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Gênese e estrutura de um espaço literário

No documento Casanova - República Mundial das Letras (páginas 195-197)

Ao contrário das representações históricas mais bem compartilha- das segundo as quais cada nacional, cada

literário, cada surgimento de uma obra singular não é redutível a nada além de si mesmo e continua sendo incomparável a qualquer outro acontecimento do mundo, o caso irlandês é um "paradigma", na medida em que realiza, de certa forma, em estado "puro" e em sua quase totali- dade, a gama universal das soluções literárias para sair da dominação.

Apresentado e analisado aqui para mostrar que o modelo proposto não é a construção teórica apriori de elementos abstratos, mas encon- tra sua aplicação direta no processo de formação de uma literatura particular, o exemplo da Irlanda também é essencial sob vários aspec- tos. Em primeiro lugar, demonstra que cada projeto literário, em sua própria forma, pode ser compreendido por si mesmo e em si mesmo a partir da totalidade dos outros projetos próximos ou concorrentes dentro do mesmo espaço literário. Não se pode explicar de forma

nem as escolhas mais Em segundo, permite explicar como e por que, a cada momento, é possível descrever o conjunto do campo literário irlandês a partir de cada uma das posições coexistentes, rivais e contemporâneas. É finalmente uma maneira de demonstrar que cada nova via aberta contribui com todas as que a precederam para formar e unificar o espaço literário onde aparece e se

29. Deve-se assinalar aqui as pesquisas recentes nesse sentido: Riesz. "La notion

de Le

Riesz e Alain Bayreuth, Bayreuth Studies, 11-20.

Isto quer dizer, ao contrário do que se poderia acreditar pela des- crição segmentada das diferentes vias abertas pelos escritores des- providos que apresentei aqui, que essas soluções singulares só adquirem todo o seu sentido caso se as restitua à história específica de um espa- ço literário, ele próprio inscrito em uma cronologia quase universal. Assim, a história das relações entre Beckett e Joyce, reduzida a proble- mática da singularidade absoluta (ela própria importada do sistema de crença em uma literatura produzindo-se no céu das idéias puras), con- siste em geral em demonstrar a independência artística do

Ora, se Joyce está ausente da obra da maturidade de Beckett (a partir dos anos não deixa de ser menos central em sua posição e suas opções estéticas: Beckett é um descendente, decerto paradoxal, tácito,

como tal, mas real, da invenção

Sabe-se que os teóricos do propuseram que a Irlanda entrasse em seu modelo geral e que se voltasse a colocá-la, como diz Edward "no mundo pós-colonial". Para essa nova critica, a literatura seria um dos principais instrumentos, sempre negado pela cri- tica pura, de justificação do e da dominação cultural. Para com as evidências internas reconduzidas, diz ele, pelo New e pela crítica Edward Said (em Orientalismo,

mais ainda em Cultura e imperialismo") tenta dar uma nova defini- da do fato literário da descrição de um inconsciente

que estaria funcionando particularmente no romance e inglês do século e do inicio do século A partir do

em que se percebe, por uma leitura que "contrapúntica",

no sentido de que ela inverte a posição comum do leitor na estrutura e no desses romances (quer se trate de Flaubert, de Jane Austen, de Dickens, de Thackeray ou de Camus a presença insistente, mas

do império colonial e dos colonizados, não se inais levantar a hipótese de um corte radical entre a literatura e os

as que relacionam os escritores do espaço literário irlandês na noção incerta de "influência". Cf. Manhe Fodasky Black,

in of Florida 1995.

I , Said, Paris, Éditions du

bras.: São Paulo, Companhia das Letras, 2001 and

Nova A. Knopf, 1993. [Ed. bras.: e imperialismo.

acontecimentos (políticos) do mundo. Apresença de uma representação colonial, pelo que ela assinala da realidade das relações de dominação cultural, revelaria a verdade política da literatura, até então ocultada. Said tem o grande mérito de internacionalizar o debate literário, consi- derando que o que chama "a experiência histórica" do Império é comum a todos, colonizadores e colonizados, e de recusar a separação

ca ou nacional como critério discriminatório único para estabelecer clas- sificações e delimitações de uma história literária revisitada pela experiência da colonização e, mais tarde, do imperialismo.

Em uma obra coletiva, and Literature,

Said prende-se portanto à figura de W. B. Yeats, descrito como "um dos grandes artistas nacionalistas da descolonização e do nacionalismo

e Fredric Jameson tentou mostrar que o

mo" literário - e principalmente as pesquisas formais do Ulisses de Joyce - eram diretamente ligados ao fenômeno histórico do "imperia- lismo": "O fim do modernismo [literário]", escreve, "parece coincidir com a reestruturação do sistema imperialista mundial em sua forma

São, em outras palavras, os primeiros a ligar a

ca de regiões dominadas por muito tempo e a emergência de novas literaturas nacionais. Promoveram dessa maneira um novo tipo de com- paratismo, tentando relacionar, a partir do modelo do que chamam "imperialismo", obras em países e contextos históricos muito diferentes. Assim, Said compara os primeiros poemas de Yeats aos do poeta chileno Pablo Da mesma maneira, tanto Said quanto Jameson recusam explicitamente o que Said chama, em Cultura e Im- perialismo, "as autonomias confortáveis", ou as evidências das interpretações puras e des-historicizadas da poesia e mais amplamente da literatura. Cada qual sua maneira reivindica a re-historicização, ou seja, a repolitização das práticas literárias, inclusive das mais forma- listas, como o Ulisses de Joyce. No mesmo sentido e a partir dos mesmos pressupostos críticos, Enda Duffy propôs uma leitura "nacional" do romance de Joyce, apresentando-o como um "romance pós-colonial",

32. E. Said, "Yeats et décolonisation". Fredric Edward

Said, universitaires de

p. 73.

33. E Jameson, ibid., p. 45.

34. E. Said, p. 87.

que colocaria em cena uma simples "alegoria nacional" e proporcio- naria uma forma narrativa aos combates ideológicos e políticos da Ir- landa do início do

Mas a cada vez realizou-se uma espécie de suspensão da

literária. Para Said, com efeito, "a conexão entre a política impe- rial e a cultura é surpreendentemente ao mesmo tempo que propõe análises de textos literários de uma extrema fineza, ele abando- na à crítica interna a questão da estética e da singularidade de cada obra. Portanto, somente poderemos realmente compreender o proble- ma do elo entre a forma literária e a história política se referirmos o texto ao espaço literário nacional e que intermedia os embates políticos, ideológicos, nacionais e literários. Assim, as análises propostas aqui tendem a questionar a possiblidade e a validade de uma leitura "política" do Ulisses de Joyce a partir apenas da cronologia factual do universo político irlandês. Se existe um espaço literário que conquista progressivamente sua autonomia e dota-se de seu próprio tempo, de sua cronologia específica, e que é parcialmente independen- te do universo político, não se pode aderir à idéia de uma correspon- dência, a termo, entre os acontecimentos políticos que ocorrem na Irlanda entre 1914 e 1921 - período da redação de Ulisses - e o texto de Joyce; pode-se menos ainda, como quer Enda Duffy, levar o paralelismo até enxergar "homologias" entre as "estratégias narrati- vas" do romance e as forças presentes durante o conflito irlandês des- ses anos. Tampouco é possível seguir Declan Kiberd, mesmo se tenta, em Ireland, ir mais longe propondo a idéia de que "as cabe- ças se descolonizam mais depressa que os e que se deve estudar os efeitos da dependência na literatura irlandesa bem além das datas oficiais da independência nacional. Sua abordagem nova e cati- vante do pós-colonialismo na Irlanda, que tenta também comparar com as literaturas da África e da reconduz igualmente a totalidade dos acontecimentos literários às estruturas e aos acontecimentos políti- cos

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"O povo irlandês foi o primeiro a se descolonizar no século

35. Enda Duffy, The of Minnesota 1994.

36. E. Said, p. 8. A para o francês é minha.

37. D. Kiberd, cit., p. 6. 38. p. 5.

-, sem levar em conta, em toda a sua complexidade histórica, a globalidade da estrutura do universo literário mundial e da posição que nele ocupa o universo literário irlandês.

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No documento Casanova - República Mundial das Letras (páginas 195-197)

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