etc.) pode ter algo de chocante e de desencantador ou até de "blasfematório" para os leitores acostu- mados leitura "pura" de Kafka. Impôs-se a mim aos poucos e como que contra a minha vontade por meio da "pesquisa histórica" a qual procedi e que me conduziu a inserir Kafka em seu universo nacional (portanto internacional).

No documento Casanova - República Mundial das Letras (páginas 165-168)

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