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O s "ladrões de fogo"

No documento Casanova - República Mundial das Letras (páginas 160-165)

Vimos que a centralidade e o crédito literários de uma língua eram avaliados pelo número de poliglotas literários que a lêem sem recorrer

à tradução: quando os textos literários, fora da esfera nacional, não são lidos pelas instâncias centrais a não ser traduzidos, ou seja, quando os próprios intermediários literários não conseguem apreciá-los em sua versão original, então diante de uma verdadeira "língua sem- pre) traduzida": pensando no no no

no gaélico, no ídiche

...

Nas regiões muito desprovidas literariamente, como a Somália de Nuruddin Farah, o Congo de Emmanuel Dongala, a República de de Abdourahman Waheri, os romancistas, es- critores em línguas quase inexistentes no planeta literário, conse- guem existir paradoxalmente tomando-se "escritores traduzidos". São então obrigados a adotar a língua literária importada pela colonização (a "língua estrangeira culta", para repetir a expressão do escritor do Daomé Couchoros). Porém, nessa língua obrigatória e imposta, elaboram uma inteiramente voltada para a defesa e ilustração de seu país e de seu povo. Para eles, o uso literário da língua colonial não é um gesto assimilador. Provavelmente poderiam assumir para si as palavras de Kateb Yacine que afirmava em 1988: "Escrevo em francês para dizer aos franceses que não sou

Entrevê-se o patético de sua situação no romance de Nuruddin Farah, primeiro escritor somaliano de língua inglesa, Maps, quando escreve por exemplo: "Meu coração sangrava com a idéia dos milhões de nós que havíamos sido conquistados e deveríamos permanecer conquista- dos para sempre, dos milhões que deveriam permanecer povos tradici- onais e, além disso, povos do situação lingüística de Farah é particularmente complexa. Em um ensaio chamado Childhood of my

Schizophrenia, evoca seu multilinguismo, produto do fato de perten- cer a um povo colonizado por colonizados: "Em casa falávamos língua materna desse povo colonizado por excelência. Mas líamos e

5 . tornou-se cidadão do Togo em 1940. Citado por

livres, Paris, CNRS 1995, 156.

6. Cf. K. Yacine. p. 132.

escrevíamos em outras línguas: o árabe (a língua sagrada do Corão), o amárico (a de nosso senhor colonial para saber melhor o que pensa) e o inglês (língua que um dia poderia permitir-nos penetrar em um mundo de significação mais vasta, e leiga). Por esse motivo, suspei- to, coube-me, tendo recebido esse tipo de educação em minha infân- cia, tendo nascido no meio de um século de contradições, dizer o sentido do que acontecia, tentar registrar nossa história em um gêne- ro não mais oral, mas escrito. Disse como os meus estavam ausentes da lista de chamada da história do mundo como no-la ensinavam Com tudo isso em mente, comecei a escrever

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com a esperan- ça de permitir pelo menos à criança definir sua qualidade de

outro, isto é, sua identidade feita de

Nuruddin Farah, descendente de uma cultura de tradição oral, tor- nou-se a princípio escritor árabe: o foi estabelecido na sua forma escrita muito recentemente, e é em árabe que descobre, ado- lescente, Victor Hugo e Dostoiévski e redige seus primeiros ensaios autobiográficos. Nos anos 60, porém, no momento de adquirir uma máquina de escrever, opta pelo inglês, tornando-se assim o "primei- ro" escritor somaliano.

Pela mesma lógica, mas em um contexto histórico e político com- pletamente diferente, deve-se compreender a situação ambígua do gaélico na Irlanda do século A reivindicação lingüística e cultural da Liga Gaélica foi um momento essencial da constituição do espaço literário irlandês na década de 1890. O gaélico, porém, acumulou tão pouco crédito desde sua exumação por intelectuais católicos que não conseguiu conquistar, apesar de sua imposição como segunda língua nacional após a independência, uma verdadeira existência literária in- ternacional. No final dos anos 30, a situação dos escritores irlandeses que haviam optado pelo gaélico era descrita dessa maneira: "O escritor gaélico contemporâneo encontra-se portanto, mais do que qualquer outro, diante desse dilema: ou jamais ser publicado; ou agradar não tanto ao público, mas ao organismo que se interpõe entre esse público e ele Segue-se que o talento original, independente, livre, encontra-se diante de tamanhos obstáculos, que muitas vezes renuncia à vida das letras, ou joga-se, para viver, na tradução; a não ser que 8. N. Farah, de ma schizophrénie", p. 6. O grifo é meu.

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decida escrever em É nesse sentido que se pode compreender por que muitos escritores, dramaturgos e poetas gaélicos foram obri- gados a "converter-se" ao inglês (ou, ao contrário, por que hoje restam tão poucos criadores gaélicos na Irlanda).

Da mesma maneira, o romancista e teórico da literatura sul-africana Njabulo Ndebele tentou inicialmente aplicar, após ler Joyce, a técnica narrativa do "fluxo de consciência" na língua zulu para proporcionar modernidade literária a essa língua em emergência literária e sair das simples denúncias da literatura militante antiapartheid. Tentou por- tanto levar uma língua quase totalmente sem crédito literário ao que considerava ser o ponto máximo da modernidade literária, isto é, às normas reconhecidas no de Greenwich. Mas logo compre- endeu a dificuldade de tal empreendimento que, paradoxalmente, só sustentaria sua existência literária com a tradução inglesa. Na ausên- cia de qualquer "tradição de modernidade", de qualquer público capaz de compreender seu projeto, de qualquer meio literário apto a

seu empreendimento revelou-se vão ou mesmo anacrônico, Por isso, em seguida, abandonando essa tentativa extrema, trabalhou para en- contrar em inglês, sem mediação, um caminho específico da narração sul-africana negraf0

. Hoje um dos escritores negros de língua inglesa mais famosos da África do Sul, está portanto "traduzido" sem ter pas- sado pela etapa da tradução no sentido estrito".

Pode também acontecer que, pelo fato da colonização ou da domi- nação cultural e lingüística, o escritor dominado não tenha escolha e, por não dominar a língua de seus ancestrais, não consiga escrever em outra língua a não ser no idioma colonial. Pode-se então dizer que traduz a si mesmo, definitivamente, para entrar no universo literário. Grande número de escritores irlandeses de língua inglesa do início do século ignorava o gaélico; da mesma forma que inúmeros intelec- tuais argelinos ignoravam ou não dominavam o suficiente a língua árabe para tomá-la uma língua de escrita quando da independência.

A. conremporaine. Paris, Hachette. 1939, p.

10. Ndebele, sur Les Temps

n" junho-agosto 1986. p. "La Ou de 708, abril de 1988, p. 52-71.

Para muitos criadores, a adoção da língua da colonização como língua de escrita acarreta alguns problemas devido ao seu vínculo com o país de origem e sua vontade de fazê-lo existir política e lite- rariamente. Essa língua onipotente é para eles uma espécie de "pre- sente envenenado" ou roubo instituído. O tema do "roubo", que ilustra bastante essa espécie de ilegitimidade, é quase constitutivo dessa po- sição difícil e surge em contextos políticos e históricos muito diver- sos. A força das noções herdadas das teorias herderianas (mas hoje tão integradas à reflexão política e cultural nacional que não sen- tidas como tal) conduz a operar uma correlação necessária entre gua, nação e identidade, e incita a considerar ilegítima uma língua não específica. "Quando você está situação do colonizado, é ins- tado a usar essa língua que atribuíram, mas da qual é apenas usufrutuário e não proprietário legítimo, apenas um usuário", afirma o escritor argelino Jean "Sabe-se", escreve, "que os co- lonizados que puderam beber das grandes obras não são, todos eles, herdeiros mimados, e sim ladrões de fogo."'" intelectual prove- niente de um país colonizado apropria-se de maneira "ilegítima" do "benefício da língua da civilização da qual não é o herdeiro legítimo. E, consequentemente", prossegue Amrouche, "é uma espécie de

Tomamos a encontrar essa noção de roubo de língua entre todos os dominados literários despossuídos de uma língua própria e principalmente, como veremos, em que, como judeu checo de língua alemã, está na mesma relação de despossessão, de ilegitimi- dade e de insegurança com o alemão quanto, por exemplo, os escri- tores argelinos com o francês1'. Embora seja hoje um escritor

integrado e consagrado pelas instâncias literárias londrinas, encon- tramos nos textos de Salman Rushdie o mesmo tema da culpa, isto é,

da traição: "O escritor indiano", escreve, "quando olha de novo para a Índia, sente-se um pouco culpado Aqueles dentre nós [os

12. Amrouche, "Colonisation langage". ou

de Tassadit Yacine Paris,

1994, p. 332.

13. Citado por M. Dib, "Le Voleur de feu", p.

14. op. p. 329.

15. S. Rushdie, op. p. 28.

critores indianos] que empregam a lingua inglesa, fazem isso apesar de nossa atitude ambígua com relação a ela ou talvez por causa dela, talvez porque não consigamos encontrar nessa luta lingüística um reflexo das outras lutas que se desenvolvem no mundo real, lutas entre as culturas dentro de nós mesmos e as influências que operam em nossas sociedades. Conquistar a lingua inglesa talvez seja rema- tar o processo de nossa

A tempestade de Shakespeare foi muito comentada, principal- mente nos países de lingua inglesa", como peça profética que descreve, com todos os seus refinamentos, os mecanismos de colo- nização e sujeição (excelente exemplo prático de desvio e revira- volta do capital literário mais nobre do colonizador). A teoria do "presente envenenado" foi amplamente debatida a partir da fala de Caliban que, respondendo a Prospero, o senhor, que afirmava: Cuidei pra que falasses e ensinei-te isto e aquilo. Quando nem sabias, selvagem, o que eras, resmungando como uma fera, eu te dei objeti- vos e meios de-expressá-los. Mas tua raça, mesmo aprendendo, tinha o que almas boas não podem suportar", responde: "Agora eu sei fa- lar, e o meu proveito é poder praguejar. Que a peste o pegue, por me ensinar sua A ambivalência fundamental presente nessa estrutura de dominação explica a importância e a violência passional dos debates em torno da questão lingüística que dilaceram todas as nações pequenas.

É verdade que o uso da lingua dominante é paradoxal e contradi- tório: é tão quanto liberador. Na falta de qualquer capital

16. Os analistas das literaturas africanas observam contudo que de maneirageral, nos países submetidas ao regime colonial a relação dos escritores com a lingua colonial parece menos tensa que nos países colonizados pela França, e que a questão da escolha da lingua foi vivida de maneira menos Deixando mais espaço a educação indígena, insistindo para que as próprias comunidades assumissem sua edu- cação, ela permitiu que uma produção em por exemplo, se desenvol- vesse, ou estimula uma nova em Dito isso, a situação 6 muito matizada, e encontram-se muitos escritores das antigas colônias britânicas que (se) questionam a respeito da escolha da lingua. Cf. A. Ricard,

cit., p.

17. Mas também por exemplo por Jahn, Manuel de Paris, Resma, 1969, p.

18. Shakespeare, La ato I , cena Paris, 1959,

p. 1485. [Ed. bras.: A tempestade. Rio de Janeiro, Lacerda Editores, 1999, p. 36.1 319

nacional específico, os criadores das primeiras gerações, como R. K. Narayan na ou Mouloud na Argélia, usam com fre- qüência uma língua e recorrem a formas ou estéticas literárias muito tradicionais. Submetidos, pela sua dupla ilegitimidade (com respeito às normas nacionais e com respeito às normas centrais) aos usos mais tradicionais da língua e da literatura, isto é, às práticas menos inovadoras, portanto menos literárias, tentam conciliar uma posição de "combate nacional", para repetir os termos de com o literário da língua dominante na qual escrevem e contra a qual se organizam. Tentam, na língua da dominação, produzir uma literatura simétrica àquela que emerge como língua nacional e,

mente, assimilável ao literário nacional.

Quando, porém, o espaço literário conquista um pouco de autono- mia, o uso literário de uma das grandes línguas centrais torna-se, para os escritores dominados, garantia de pertencer imediatamente ao uni- verso literário e permite a apropriação de todo um capital técnico, de conhecimentos e habilidades próprios à história literária. Os que "optam" por escrever em uma língua dominante tomam uma espécie de "atalho" específico. E, como de imediato são mais "visíveis", isto é, pelo fato de empregarem uma língua "rica" e categorias estéticas a ela associadas, mais conformes às normas literárias legítimas, tam- bém são os primeiros a obter um reconhecimento internacional. As- sim, na Irlanda, Yeats logo obteve das instâncias críticas londrinas o reconhecimento que lhe permitiu impor-se na própria Dublim como líder, diferentemente dos poetas que haviam optado pelo gaélico. Da mesma maneira, os escritores mais célebres hoje no plano in- ternacional são os que escrevem em castelhano: M. V. Montalbán, Eduardo Mendoza, Felix de Azúa

...

O próprio Rushdie, famoso e celebrado antes mesmo da da qual foi vítima, é um dos escrito- res indianos mais reconhecidos na Inglaterra. Admite explicitamente "a maior parte das obras escritas na Índia são escritas em muitas outras línguas além do inglês; contudo, fora da índia, ninguém abso- lutamente se interessa por elas. Os anglo-indianos", deplora, "ocupam

Rachid qualifica a literatura argelina em seu conjunto, apesar de algumas grandes exceções como Kateb Yacine. de "literatura de professores de primeiro grau". Entrevista com O autor, novembro de 1991, março de 1994, p. 11-14. Cf. 323-325.

o primeiro plano

...

A 'literatura do Commonwealth' não se interessa por esse tipo de

Assim, apesar de seus múltiplos usos ambíguos, a lingua central pode ser reivindicada como uma nova "propriedade", contanto que a da herança impossível possa ser invertida. Como Joyce em seu tempo, e em uma situação (pós-)colonial bastante próxima, também reivindicara a lingua inglesa, não como sinal patente de uma domina- ção, mas como propriedade legítima, Rushdie afirma: "Há algum tem- po a lingua inglesa cessou de ser propriedade apenas dos

para ele, "o escritor indiano da Inglaterra simplesmente não tem a possi- bilidade de rejeitar a língua inglesa; na criação de uma identidade indo-britânica, a lingua inglesa é de importância central. Deve-se

a despeito de filhos da Índia independente não parecem considerar o inglês como lingua irremediavelmente corrompida por sua origem colonial. Empregam-na como uma lingua indiana

"Traduzidos da noite"

A partir do momento que uma lingua periférica detém (alguns) recursos específicos, assiste-se ao surgimento - e é um caminho bem próximo do precedente -de criadores que tentam produzir uma obra "dupla" e conseguir manter uma posição de meio-termo, sempre com- plexa e dilacerante. Essas obras "digráficas", para repetir o termo pro- posto por Alain escritas ao mesmo tempo nas duas línguas do escritor, a língua materna e a lingua da colonização, e seguem traje- tórias complexas de traduções, transcrições, autotraduções. Essa

20. S. Rushdie, op. cit., p. 86. Rushdie também sublinha que a

hegemonia do inglês, que se tornou "a língua internacional", não é mais apenas - e nem seja a principio - conseqüência da herança britânica. E também a língua dos Estados Unidos, doravante o pais mais poderoso do mundo. Essa ambigüidade permite escapar do domínio unicamente britânico e mantém a ambivalência entre a lingua inglesa e a lingua mundial, entre uma nova literatura das "homens tra- duzidos" e uma cultura internacional desnacionalizada.

21. Ibid, p. 87. 22. Ibid, p. 28. 23. Ibid, p. 81.

digrafia permanente e constitutiva o substrato, o motor, a dialética e muitas vezes até o tema da obra.

Sabe-se que Ahmadou Kourouma (nascido em 1927 na Costa do Marfim) escreveu seu grande romance Les

(1969) a partir de uma espécie de tradução francesa da língua a novidade e o caráter subversivo de seu empreendimento romanesco deviam-se em grande parte a sua recusa da fetichização do francês, do respeito ao "uso correto" e à sua literária de um francês malinqué, ou o que se poderia chamar sua "malinquização" do francês.

Entre os francófonos, um dos primeiros aempregar esse modo de expressão "dublado" é provavelmente o malgaxe

Rabearivelo (1903-1937). Autodidata a venerar todos os grandes poe- tas franceses que descobre sozinho - os parnasianos, em seguida Baudelaire e os simbolistas

-,

Rabeanvelo constrói sua obra em uma espécie de ida e vinda permanente entre o francês e o malgaxe, como uma espécie de tradução dupla. Desde o século existia em

uma língua escrita padronizada que permitiu a emergência de uma verdadeira poesia malgaxe pela qual Rabearivelo se apaixona: publica inicialmente um grande número de artigos e ensaios sobre a ne- cessidade de promover essa cultura; em seguida, traduz para o francês autores malgaxes antigos oumodemos Chansons

1939, póstumo). Aqui tomamos a encontrar a estratégia universal de constituição do literário nacional. Inversamente, e na mesma lógica, tenta apresentar a seu pais Baudelaire, Rimbaud, Laforgue, Verlaine, mas também Rilke, e traduz Valéry para o malgaxe. Publica depois, em francês, em Antananarivo e

suas coletâneas que se tomarão as mais célebres:

934) e Traduit de nuit (1935) com a menção "poemas trans- critos do hova pelo autor" (o hova é a língua escrita dos antigos so- beranos vindos dos altiplanos, de distante origem indonésia). A critica interrogou-se insistentemente, na lógica autõnoma da singu- laridade e da originalidade necessárias à consagração de um poeta, se

25. Cf. Bernard Magnier, Entrevista com Ahmadou Kourouma, junho de 1987.

26. Em Les de apresentados por Jean Amrouihe e

se tratava de uma verdadeira tradução e qual seria a versão original desses textos. A importância da literatura tradicional, e em particular

famosos outrora revelados por Jean Paulhan, é

em sua escrita que, ao mesmo tempo, tenta ultrapassar a posição entre criação coletiva e singular. Mas parece também que Rabearivelo criou uma espécie de nova língua, uma maneira de escrever o malgaxe cm francês

-

exatamente na mesma lógica que o "galicismo mental" de Rubén -, e que colaborou assim para a invenção de uma língua realmente tra-duzida, conduzida uma através da outra.

não escreve nem em francês nem em malgaxe, mas passando continuamente de uma língua a outra. O título de sua coletânea Traduit nuit é uma magnífica metáfora dessa tradução impossível, arran- cada de uma língua obscura, que atesta ao mesmo tempo sua existên- cia e fraqueza Enquanto poderia ter prosseguido pelo caminho enobrecedor da simples assimilação, Rabearivelo tem a audácia de empreender uma tarefa inédita, contra os nacionalistas, para quem tal empreendimento era uma traição à língua e à poesia malgaxes, e con- tra as normas do "uso correto" e da poesia acadêmica francesa: inven- tar uma poesia (e uma língua) malgaxe em francês, conseguindo assim não renegar nem sua língua original, nem a língua literária, que tam- bém é para ele a língua colonial. Seu empreendimento deu certo. Sua obra foi reconhecida com bastante rapidez, pois, já em 1948 figurava na Anthologie de poésie malgache de

française de Léopold Senghor, prefaciada por Jean-Paul Suicidou-se, porém, bem antes, em 1937, sem jamais ter obtido zação da administração colonial para ir à França.

Vaivém

As fronteiras entre as diversas opções são às vezes tão tênues que

é impossível Por isso, deve-se analisá-las como elemen- tos de uma mesma série contínua de estratégias. O "desequilíbrio" linguístico

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como se diz de um

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é constitutivo dessas posições ao mesmo tempo difíceis, marginais e prodigiosamente

fecundas. Aescolhadesta ou daquela opção, passagem sucessiva de uma língua a outra, pode ser objeto de oscilações, hesitações, remorsos ou arrependimentos. Não opções definitivas, mas uma série de possíveis, que dependem de exigências políticas e e da evolução da carreira do escritor (o grau de reconhecimento nacional ou internacional).

Quando a língua dominada tem uma existência literária

ma, um mesmo escritor pode experimentar sucessivamente diversas vias de acesso literatura. O argelino Rachid Boudjedra é assim autor de livros em parte escritos em francês e autotraduzidos para o árabe; depois, de textos escritos em árabe e traduzidos para o francês. Sua obra é portanto digráfica, já que trabalha continuamente entre duas línguas e na tensão de uma tradução, provavelmente ela também titutiva. Seus primeiros romances redigidos em francês, Répudiation

e valeram-lhe amplo reconhecimento. Em seguida, ele próprio traduziu o segundo romance do francês para o árabe, transfor- mando assim sua relação com o público argelino: como fora reconhe- cido pela França, pôde ser lido em seu país. Porém, as normas literárias e sociais são as mesmas na Argélia: "Em francês", explica, "pro- voca apenas ondas. Na Argélia, as pessoas leram-no e, quando o tradu- zi para o árabe, os escudos ergueram-se contra mim, porque, justamente, eu questionara o texto sagrado, fizera jogos de palavras com o texto

No documento Casanova - República Mundial das Letras (páginas 160-165)

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