Jogos de línguas
F A BRICA DO UNIVERSAL
tema da critica russa, bastante hostil a seu livro. No espaço de uma semana e antes mesmo que o romance seja inteiramente publicado em russo, Nabokov assina um contrato com Fayard para a tradução de A
Porém, como vive em grande precariedade, prossegue a difusão de seus textos na revista Les contemporaines e em Poslednie
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o principal russo de Paris e o mais importante da imprensa-, únicas publicações que lhe trazem um pouco
de dinheiro. Ali edita principalmente Kamera obscoura [Riso no es- curo] em 1932, que logo será retomado pelas edições Essa tradução francesa, que desempenha o papel de um reconhecimento, traz outros: ele assina contratos para as versões sueca, checa e inglesa de seus romances. Mas, em 35, quando relê a versão inglesa de Riso no escuro, descobre sua mediocridade: aproximativa, grosseira, feita as pressas, cheia de futilidades e lacunas; falta-lhe vigor e impulso, e chafurda em um inglês tão baço, tão vulgar, que não consegui lê-la até o fim. Tudo isso é bastante comprometedor para um autor que visa em seu trabalho a precisão absoluta, faz os maiores esforços para conse- gui-la e vê em seguida o tradutor demolir tranqüilamente cada maldita frase."" Nabokov resigna-se, no entanto, a deixar o livro ser lançado para não desperdiçar sua primeira oportunidade de ser publicado em Mas propõe traduzir ele próprio o livro seguinte, O equívoco, como se já tivesse compreendido que, romancista em uma língua do- minada na Europa e sem apoio nacional, não dispunha de outro recur- so para existir literariamente senão se autotraduzir.Como Cioran, Istrati, Sirindberg e muitos outros, considerou sua reescrita para uma outra língua como uma temvel provação: "Tra- duzir a si mesmo é um empreendimento horrível, examinar suas entra- nhas e experimentá-las como a uma luva, e descobrir que o melhor 32. Essa tradução é editada na Fayard, em 1934, sob o titulo La
33. Brian Boyd, Vladimir Nabokov, vol. I, Les Paris, Gallimard, 1992, p. 427 de
34. Chambre obscure, Paris, Grasset, 1934.
35. Vladimir Nabokov, carta a Co, 22 de maio de 1935. Citada por Brian Boyd, 483.
36. outraversão dele, inteiramente refeita, em 1938, com o titulo
[Ed. brasileira: Riso no escuro. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.1
dicionário não é um amigo, mas o campo O equivoco, que será publicado na Inglaterra por um editor de romances populares, passará tão despercebido no escuro. Porém, em ele assina com a Gallimard um contrato de tradução para o francês de O equivoco a partir da versão inglesa do livro, como se paradoxalmente esperasse poder garantir uma maior fidelidade a partir de uma tradu- ção que ele próprio controlara em uma língua mais amplamente difundi- da que o nisso. E é também em Paris que inicia seu primeiro romance redigido em inglês: Real Life of Sebastian Knight. Após quase vinte anos de diversas tentativas para tornar-se e afirmar-se escritor nisso, confronta-se com os mesmos dilemas que todos os escritores exilados. No final dos anos 30, a esperança de uma volta para a Rússia desaparece definitivamente, e ele não pode esperar viver da escrita para um público tão restrito e disperso quanto a comunidade emigrada. A fim de ter acesso a uma verdadeira existência e a um reconhecimento literários, deve "traduzir-se" em uma das duas grandes línguas literárias que co- nhece. Espera por um momento instalar-se na França, mas, além dos empecilhos administrativos e financeiros que lhe tomam a vida difícil, domina melhor o inglês que o francês e, além de "Mademoiselle O" e de seu ensaio sobre publicado na NRF em nada escreveu diretamente em francês.
Embarca para os Estados Unidos em 1940 e toma-se escritor de língua inglesa: The Real Life of Sebastian Knight é publicada em 1941 nos Estados Unidos com o apoio de Delmore Schwartz, na editora de vanguarda New Porém, mais uma vez o reconhecimento literário e o sucesso lhe virão de Paris, onde é publicado de novo em sua segunda língua conforme uma lógica análoga a que permitira ao escandaloso de Joyce ser publicado em Paris nos anos 20 con- tra as imposições da censura moral. Lolita, que surge como uma pro- vocação insuportável nos Estados Unidos puritanos dos anos 50, é lançado em Paris em 1955 sob a capa verde da Olympia Press de 37. V. Nabokov. carta a Chakhovskaya, cerca de outubro de 1935, citado por B.
Boyd, 485.
38. Instala-se na França entre 1937 e 1940.
39. ou et
40. de Notre
MUNDO
Maurice Girodias, após a recusa de quatro editores americanos. Per- seguido pela censura francesa, atrasado pelos processos e alfândegas ingleses, coroado por um sucesso advindo do escândalo, o livro é pu- blicado três anos depois nos Estados Unidos, em 1958. E Nabokov, que até então era apenas um escritor de língua inglesa com pouca no- toriedade, alcança de repente um imenso sucesso internacional. Esse itinerário mostra que não viveu, como se diz muitas vezes, "duas vi- das" de escritor em cada uma de suas duas línguas literárias. Conheceu o destino difícil de todos os escritores exilados e dominados que, para poderem existir literariamente e ter acesso a uma verdadeira autono- mia criadora, ou seja, evitar a dependência de traduções incontroláveis, "optam" por tomar-se, como diz Rushdie, "escritores traduzidos".
Já Beckett, no final da década de 1940, adotará uma solução pro- vavelmente inédita antes dele: sistematizará a dupla tradução. É pre- ciso, contudo, lembrar-se de que, antes disso, jovem escritor de língua inglesa vindo de Dublim, ele próprio percorrera todas as etapas des- critas acima. Após publicar em Londres pela Chatto Windus sua coletânea de novelas More Pricks than Kicks (1934)
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proibida na Irlanda e com quinhentos exemplares vendidos - e editar sua cole- tânea de poemas em edição do autor, após ter proposto em vão seu manuscrito de Murphy a 42 editores ingleses entre 1936 e 1937 - o romance será finalmente publicado em 1938 em Londres pela Routledge e traduzido para o francês por Beckett com Alfred em 1947 para as edições Bordas -, Beckett busca outros ca- minhos de salvaçâo. Depois da publicação de poemas escritos em francês em Les Temps modernes, e da redação de Watt em inglês durante a guerra4', compõe algumas novelas diretamente em francês.Em seguida, em Paris, advém seu maior período criador, durante o qual redige os primeiros textos importantes em francês: em 1946, escreve Mercier et Premier Amour (inéditos até
Suite (que se tornará Fin). Em 1947, começa, ainda em francês, Molloy; em 1948, termina Molloy, escreve Malone mor- re e esboça Esperando Godot, que e termina em 1949,
41. Romance que será publicado em versão original em Paris por The Olympia em 1953, em seguida traduzido para o francês em 1968 pelo autor em colaboração com L. e A.
tes de começar O inominável. Para todos esses primeiros textos, Beckett sabia que, se quisesse ter uma chance de ser publicado ou encenado no teatro, deveria necessariamente passar à escrita em francês: Esperando Godot e Fin de partie, dedicado a Roger Blin e criado em Londres, em francês, em 1957, permitiram que Beckett tivesse acesso à existência literária. Porém, a partir desse percurso quase Beckett adotará uma solução talvez inédita
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por sua radicalidade-
na história da literatura: em vez de "optar" por uma língua contra outra, resolve permanecer por toda a vida um es- critor traduzido, mas autotraduzido e que trabalhava não mais sob a dependência dos tradutores, mas no desdobramento linguístico. Essa obra excepcional em seu próprio bilinguismo marca a vontade de Beckett de persistir na escrita de uma obra "dupla". Apartir depour rien e depois de Molloy, irá traduzir ou reescrever quase todos seus textos nas duas línguas (e tanto do francês para o inglês quanto do inglês para o francês).
As práticas de autotradução (em sua diversidade infinita) são por- tanto para os autores, pelo menos para parte deles, uma maneira de manter o controle sobre todas as transformações de seus textos e por- tanto de reivindicar uma autonomia absoluta. Sabe-se que Beckett nunca quis, ou apenas em ocasiões, confiar suas traduções a outros além dele mesmo. Pode-se pensar também na mesma lógica que, com
Wake, Joyce talvez tenha encontrado uma solução inédita para o problema doloroso e insolúvel da tradução propondo um texto de imediato ou seja, totalmente autônomo, independente de todas as coerções lingüísticas, comerciais e nacionais.
A história literária, tal como é considerada normalmente, impede a compreensão do papel real e central dos tradutores no universo lite- rário mundial. Como a alternativa que se oferece aos historiadores da literatura consiste, esquematizando, em optar pela história singular (e normalmente des-historicizada) e de um autor singular, ou pelo quadro geral de uma literatura nacional, ou pela história das diferentes interpretações ("leituras") de um mesmo texto no decorrer do tempo, o próprio trabalho de consagração e de literarização realizado pelos tra- dutores e pelos descobridores, que só pode ser percebido por meio do esboço geral da estrutura mundial da Iiteratura
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e das relações deMUNDO
força que a caracterizam -, sempre passou em silêncio, foi esqueci- do, ou simplesmente desprezado, como "o motivo tapete", de que James falava. E, no entanto, é a obra tão imensa quanto invisível de tradutor, de incitador e de descobridor de um Valery Larbaud, seu tra- balho capital de introdutor na França de Faulkner, de Joyce, de Butler, de Gómez de la e de muitos outros, que revolucionou e renovou em profundidade toda a literatura mundial. São as grandes traduções dos romances de Faulkner por Maurice-Edgar Coindreau que permitiram sua consagração e seu reconhecimento universal: não existem, contudo, no capítulo da história oficial da literatura4'. Tor-
nando-se o intermediário indispensável para "atravessar" a fronteira do universo literário, o tradutor é um personagem essencial da história do texto. Os grandes tradutores centrais são os verdadeiros do universal, ou seja, do trabalho em direção ao "um", em direção à uni- ficação do espaço literário.
Larbaud define seu papel como o "de introdutor e de intermediá- rio", membro de um "clero cosmopolita", ao qual seria aplicável o dito de São "Uma única religião, todas as Essa reli- gião unitária é evidentemente a literatura, cuja unidade os tradutores criam além da diversidade lingüística. A autonomia dos grandes tradu- tores egressos dos espaços literários centrais mede-se precisamente por sua adesão à lei literária que proíbe a submissão às'divisões lin- güísticas e políticas. Consciente de ocupar um lugar desdenhado e con- tudo essencial no universo literário, Valery Larbaud tentou reabilitar a função de tradutor. Estabeleceu dessa maneira a impressionante 42. Em várias enciclopédias, Larbaud é primeiro mencionado como "escritor", e Coindreau,
nem mesmo citado.
43. V. Larbaud tentara assim defender a tarefa dos tradutores, proporcionando-lhes, ao . .
c Jerúnimu.
provocada por sua é "aquele que deu a Bíblia ao
mundo ocidental e o grande viaduto que liga a Roma, e Roma a todos os povos de línguas românicas Que outro tradutor levou a bom termo um empreendimento tão colossal e com tão grande sucesso, e tão amplas no tempo e no espaço e palavras de suas louvam o Senhor ao som
dos guitarras nos e
nos confins, onde a fala das camponeses da encontra a falados índios
V. Larbaud. de p. 54.
V. Larbaud, Ce vice lecture. op. cit., p. 36-37.
genealogia dos franceses, isto é, de todos os que, tradutores e bilíngües, facilitaram a passagem de uma língua a outra e participa- ram desse modo na conquista da autonomia (baseada no conhecimen- to mútuo e na consagração recíproca) de dois grandes espaços literários, ou seja, de sua unificação progressiva: "Foi quem tudo come- çou, que fundou a venerável Ordem dos Intérpretes do Pensamento inglês. Ordem realmente venerável, porque (para nos atermos à Fran- ça), contou, além de seus grandes representantes e de suas gerações de especialistas escritores ilustres e grandes poetas como
briand, Vigny, Hugo, Sainte-Beuve, Baudelaire, Laforgue, Mallarmé e Marcel Schwob Porém foi o homem por meio do qual se realizou o grande destino póstumo de Shakespeare e o construtor dessa ponte invisível que ligou a vida intelectual da Ingla- terra à do continente. Seu recorde é
Quando a autotradução é impossível, o tradutor é um
chave, toma-se quase um duplo, um ego, um autor substituto, encarregado de transpor, de trans-portar, um texto de uma língua desco- nhecida e pouco literária para o próprio universo da literatura. O caso do polonês Gombrowicz é comprobatório a esse respeito: exilado na Argentina, onde permanecerá 24 anos (entre 1939 e começa, exatamente como Strindberg e como Beckett mais tarde, por traduzir seus textos poloneses para o espanhol, com a cola- boração de alguns amigos. Isso permite-lhe publicar Ferdydurke, em 1947, e O casamento em 1948, em Buenos Aires. Em seguida, outra etapa ou segundo grau na busca do reconhecimento específico, ele prio traduz para o francês, com o auxílio de duas francesas, O casa-
mento, e envia o texto datilografado a Albert Camus e a Jean-Louis Barrault, assim como o texto polonês a Buber. de 1951, passa a ser colaborador da revista polonesa de Paris, Kultura. Nela, é
publicado pela primeira vez seu romance Trans-Atlantyk, sob forma de folhetim, em polonês. Essa primeira etapa parisiense permite-lhe publicar em livro Trans-Atlantyk e O casamento (sempre em polonês) na coleção "Bibliothèque de Kultura", do Institut Littéraire de Paris (em 1953). Ele sabe que o acesso literatura passa necessariamente 45. p. 31-32.
por Paris: "Parece que na Polônia lêem-me às escondidas", escreve a Maurice Nadeau em 1957. "Pelo menos uma boa notícia. Mas é de Paris que tudo deve Constantin Jelenski torna-se então inter- mediário, tradutor, introdutor de Gombrowicz em Paris. Instalado na capital francesa, membro do secretariado do Congresso pela Liberda- de da Cultura e da redação da revista Jelenski é, nos anos 50, "o duplo atuante de Gombrowicz", segundo os próprios termos de seu compatriota Não apenas traduziu, como também prefa- ciou, comentou. escreve Gombrowicz em seu
Berlim, "demolindo minha jaula argentina, fez-me ponte para E acrescenta adiante: "Cada edição dos meus livros em lín- guas estrangeiras deveria levar o timbre 'graças a
dos anos 50, e das primeiras tentativas de Jelenski para que o conhe- cessem, vivendo na Argentina, Gombrowicz compreende que existe uma chance de alcançar o reconhecimento literário por meio dele: "Jelenski
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quem é? Ergueu-se em meu horizonte, longe, bem lon- ge, em Paris, e lutando por mim. Há muito não vejo-
talvez jamais tenha visto-
uma confirmação tão decidida, tão desinteressa- da do que sou, do que escrevo [...]. defende-me palavra por palavra diante da emigração polonesa. Trabalha para conquistar-me todos os triunfos que lhe oferece a situação que forjou para si em Paris e seu prestígio crescente na alta sociedade intelectual. Percorre os edi- tores com meus manuscritos. Já conseguiu conquistar para mim um punhado de partidários, e não dos Por meio do caso de Gombrowicz, que também passa da autotraduçãosl à mediação de um tradutor-introdutor, que se toma uma espécie de alter ego agindo no exterior com poder e como porta-voz, vê-se que a questão da tradução46. Maurice Nadeau, leur Paris, Michel, 1990, p. 343.
47. Paris, 1988,
16.
48. Witold Gombrowicz, bis, Paris, Bourgois,
1968, 55-56.
49. W. Gombrowicz, vol. 1981, 62.
50. W. Gombrowicz, Joumal, I, Bourgois, 1981, p. 366. 51. tradução de para o francês 6 por sinal obra do
(sob a pseudônimo de assistido por jornalista francês
deve ser considerada e analisada como uma espécie de emergência progressiva sobre a qual o próprio escritor pode intervir, direta ou in- diretamente, de muitas maneiras.
Se o escritor, duplo ser à espera d e tradução e obrigado a passar pela mediação necessária do tradutor, domina o suficiente a língua alvo para rever sua tradução, muitas vezes - como vimos no caso de Strindberg - chega a colaborar ele mesmo com a tradução de sua obra. É principalmente o caso de Joyce, que encontrou em Valery Larbaud ao mesmo tempo um introdutor, um tradutor e um consagrador único. O nome e o prestígio de Larbaud, entusiasmado por sua leitura dos primeiros episódios de Ulisses, publicados em
The Little Review, sua proposta de levar a bom termo e ainda super- visionar a tradução do livro, sua conferência na Maison des amis des livres em dezembro de 1921 -muitas vezes retomada e até traduzida para o inglês para a revista The prova de que a consagra- ção literária que permite existir literariamente em outro lugar -, provocam, por um lado, a decisão de Sylvia Beach de trans- formar [a livraria] Shakespeare and Company em editora com o úni- co intuito de publicar Ulisses em versão original, e, por outro, a decisão de Adrienne Monnier de editar uma tradução francesa da obra. Embora sua fama já fosse grande nos meios literários saxões - principalmente entre os exilados americanos de Paris -,
Joyce estava, no início dos anos 20, impossibilitado de publicar
Ulisses: seus textos eram considerados escandalosos e até então ha- viam sido editados por pequenas editoras que se deparavam com as imposições das censuras britânica e americana. Os números de The Little Review, onde o romance saía em episódios, eram regulamente apreendidos e queimados por obscenidade, até que o secretário da New York Society for the Prevention of Vice conseguisse que a pu- blicação fosse definitivamente proibidas2. Portanto, somente graças às instâncias consagradoras de Paris é que Ulisses se beneficia de dupla publicação; o livro, porém, só encontra editor em língua origi- nal após o veredicto crítico de um grande tradutor.
52. note I'histoire du texte", in James Joyce, Paris, "Bibl. de 1995,
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