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Lutava assim contra a literatura regionalista, muito importante no Brasil desde o final do século

No documento Casanova - República Mundial das Letras (páginas 176-178)

Macunaíma, o anti-Camões

72. Lutava assim contra a literatura regionalista, muito importante no Brasil desde o final do século

como entidade homogênea - um conceito étnico nacional e

Para evitar o realismo (e portanto as divisões) regionalistas, situa no sul as lendas do norte, expressões de gaúchos a estilos nordestinos, transplanta animais e vegetais. Mas, simultaneamente, inventa uma postura dupla muito refinada: enquanto reúne e enobrece explicitamente um até então monopolizado pela adota um tom irônico e que, em um modo literário, e sabota os funda- mentos do empreendimento.

Além da exposição de mitos e lendas, a cujo subtítulo é

"rapsódia", também é a oportunidade de uma espécie de inventário do

vocabulário brasileiro7'. Por (muitas

vezes qualificadas de de efeito em geral cômico, o escritor constitui um repertório de termos que se tomam especifica- mente brasileiros. Por serem empregados literariamente pela primeira vez, adquirem, graças ao procedimento de Mário de Andrade, uma existência dupla-nacional (entram no léxico "autorizado" ou pelo menos reconhe- cido) e literário (poético): "Perguntaram todos os seres,

tatus-mulitas da e das árvores, pra lagartixa que anda de pique com o ratão, pros

do no, os pecais e iererês da praia, todos esses entes vivos mas ninguém vira nada, ninguém sabia de Também ai é possível mos- trar que se trata de uma estratégia quase universal: já Du Bellay exortava os "poetas franceses" a enriquecer o vocabulário da poesia "francesa" recorrendo aos termos técnicos empregados pelas diversas corporações de oficio -palavras "modernas" que não poderiam existir ou mesmo ter equivalentes em latim e assim constituíam uma real especificidade (origi- nalidade) francesa: "Ainda quero avisá-los pari as vezes não apenas os sábios, mas todas as espécies de operários gente de mecânica, como marinheiros, pintores, gravadores outros, para serem instruídos em suas invenções, os nomes dos materiais, das ferramentas

73. Citado por M. Riaudel, op. p. 301.

74. Sabe-se que pouco mais tarde, João Guimarães Rosa (1908-1967) procederá de ma- neira muito parecida em suas narrativas e principalmente em seu grande romance, Grande Sertão: ao enriquecimento decisivo do vocabulário nacional brasilei- ro por meio de sua infinita enumeração de termos que designam a fauna e a flora do sertão.

75. M. de Andrade, Macunaima, c i t , p. 35.

os termos usados em suas artes e a de extrair dai essas belas comparações e descrições vivas de todas as

A melhor prova de que Macunaima é de fato um texto nacional, de ambição nacional, é que obterá imenso sucesso em todo o pais, mas sua circulará com dificuldade. É hoje um clássico brasileiro, inscrito no programa dos vestibulares, objeto de dezenas de obras cri- ticas, comentários, interpretações e glosas, adaptações cinematográficas e teatrais; chegou a ser tema de desfile de escola de Porém, atravessará as fronteiras com muita dificuldade e só terá acesso bem tarde ao reconhecimento internacional. No próprio ano do lançamento do livro no Brasil, Valery Larbaud pedira a um dos prin- cipais tradutores da literatura brasileira na França, para se informar sobre uma possível tradução do texto. Este respondeu a Larbaud em outubro de 1928: "Não, nada conheço de de Andrade; a seu conselho, escrevi-lhe, mas, ilustração do que dizia acima, jamais ele me deu sinal de Recusando-se a se submeter ao veredicto cen- tral e totalmente voltado para sua tarefa nacional, Andrade parece por- tanto preocupar-se muito pouco, como todos os fundadores literários preocupados em cortar completamente as anexações centrais sistemá- ticas, com possíveis traduções de seu Mas não é somente seu desinteresse constitutivo pela tradução que está em jogo: o desconhe- cimento de Macunaima na Europa é simetricamente a prova do etnocentrismo critico dos centros. Após uma tradução italiana em 1970

76. Du Bellay, La de op. p. 172.

No original, em francês arcaico: "Encores te veux-je advertir de hanter quelquesfois, mais toutes sortes d'ouvrien gens mecaniques,

fondeun, autres, inventions,

noms des en ars et metiers, pour tyrer

de ces comparaisons et vives descriptions de toutes (N.E.) 77. M. Riaudel, "Toupi or not Une aporie de p. 290. 78. Citado por critique de en France", in M. de

Andrade, op. p.

79. Ao contrário, seu compatriota Oswald de Andrade, que fazia muitas viagens a Paris, tentava ser conhecido e traduzido. Conseguiu conhecer Larbaud, apesar das advertên- cias de Mathilde Pomès, que considerava os latino-americanos "gente sedenta de re- nome europeu", e apresentou-lhe, além de suas próprias obras que não conseguiu que fossem traduzidas, a produção brasileira moderna. Deu-lhe de presente um volume das obras do grande romancista brasileiro do século Machado de Assis.

e espanhola em 1977, a primeira tradução francesa (assinada por Jacques Thiériot) sai em 1979 -ou seja, anos depois de sua publica- ção no Brasil

-,

após ter sido rejeitada por vários editores (apesar das opiniões favoráveis de Roger Caillois e Raymond Queneau). E, em vez de ser objeto de um reconhecimento tardio, mas bem merecido, a tradução francesa finalmente só se impõe a partir de um mal-entendido gigantesco: editada em uma coleção consagrada aos escritores de lín- gua espanhola do boom, ela é assimilada à sua estética dita "barroca", com a qual evidentemente não tem nenhuma relação.

A continuação de seu percurso, que de certa forma só amplifica esse projeto inicial, mostra, sem qualquer ambigüidade, a verdadeira nature- za de seu empreendimento literário e cultural nacional. de 1928, de fato, ano da primeira edição de sua lendária, Mário de An- drade consagra-se a coligir dados musicais, folclóricos, capazes de fundamentar e enriquecer a cultura nacional brasileira. Musicólogo, co- meça a pesquisar cantos e danças populares para um "dicionário musi- cal brasileiro" e publica regularmente obras de etnomusicologia, organiza o primeiro congresso da língua nacional cantada e participa da criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Será também,

em 1938, ao lado de Claude fundador da Sociedade de

Etnografia e Folclore do Rio de Janeiro.

O itinerário de de Andrade, tão nacional que sempre recusará deixar o Brasil para viajar para a Europa, não faz dele contudo um nacionalista triunfalista e ingênuo. Ao contrário: a desse "herói sem nenhum caráter", como indica o subtítulo da narrativa, é que ele é um "mau" selvagem, concebido ao contrário de todos os pressupostos do "herói" nacional, encarnação dos valores nacionais. Ele é desprovido de bons sentimentos, preguiçoso, ardiloso, mentiro- so, fanfarrão, briguento. Suas primeiras palavras serão: "Ai, que

guiça!". o Koch-Grünberg, é o

personagem de uma lenda taulipangue cujo nome é formado da pala- vra (malvado) e do sufixo aumentativo Macunaíma significa portanto imediatamente "grande malvado". E Mário de Andrade esco- lhe-o como personagem de sua narrativa e emblema nacional, porque ficou impressionado pelo fato de ser apresentado por Koch-Grünberg "como herói sem nenhum caráter". Considera esse termo no sentido de "caráter nacional" e, no prefácio inédito de 1926, explica seu proje-

to da seguinte maneira: "o brasileiro não tem caráter E com a pala- vra caráter não determino apenas uma realidade moral, entendo cipalmente a identidade psíquica permanente, que se manifesta em tudo, nos costumes na ação exterior no sentimento na língua na História na atitude, no bem como no mal. O brasileiro não tem caráter porque não possui civilização própria ou consciência tradicional. Os franceses têm um caráter e até os iorubas e os mexicanos. Que para isso tenha contri- buído uma civilização própria, um perigo iminente ou a consciência secular, o fato é que estes têm um caráter. O brasileiro não. Ele é como um rapaz de vinte anos: pode-se perceber as tendências gerais, mas ainda não é hora de afirmar nada E enquanto sobre essas coisas, dei com Macunaíma no alemão de Koch-Grünberg. E

naima é um herói surpreendentemente sem

A força do empreendimento de Mário de Andrade é sua lucidez e o que se poderia chamar seu nacionalismo critico e reflexivo. Nativo de um pais jovem e desprovido, Mário de Andrade sabe que pode lutar em pé de igualdade com as grandes nações culturais: sabe que a desigualdade não é apenas sofrida, mas incorporada, e que o passado de dependência, a pobreza especifica, a ausência de recursos literários impedem a formação de um "caráter" nacional, isto é, de um capital, a acumulação de recursos culturais nacionais, a crença comum em uma língua e uma literatura, objetos de piedade nacional

...

Evoca assim a desigualdade (isto é, a ausência de história, de cultura, de literatura, de língua) na figura de uma espécie de deformidade fisiológica: "O herói deu um espirro e botou corpo. Foi desempenando, crescendo, fortifi- cando e ficou do tamanho dum homem Porém a cabeça não molhada ficou pra sempre rombuda e com carinha enjoativa de A proclamação literária fundadora opera-se não em um gesto de cele- bração nacional ingênua, simples vontade de enobrecer a qualquer preço uma cultura nacional, mas inscreve-se em uma conduta deliberada de auto-irrisão e de interrogação cáustica sobre as fraquezas e as covar- dias nacionais.

Mário de Andrade inventa o "nacionalismo paradoxal", isto é, uma modalidade de pertença que, consciente dos múltiplos paradoxos e até

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