• Nenhum resultado encontrado

Contos, lendas, poesia e teatro nacionais

No documento Casanova - República Mundial das Letras (páginas 140-144)

A partir dessa "invenção" das noções de "povo" e de "nação" nas teorias herderianas e de sua reinterpretação pelos fundadores das pri- meiras literaturas os contos. as narrativas. os ooemas e as .

.

lendas populares coletados, reunidos, publicados em coletâneas, trans- formados e reescritos pelos escritores nacionais tomam-se o primeiro recurso literário quantificável. Os primeiros empreendimentos dos poetas do Renascimento irlandês resumem-se assim em tomar a coletar, em reavaliar, em difundir folk que supostamente exprimiriam o gênio específico do povo irlandês e exibiriam a "riqueza" literária na- cional irlandesa. Foi como porta-vozes do gênio popular irlandês que Yeats, Lady Edward Martyn, George A. E., Padraic Colum, John Millington Synge, James Stephens, etc. foram a princípio conhecidos e reconhecidos. Aos poucos essas narrativas tradicionais,

8. Assim, na segunda metade dos anos 20, "a literatura coreana apresenta dois pólos: a literatura proletária por um lado e, por outro, a literatura nacionalista que se constituiu para se à primeira". Kim "Histoire de moderne",

REVOLTADOS

exumadas e enobrecidas, servirão de matrizes para inúmeros poemas, romances, narrativas e peças de teatro que realizarão em todos os re- gistros (comédias, tragédias, dramas simbólicos ou camponeses) a ope- ração de "literarização" das narrativas tradicionais.

Nos países em que, como a Irlanda do final do século a taxa de analfabetismo é elevada e onde a tradição escrita é pouco abundan- te ou totalmente ausente, as tentativas para transpor para a escrita as práticas orais constituem meios para "criar" a literatura e transformar assim as práticas populares em "riqueza" literária. Trata-se, no sentido próprio, de uma operação alquímica difícil: transmutar práticas (cultu- rais ou populares, expressões ritualizadas de costumes e de tradições, alheias até então a qualquer avaliação literária, em "ouro" cultural ou em "valor" reconhecido que permite o acesso ao planeta literário. Essa transmutação específica repousa sobretudo em dois tipos de mecanismo: primeiro, como fizeram os "revivalistas" irlandeses, a coleta de contos e narrativas populares. Em seguida

-

e em geral no mesmo movimento -, o estabelecimento de um teatro nacional-popular.

Após a grande coleta populista e nacional européia liga- da à "revolução filológica" do século os intelectuais e escritores dos países egressos do processo de descolonização no Magreb, na Amé- rica Latina ou na África começaram, dentro da mesma lógica, um trabalho de construção de um literário, a partir de uma nova versão do modelo alemão revisitado pela etnologia. Puderam, eles . bém, dessa maneira, avaliar, exibir, analisar e transpor para a escrita práticas populares que haviam permanecido até então fora de qualquer reconhecimento nacional ou cultural. Assim, muitos romancistas arge- linos conduzem paralelamente uma obra etnológica e um projeto roma-

nesco. por exemplo, é ao mesmo tempo

romancista, antropólogo e dramaturgo. A princípio autor de romances célebres que, como reproduzem modelos literários codificados, ele trabalha aos poucos para a reapropriação de uma cultura específica. Na mesma época escreve peças de e empreende uma

9. Paris, Plon, 1952.

Mon absurde seguido de (peças de teatro em três atas).

Paris, 1973. Le Foehn ou Paris, 1982.

Argel. 1987,

Grammaire a ediçáo de coletâneas de contos e de kabyles Outros escritores, como Mouloud Feraoun (191 3-1 962) optam por uma obra romanesca quase etnológica: o natura- lismo descritivo de romances como Le Fils ou Terre et (prêmio Populiste de 1953) confere-lhes um interesse quase documental, próximo do ideal etnológico. Ao mesmo tempo, vemos que a reivindicação nacional assume a exibição das "riquezas" literá- rias da nação sob a forma da enumeração e da encenação dos contos e lendas que constituem sua herança, inclusive nas encenações roma- nescas. Mas, para que o processo de acumulação literária possa se de- senvolver, é necessário um protagonista que cumpra essa tarefa de maneira consciente e explícita, ou seja, um escritor que transforme conscientemente esse fundo popular em material literário.

o grande romance do brasileiro Mário de Andrade (publicado em é, assim, ao mesmo tempo, de acordo com as afirmações de seu autor, uma "antologia do folclore brasileiro"'%, veremos adiante em deta- lhe, um romance nacional.

Seria necessário estudar nesse sentido os contos iorubas de Daniel Olorunfemi Fagunwa em parte traduzidos por Wole Soyinka. Fagunwa é provavelmente o primeiro a transcrever para a língua ioruba a tradição oral de seu povo. Sua primeira narrativa,

a Thousand Daemons, mostra temas e principalmente técnicas de narrativa dos contos e fábulas tradicionais. Reeditado dezesseis vezes até 1950, tornou-se rapidamente popular nas escolas e entre o público de literatos nigerianos". Ora, esse texto "ingênuo", clássico popular e documento de quase-etnologia, só foi elevado à categoria de literatura e patrimônio nacional pela tradução e pelo comentário de Soyinka, ele

Paris, Maspero, 1976.

e contos da Paris, Bordas, 1980.

13. Paris, 1980. de Paris.

Maspero, 1969.

14. Paris, Éditions du 1954. 15. Paris, Éditions du Seuil, 1953.

16. Prefácio inédito da edição de 1926, citado por Michel Riaudel. "Toupi not toupi.

Une de ediçáo crítica, P. Rivas

1966, p. Ver p.

17. Cf. Alain Livre au Paris, Présence Africaine, 1975, p.

REVOLTADOS

próprio oriundo da tradição ioruba, que fala principalmente de uma "fusão de som e de Mais tarde, as narrativas de Amos que evocava, em umpidgin ingenuamente transposto para a escrita, histórias fantásticas, cheias de monstros, de fantasmas cruéis e de almas do outro mundo irrompendo na vida dos personagens, serão rejeitadas pelos intelectuais nigerianos da primeira geração que buscavam, por meio de uma hipercorreção lingüística e de uma reprodução das normas nar- rativas ocidentais, serem reconhecidos. Mas serão reivindicados primei- ro por Wole Soyinka - para quem a língua popular de Amos

representava uma espécie de ponto limite para as categorias do

mento ocidental: "Essa espécie de inglês selvagemente espon- tâneo atinge o ponto fraco dos críticos europeus, o tédio diante da própria língua e a busca habitual de novas - e depois por Ben um dos representantes da última geração de escritores nigerianos, muito notado pela crítica desde a publicação em Londres, em 1991, de seu romance The Esse livro rompe fragorosamente com o neo-realismo do romance nigeriano, mesclando um universo de fantasmas e espíritos - muito próximo dos de Fagunwa e

a uma descrição das mais realistas da contemporânea; faz apare- cer desse modo a de uma visão específica do mundo, mas também propõe uma via romanesca muito original, ligada a uma tradição cultural e religiosa. Próximo nisso do projeto de seus an- cestrais Ben recusa no entanto situar-se em um passado para fazer, ao contrário, desses mitos instrumentos de descrição e análise do presente.

O teatro, gênero literário intermediário entre oralidade e escrita, é

também uma das soluções literárias (quase) universais nas regiões com grande taxa de analfabetismo e pouco capital literário, como a Irlanda dos anos 20 ou certos países africanos de hoje. Arte oral por

18. D. Fagunwae W. The Edimburgo, Nelson, 1969.

19. Narrativas na The Wine Drinkard (Londres. Faber.

. .

Nova Fonteira, 1982.1

20. Citado por D. Coussy, op. p. 20. A tradução para o francês minha. 21. La de Paris,

o teatro é ao mesmo tempo arte popular e instrumento de "norma- lização" das línguas emergentes. Sua prática é diretamente ligada à

exumação e à valorização das narrativas populares tradicionais: por exemplo, na Irlanda, o teatro é uma das maneiras de transmutar as práticas culturais populares em recurso literário codificado e legítimo. Trata-se de fixar uma língua oral por sua passagem àescrita, em seguida de transpor a escrita para a oralidade literarizada e declamada. Em outras palavras, o teatro é a arte de transformar um público popular em público nacional diretamente solicitado pela literatura nacional nascen- te, o escritor podendo pretender a todos os recursos ligados à e à maior nobreza da arte literária - como fez Yeats -, ao mesmo tem- po em que atua no registro popular da oralidade. É também, portanto, a arte literária mais próxima das preocupações e das reivindicações políticasz2 que permite organizar uma subversão ou uma oposição política. Em muitos espaços literários em processo de formação, le- vantamento do patrimônio popular, reivindicação (e reinvenção) de uma língua nacional distinta da língua da colonização e criação de um teatro nacional são inseparáveis.

Percebe-se a ligação direta e essencial entre a escolha do teatro e a reivindicação de uma nova língua nacional comparando-se a situação de uma "pequena" literatura do início do século, a literatura ídiche vista por Kafka, com o itinerário de dois escritores pós-coloniais nos anos 70 e 80 pertencentes a duas áreas lingüísticas diferentes, cuja carreira é como que "cortada em duas" pela decisão (política e na) de se voltar para o teatro e pela adoção de uma nova língua popular: o argelino Kateb Yacine e o queniauo Ngugi

Vimos que Kafka descobre a língua e a cultura ídiche, inseparáveis do que ele próprio chamou o "combate nacional" dos judeus da Europa Oriental do início do século por meio do teatro. Um grupo de teatro ídiche proveniente da Polônia e de passagem por Praga

22. O cinema pode exercer o mesmo tipo de subversão e questionamento político nos países em que os regimes exercem fortes censuras sobre as artistas. 23. Pius Ngandu Nkashama destaca assim a importância a partir dos anos 60 de associa-

? .> que

em

Ngandu Nkashama, op. p. 326

conhecer em 1911 o movimento nacionalista ídiche: os autores judeus fazem-no entrever não apenas a obra dos pioneiros da nova literatura popular judaica, mas também a realidade de uma luta nacio- nal e política judaica cuja existência ele até então ignorava. Como no caso de todas as literaturas nacionais militantes, o combate político dos idichistas

-

que também adquire feições lingüísticas e literárias

-

exprime-se e sobretudo difunde-se pela Europa e pelos Estados Unidos por meio do teatro para um público de lingua ídiche muitas vezes analfabeto. Ora, Kafka se entusiasma diante do teatro ídiche, arte popular viva e dotada de todos os atributos reconhecidos pelas diversas teorias nacionais como "verdadeira" cultura nacional (lingua, tradição, lendas populares...). Seu assombro é uma medida exata do impacto do teatro em todos os movimentos nacionais: seu testemunho é por si uma ferramenta extraordinária de compreensão da forma que adquire a difusão das idéias nacionais por meio do teatro.

Já em 6 de outubro de 191 1, depois de assistir a uma primeira peça no dia 4 (e provavelmente também algumas encenações em es- creve em seu diário: "Vontade de conhecer um teatro iidische de maior porte, pois a representação da peça ressente-se quiçá do pequeno núme- ro de atores da assim como de poucos ensaios. Vontade também de conhecer a literatura iidische, que se acha ao que parece em posição de luta nacional que provoca cada uma de suas obras. Posi- ção, por isso mesmo, que nenhuma literatura, nem mesmo a do povo mais oprimido, conhece de um modo tão O diretor do po, irá introduzi-lo, nas poucas semanas de sua estada em Praga, nessa língua e nessa literatura. O teatro tem então para Kafka, embora ele desconheça a lingua ídiche, a importância de uma iniciação a uma luta emancipadora simultaneamente política, lingüística e literária. Encontramos, assim, a criação teatral em contextos históricos e políticos muito diferentes: é o mesmo que dizer que, longe de ser uma especificidade histórica e cultural, o recurso ao teatro em situações de emergência nacional impõe-se como solução quase universal para os fundadores literários. Kateb Yacine escritor argelino,

24. F. 100. O grifo é meu. bras.: Diários. Belo Horizonte, 2000, p.

consagrou-se em Paris como grande escritor da modemidade literária e da pesquisa formal com seu romance Nedjma escrito em francês. Quando da independência da Argélia, a partir de 1962, converteu-se às exigências políticas, estéticas e lingüísticas do espaço literário argelino em formação. Após um período de exílio, rompe to- talmente sua atividade literária anterior e, entre 1970 e 1987, diri- ge um de teatro (Ação Cultural dos Trabalhadores) que percorre a Argélia, participando dessa maneira da criação da nova literatura arge- lina. Mas para isso precisou fazer uma série de renúncias. Do romance mais formalista, passa para o teatro; do francês, converte-se ao árabe e milita por uma língua nacional liberada da opressão tradicional. Trata- se para ele de "fazer os argelinos ouvirem sua em suas di- versas línguas populares, o árabe dialetal e o tamazight: "Dada minha situação na Argélia", afirma, "é evidente que um problema político está por trás tudo, já que o país e a sociedade estão sendo criados. Os problemas políticos figuram em primeiro plano - e quem diz político diz público popular, público o mais vasto possível. Já que há uma men- sagem a transmitir, convém dirigir-se a um máximo de

outras oalavras. a escolha da forma teatral é diretamente vinculada à

mudança de espaço literário e de língua: ele tenta alcançar um público nacional por formas e por uma língua ao mesmo tempo orais e literárias que sejam próximas. "Como fazer desaparecer o analfabetismo? Como fazer para que sejamos algo além de escritores que falam um pouco acima da compreensão de seu povo, que são obrigados a empre- gar ardis para serem entendidos por seu povo, muitas vezes obrigados a passar pela França? É um problema político [O povo] gosta de se ver e ouvir-se agindo em um palco de teatro. Como não compreen- deria a si mesmo se fala por sua própria boca pela primeira vez há séculos? Mohamedprend ta valise é uma peça falada três quartos em árabe e um quarto em francês. Tão falada que nem mesmo a escre- vi ainda. Só tenho uma fita gravada dela.""

25. Carpentier, Poèrecomme

textos reunidos e apresentados por Carpentier, Paris, Editions du 1994, p. 9.

26. Kateb Yacine, n'est pas entrevista a Jacques p. 77-78.

O escritor queniano Ngugi wa Thiong'o (nascido em 1938) seguiu um bem próximo. Começou sua carreira de escritor sob o nome de Ngugi e publicou seus primeiros textos em inglês. Black

é uma peça de teatro representada em Uganda, principalmente em 1962, na época das comemorações da Em seguida, após a independência do Quênia em 1963, ele retoma seu nome africano e pu- blicaem inglês uma série de romances centrados na questão da identida- de e da história nacionais", apresentando os grandes momentos da história da sociedade gikuyu da qual é originário. Leciona na Universidade de Nairóbi em 1967, depois em Makerere, em Uganda, onde contribui para estabelecer um curso de literatura africana. Mas a violência política que aos poucos se instalou na região, as formas mais dramáticas da censura política, impedemque o trabalho literário se tome autônomo. Logo Ngugi denuncia o regime político autoritário de Jomo Kenyatta, fundador his- tórico do nacionalismo queniano, presidente da República de 1964 a 1978. Seu engajamento adquire então uma forma específica e radical: após em 1977, decide consagrar-se ao "povo da al- deia" e fazer uma espécie de "Retomo ao país custa de uma conversão

-

de acordo com o mesmo mecanismo que no caso de Kateb Yacine -, abandona o inglês em proveito de sua língua materna, o gikuyu, e decide consagrar-se ao teatro3'. Após a representação de uma de suas

peças, Ngaahika é detido em 1977, e enquanto está na prisão escreve também um romance em gikuyu, texto muito próximo da forma teatral, que será publicado em Londres pela Heinemann em 1980 sob o título Caithaani Mutharabaini, traduzido depois para o e em se- guida para o inglês" on the Cross). Após um ano de prisão, é

obrigado a exilar-se em Londres.

28. Jacqueline Pais, Présence

1991, p. 17.

29. Weep Child The A (1967).

30. Ngugi wa Thiong'o, of Londres, Heinemann, 1977; de Paris, Présence 1985.

31. Homecoming: on que

em 1972.

32. Cf. Neil p. 214.

33. wken I Wanr, Londres, Heinemann. 1982.

34. Londres, Heinemann, 1982. Jacqueline Bardolph, Ngugi Thiong'o, p. 26 e 58-59.

Da mesma maneira, no Quebec, no momento da emergência dos primeiros movimentos de independência e quando os teóricos da dependência quebequense se diziam "colonizados" pelas instâncias do Canadá inglês, uma peça de teatro, Les [As cunhadas] de Michel Tremblay, provocou uma reviravolta total e durável nas re- gras do jogo literário quebequense. Escrita em e montada em 1968, a peça, que apresentava um grupo de operárias de Montreal, teve sucesso imediato e retumbante. Tremblay proporcionava ao - lingua popular erigida em estandarte nacional -pela simples es-

crita teatral, um literário: o fato de ser falado em um palco de teatro acabava de legitimá-lo ao mesmo tempo como língua do povo quebequense e lingua literária.

No documento Casanova - República Mundial das Letras (páginas 140-144)

Outline

Documentos relacionados