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Captações de herança

No documento Casanova - República Mundial das Letras (páginas 144-146)

Ao lado do levantamento de contos e lendas e da difusão (que também é um reconhecimento) da língua comum pelo teatro, outras estratégias estabelecidas em contextos históricos e políticos diferentes oferecem-se aos escritores dominados. Parte dos recursos literários nacionais só pode ser criada e reunida a partir do desvio e da

ação dos bens Assim, recusando a imitação pura e sim- ples dos clássicos, Du Bellay aconselhava aos poetas "franceses" apropriar-se em francês dos estilos latinos para "enriquecer" sua lin- gua. A metáfora da "devoração" e da "conversão" que ele utilizava será retomada (isto é, reinventada) durante os quatro séculos da unifi- cação do espaço literário, de maneira quase inalterada, por todos os que, desprovidos de recursos específicos, tentam desviar em seu pro- veito parte do patrimônio literário existente3

'.

O aporte de patrimônio literário pode ocorrer por meio da impor- tação de técnicas e literários. É nesse sentido que se deve

35. Alguns analistas da cultura japonesa também propuseram o "fagocitose" para caracterizar um dos traços constantes da civilização japonesa: "Capturar, ingerir e digerir os corpos estranhos é o meio mais eficaz de conservar sua própria identidade ao mesmo tempo em que se enriquece com essa externa." Kato, Dialogues op. cit, p. 36-41.

REVOLTAWS

compreender um dos textos publicados nos anos 30 em Havana por Alejo Carpentier. Jovem cubano exilado em Paris (depois de Robert Desnos, de passagem por Cuba, tê-lo ajudado a fugir do ditador Ma- chado), Carpentier conhece os surrealistas, e em seguida tenta buscar uma especificidade caribenha e latino-americana, em particular adap- tando o "maravilhoso" de Breton ao que mais tarde chamaria - após o "realismo mágico" de Uslar -de "realismo Em um artigo da revista Carteles, puhlicada em Havana, "América ante la joven literatura europea", no qual comentava o primeiro número de uma revista de língua espanhola editada em Paris

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Imán (abril de 1931) -, do qual era diretor de redação3', Alejo Carpentier

uma espécie de manifesto fundador da literatura latino-americana, equi- valente exato de A defesa e ilustração da língua francesa: "Toda arte necessita de uma tradição profissional Por isso é necessário os jovens da América conhecerem a fundo os valores representativos da arte e da literatura modernas da Europa; não para realizar um trabalho laborioso de imitação e para escrever, como muitos fazem, pequenos romances sem calor ou caráter, copiados de algum modelo de além-mar, mas para tentar aprofundar as técnicas pela análise e encontrar métodos de capazes de traduzir com mais forçanossos pensamentos e sensibilidades de latino-americanos. Quando Diego homem no qual palpita a alma de um continente, diz-nos 'Meu mestre

essa frase demonstra-nos que seu pensamento não está longe das idéias que acabo de expor. Conhecer técnicas exemplares para tentar adquirir uma habilidade semelhante e mobilizar nossas energias para traduzir a América com a maior intensidade possível: esse deverá ser nosso credo o tempo todo para os anos vindouros, mesmo que não disponhamos na América de uma tradição de

36. Carpentier sua famosa teoria do "real no prefacio de Reino de mundo em 1949. bras.: O reino niundo. Rio de Janeiro,

Brasileira, 1985.1

37. A revista terá um único número em virtude da econômica que afeta então tanto o continente americano quanto a Europa. C. C.

de de 1940 nos p. 47. 38. mexicano o mais eminente dos de seu país. 39. A. Carpentier, "América ante joven literatura europea". cit., p. A tra-

dução para o frances é minha.

Alejo Carpentier foi ao mesmo tempo condutor, promotor e ator da constituição do literário e artístico latino-americano, tomando- se ele próprio um dos grandes romancistas desse continente. Com aquela espécie de lucidez própria dos intelectuais divididos entre duas cultu- ras, constata sem rodeios uma sujeição total da América Latina. Funda- dor de uma autonomia decisória, seu manifesto assinala a abertura de uma nova área literária. Sessenta anos depois, sabe-se que essa revolu- ção cultural se realizou de fato, que o texto de Carpentier era uma

que era o prenúncio, pois sua proclamação fora feita, de uma literatura legitimada e reconhecida no mundo inteiro, coroada por quatro prêmios Nobel e que conquistou uma verdadeira autono- mia estética na medida em que se constituiu em tomo de uma estilística comum a todo um grupo de escritores. O sucesso dessa reapropriação encontra seu princípio em um "desvio" inicial de recursos que permitiu que os escritores entrassem na competição e se libertassem da submis- são estética acumulando aos poucos, ao longo de gerações sucessivas, o capital capaz de emancipar essa nova literatura. Por isso, a única maneira, segundo Antonio Candido, de superar a dependência constitutiva da América Latina é a "capacidade de produzir obras de primeira ordem, influenciadas, por modelos estrangeiros imediatos, mas por exemplos nacionais anteriores No caso brasileiro, os cria- dores do nosso Modernismo derivam em grande parte das vanguardas européias. Mas os poetas da geração seguinte, nos anos de 1930 e 1940, derivam imediatamente deles - como se dá com o que é fruto de in- fluências em Carlos Drummond de Andrade ou Murilo Mendes Sendo assim, é possível dizer que Jorge Luis Borges representa o pn- meiro caso de incontestável influência original, de maneira ampla e reconhecida sobre os países-fontes através de um modo novo de conceber a Em outras palavras, só a partir de uma primei- ra acumulação literária, ela própria possibilitada por um desvio de he- rança, pode surgir uma verdadeira literatura específica e autônoma.

Concebido e pensado a posteriori como ato criador de fundação cultural e independência intelectual, o "realismo mágico" foi uma es-

40. Antonio Candido, et et

de de p. bras.: A noite e

ensaios. Paulo, Atica, 1989, p. 153.1

tratégia de gênio e um ato de violência. O advento de um grupo esteti- camente coerente no final dos anos 60 impôs, aos olhos das instâncias críticas internacionais, a idéia de uma verdadeira unidade

em escala continental, até então desdenhada nos centros de decisão. O prêmio Nobel outorgado a Gabriel García Márquez em 1982 só con- firmou esse reconhecimento unânime, já iniciado pela consagração de Miguel alguns anos antes (prêmio Nobel de 1967).

A profecia (ativa) de adquirira de imediato a forma da reivindicação de uma especificidade que dizia respeito ao conjunto do continente latino-americano (e das ilhas de língua espanho- la, entre as quais Cuba). E vê-se que tudo ocorreu segundo a trajetória que ele próprio traçara. Ainda hoje, a particularidade do caso latino- americano reside na constituição de um patrimônio literário não dentro de um espaço nacional, mas de continental. Graças a

de lingüística e cultural

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favorecida pelos exílios políticos que levavam os intelectuais a abandonar seu país e a deslocar-se por todo o continente

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a estratégia do grupo dos escritores chamados do boom (e de seus editores), no início dos anos 70, consistiu em proclamar uma unidade estilística continental, produto de uma suposta "natureza" latino-ameri- cana. Hoje, pode-se falar de um espaço literário em formação na escala de toda a América Latina: intelectuais e escritores continuam a dialo- gar ou debater além das fronteiras, e as tomadas de posição políticas ou literárias são sempre ao mesmo tempo nacionais e continentais.

Mas no estado de despojamento literário e linguístico em que se encontram alguns. espaços literários - principalmente pós-coloniais -, essa inevitável captação de herança pode adquirir tons patéticos. Assim, o romancista argelino Mohammed Dib (nascido em 1920) descreve, de modo ao mesmo tempo pungente e realista, a necessidade de o escritor desses países, desprovido de qualquer recurso específico, realizar um desvio simbólico: "A indigência dos meios que são atribuídos é tão impossível de imaginar que parece desafiar qualquer credibilidade. Lín- gua, cultura, valores intelectuais, escalas de valores morais, nenhum desses dons que se recebe no berço pode ou vai servir-lhe O que fazer? Ele se apodera sem hesitação de outros instrumentos, esse ladrão, não forja- dos nem para ele nem para os objetivos que pretende perseguir. O que importa? Estão ao seu alcance, ele os dobrará em função de seus desíg- nios. A língua não é sua língua, a cultura não é a herança dos ancestrais,

esses meandros de pensamento, essas categorias intelectuais, éticas, não têm validade em seu meio natural. Que armas ambíguas ele vai

No documento Casanova - República Mundial das Letras (páginas 144-146)

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