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Literatura, nação e política

DE UMA MUNDIAL DA

emergência dos primeiros Estados europeus e a formação das "línguas comuns" (que se tomaram em seguida "línguas Benedict observa até, na expansão das línguas vulgares como apoio ao mesmo tempo administrativo, diplomático e intelectual dos Esta- dos europeus emergentes no final do século e no início do século o fenômeno central que explica o surgimento desses Estados. Existe um vínculo orgânico, ou de interdependência, entre o surgimento dos Estados nacionais, a expansão das línguas vulgares (que então se tor- nam "comuns") e a constituição correlativa de novas literaturas escri- tas nessas línguas vulgares. O acúmulo de recursos literários arraiga-se portanto necessariamente na história política dos Estados.

Mais precisamente, é possível pensar que os dois fenômenos

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o da formação do Estado e o da emergência de literaturas em novas lín- guas

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nascem do mesmo princípio de "diferenciação". Os Estados europeus emergem aos poucos, distinguindo-se uns dos outros, ou seja, afirmando suas diferenças por rivalidades e lutas sucessivas, fazendo . aparecer ao mesmo tempo, a partir do século uma primeira forma de campo político internacional. Nesse universo político em formação que se pode descrever como um sistema de diferenças - no sentido em que os lingüistas falam da língua como um sistema fonético de diferenças -, a língua desempenha evidentemente um papel central de "marcador" de diferença. Ela toma-se também o ensejo de lutas que se situarão na interseção do espaço político nascente e do espaço lite- rário em formação8'. Por isso o processo paradoxal do nascimento da

literatura se enraíza na história política dos Estados.

A defesa específica (ou seja, especificamente literária) das línguas vulgares por grandes atores do mundo letrado na época do

79. Ver principalmente Daniel Baggioni, Paris. Payot, 1997. p. 74-77. Ele estabelece a entre "língua comum" e "língua nacional" para evitar qualquer confusão e anacronismo.

80. Benedict Anderson, sur

Paris, La Découverte, 1996. [Ed. bras.: Nação e consciência nacional. São Atica, 1989.1

Jacques pôde mostrar assim como as línguas foram aos poucos associadas, com muita lentidão, a (par meio dos mapas) delimitadas por "fronteiras

Daniel Revel, "La de français",

de André e Jacques Revel 1, sob

a direção de Revel, Paris. Édition du 1989, p.

cimento8', que logo adquire a forma de rivalidade entre essas "novas"

línguas (novas no mercado dos letrados), far-se-á inseparavelmente

no modo et de langue françoyse) e no

modo político. Nesse sentido, é possível dizer que as rivalidades espe- cíficas que aparecem no mundo intelectual europeu do Renascimento acabam fundamentando-se e legitimando-se nas lutas políticas. Da mesma forma, no século no momento da difusão da concepção de nação", as instâncias nacionais servirão, de certa forma, de alicerce fundador ao espaço literário. Por sua dependência estrutural, o espaço literário mundial constrói-se também por meio das rivalidades inter- nacionais inseparavelmente literárias e políticas.

Desde as premissas da unificação do espaço literário, os legados literários nacionais, longe de se constituírem nos limites e na

bilidade "natural" do "gênio" da nação, foram a arma e o ensejo que permitiram aos novos pretendentes entrar na concorrência literária internacional. Para lutar melhor umas com as outras, as nações centrais trabalharam, portanto, para promover definições e especificidades literárias, que em grande parte também são traços constituídos por oposição ou diferenciação estruturais. Seus traços dominantes só po- dem ser compreendidos muitas vezes, como no caso da Alemanha e da Inglaterra diante da França, por uma oposição explícita aos traços reconhecidos da cultura nacional predominante. As literaturas não são portanto a emanação de uma identidade nacional, elas são construídas na rivalidade (sempre negada) e na luta literárias, sem- pre internacionais.

Afirmar que o capital literário é nacional, ou que ele existe em uma relação de dependência do Estado e em seguida da nação, permite ligar a idéia de uma economia própria ao universo literária à de uma geopolítica literária. De fato, nenhuma entidade "nacional" existe por si mesma e nela mesma. Nada é mais internacional, de certa forma, que o Estado nacional: ele só se constrói em relação a outros Estados e muitas vezes contra eles. Em outras palavras, não é possível descrever

MUNDO DE UMA MUNDIAL DA LITERATURA

qualquer Estado, nem aquele que Charles Tilly chama "segmentado", isto é, em formação, nem, a partir de 1750, o Estado

(ou Estado nacional), ou seja, o Estado no sentido moderno, como uma entidade autônoma, separada, que encontra em si mesma o princí- pio de sua existência e de sua coerência. Cada Estado constitui-se, ao contrário, por suas relações, isto é, em sua rivalidade, em sua concor- rência constitutiva com outros Estados. O Estado é uma realidade relacional, a nação é inter-nacional.

Mais tarde, a construção (ou areconstrução) das identidades nacio- nais e a definição política da nação no decorrer do século - serão o produto de uma pura história autônoma revelando-se nos limites de histórias incomparáveis e sem medida co- mum. São as mitologias nacionais que tentam reconstituir (posterior- mente para as nações mais antigas) em singularidades autárquicas fenômenos que só se inscrevem de fato nas relações entre os conjuntos nacionais. Michael pôde mostrar dessa forma que é o anta- gonismo franco-alemão, verdadeiro "diálogo de inimigos", que per- mitiu a constituição dos dois nacionalismos. Segundo ele, a nação será construída em ligação e em oposição a um inimigo constituído como "natural". Do mesmo modo, em seu livro, B r i t o n s . Forging the N a t i o n . Linda Colley mostra que a nação inglesa se construiu inteiramente contra a França.

Mas o desenho dessa configuração dupla só considera a emergên- cia dos nacionalismos a partir de uma relação dual e guerreira. Ora, a estrutura das lutas nacionais mundo permite esboçar um espaço de rivalidades e competições bem mais complexo, um conjunto de lutas que podem ser travadas por objetivos e capitais diversos e através de- les: a luta pode ser literária, política, econômica

...

A totalidade do es- paço político mundial é o produto de rivalidades e lutas políticas cuja relação dual do confronto de inimigos históricos

-

tal como descrita

83. Paris, Éditions du

especialmente Etats p.

84. Michael Das der

und [ A pátria dos inimi-

gos], Stuttgart, 1992.

85. Linda Colley, New

Press, 1992.

por Danilo lição de anatomia entre os e os - não passa da forma mais arcaica e mais simples8'.

A

Porém, aos poucos, a literatura escapa do domínio original das instâncias políticas e nacionais para cuja instituição e ela contribuiu. A reunião de recursos literários específicos, que também é a invenção e o acúmulo de um conjunto de técnicas, de formas literárias, de possibilidades estéticas, de soluções narrativas ou formais (aquilo que os formalistas russos chamam de "procedimentos"), em suma. essa história específica (mais ou menos distinta da história nacional e da qual tampouco é dedutível) permite que o espaço literário alcance

vamente uma autonomia, que conquiste sua independência e suas leis próprias de funcionamento dentro das nações definidas politicamente. É quando a literatura consegue se desfazer de sua dependência política que ela passa a só se autorizar a partir de si mesma.

Os escritores -pelo menos parte deles -podem então recusar, ao mesmo tempo coletiva e individualmente, submeter-se definição nacional e política da literatura. O paradigma dessa ruptura prova- velmente é o "J'accuse!" de Ao mesmo tempo os embates e as concorrências escapando também às rivalidades

86. Danilo d'anatomie, 1993.

87. Nesse sentido, Michel Espagne conseguiu mostrar que, compreender as relações culturais entre a França e a Alemanha, e para evitar criar antíteses era

favorecer uma comparação multilateral e que essas muitas vezes se fazem através de um pais mediador, espécie de espaço neutro ou de .... .

neutro". Assim, nas relações entre a França e a Rússia, a Alemanha pode desempenhar o papel de uma "terceira cultural mediadora". Cf. sobretudo "Le

4, 1995: e "Le de

..

K. Dmitrieva e M. Espagne (orgs.). Paris, de Maison des sciences de 1996,

88. Efetivamente, no caso Dreyfus, rompe brutalmente com antes dele liga- va o escritor & nação, & honra nacional, ao discurso nacionalista, de modo a proclamar sua autonomia "traindo" o campo nacional francês. precisamente em nome de sua autonomia e de sua liberdade que ele pode proclamar a inocência de Dreyfus. Em outras palavras, trata-se da invenção de uma totalmente nova com o político: uma espécie de desnacionalizada" da literatura.

MUNDO

nacionais, adquirem sua autonomia. A conquista da liberdade do conjunto do espaço literário mundial concretiza-se portanto por meio da conquista da autonomia de cada campo literário nacional: as lutas e seus desafios liberam-se das imposições políticas para obedecer uni- camente à lei específica da literatura.

Assim, para dar o exemplo aparentemente mais desfavorável à hipótese proposta, o renascimento literário alemão no final do século

dos objetivos nacionais; é a forma literáriade

ção nacional ao mesmo tempo política e literária. A formação da idéia de literatura nacional na Alemanha explica-se em primeiro lugar pelo antagonismo político com a França, cuja cultura ocupava uma posição dominante na Europa. Sobretudo Isaiah Berlin mostrou que as formas específicas do nacionalismo alemão encontravam suas na humi- lhação alemã: "Os franceses dominavam política, cultural e militar- mente o mundo ocidental. Os alemães, humilhados e vencidos [...],

reagiram aprumando-se violentamente e recusando sua pretensa inferi- oridade. Compararam sua profunda vida espiritual, sua profunda hu- mildade, sua busca desinteressada de valores verdadeiros - simples, nobre, sublime

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à dos franceses ricos, mundanos, satisfeitos, poli- dos, sem coração e moralmente vazios. Esse estado de espírito chegou ao estado febril durante a resistência nacional a Napoleão e foi de fato o exemplo original da reação de uma sociedade atrasada e explorada, em todo caso colocada sob tutela, e que, ferida pela inferioridade apa- rente de sua condição, se voltava para os triunfos reais ou imaginários de seu passado e embriagava-se de sua cultura O desen- volvimento prodigioso da cultura literária alemã a partir da segunda metade do século está vinculado, em primeiro lugar, a desafios diretamente políticos: insistir na grandeza cultural era também uma maneira de afirmar a unidade do povo alemão para além de sua desunião política. Porém, escolhidas as armas, o objetivo dos debates, a própria forma que adquirem, a estatura dos maiores poetas e intelectuais ale- mães, sua criação poética e revolucionária para toda a Europa e para a própria literatura francesa, proporcionam-lhe aos poucos uma

89. Isaiah Berlin, retour de bâton. Sur montée du nationalisme",

sob a de Gil e Taguieff, Paris, Kimé,

1991, p. 307.

independência excepcional e um poder próprio. O romantismo é e não

é nacional. Ou melhor, é nacional a princípio para melhor se destacar de qualquer nacional. O conflito estrutural com a França gera eufemizadas e estritamente intelectuais que só podem ser com- preendidas então a partir da história dos dois espaços literários.

Segundo uma lógica semelhante, além das diferenças de tempo e lugar, os escritores latino-americanos conquistaram uma existência e uma consagraçáo internacionais que conferem a seus espaços literários nais (e mesmo mais amplamente ao espaço latino-americano) um reco- nhecimento e um peso no universo literário que não têm medida comum com os dos conjuntos políticos correspondentes no espaço político in- ternacional. Existe uma autonomia relativa do fato literário a partir do momento em que o patrimônio literário acumulado (as obras, o reconhe- cimento universal, a consagração de escritores designados como "grandes" que os criadores escapem ao domínio político- nacional. Por isso, como lembrava Valery Larbaud, não se pode sobre- por o mapa literário e intelectual ao mapa político, pois a história (assim como a geografia) literária pode reduzir-se à história política. Po- rém, principalmente nas regiões pouco dotadas de recursos literários, a primeira é sempre relativamente dependente da segunda.

Assim, o espaço literário mundial constrói-se e unifica-se segun- do um movimento duplo que, como veremos, organiza-se de acordo com os dois pólos antagonistas desse universo. Por um lado, um movi- mento de ampliação progressiva que acompanha o acesso das diversas partes do mundo à independência nacional. E, por outro, um movi- mento de conquista de autonomia, ou seja, de emancipação literária diante das imposições políticas (e nacionais).

A dependência original da literatura com relação à nação está no princípio de desigualdade que universo literário. Pelo fato de as histórias nacionais (políticas, econômicas, militares, diplomáticas, as...) serem não apenas diferentes mas também desiguais (por- tanto concorrentes), os recursos literários, sempre marcados com o selo da nação, eles próprios desiguais e desigualmente distribuídos en- tre os universos nacionais. Os efeitos dessa estrutura pesam sobre to- das as literaturas nacionais e sobre todos os escritores: as práticas e as tradições, as formas e as estéticas em curso em determinada nação

literária só podem encontrar seu sentido verdadeiro quando são relacio- nadas com a posição precisa do espaço literário nacional na estrutura mundial. É a hierarquia do universo literário que dá forma à própria litera- tura. Esse estranho edifício que reúne escritores que na maioria das vezes só têm em comum uma rivalidade estrutural

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ela própria sem- pre negada

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só se constrói aos poucos pelos conflitos específicos, pelas contestações das imposições formais e críticas. O universo lite- rário unifica-se portanto pela entrada de novos jogadores que têm em comum a luta pelo mesmo embate. O capital literário é o instrumento e o objetivo dessas lutas: cada novo "jogador", comprometendo na concorrência seu patrimônio nacional (único instrumento legítimo e autorizado nesse campo), contribui para "fazer" o espaço internacio- nal, para unificá-lo, ou seja, para estender o espaço das rivalidades lite- rárias. Deve-se acreditar no valor da aposta, conhecê-lo e reconhecê-lo para entrar no jogo, ou seja, na concorrência. Acrença é portanto o que permite ao espaço literário constituir-se e funcionar, a despeito e em virtude das hierarquias tácitas sobre as quais repousa.

A internacionalização que nos propomos a descrever aqui signifi- ca portanto mais ou menos o contrário do que se compreende normal- mente pelo termo neutralizador de "globalização", pelo qual se acredita ser possível pensar a totalidade como a generalização de um mesmo modelo aplicável em toda parte: no universo literário é a concorrência que define e unifica o jogo, ao mesmo tempo em que designa os pró- prios limites do espaço. Nem todos fazem a mesma coisa, mas todos lutam para entrar no mesmo curso e, com armas desiguais, tentar atingir o mesmo objetivo: a legitimidade literária.

Assim a noção de Weltliteratur foi elaborada por Goethe precisa- mente no momento da entrada da Alemanha no espaço literário inter- nacional. Pertencente a uma nação que, recém-chegada ao jogo, contestava a hegemonia intelectual e literária francesa, Goethe tinha um interesse vital em compreender a realidade do espaço onde entra- va, exercendo essa lucidez que todos os recém-chegados têm em co- mum. Não apenas, como dominado universo, percebera o caráter internacional da literatura, ou seja, seu desenvolvimento para fora dos limites nacionais, como também compreendeu de imediato sua nature- za de concorrência e a unidade paradoxal que daí resulta.

Um novo método d e interpretação

Esses recursos ao mesmo tempo concretos e abstratos, nacionais e internacionais, coletivos e subjetivos, políticos, e literários, são a herança específica que cabe como partilha a todos os escritores do mundo. Desde que se iniciou o processo de unificação do universo literário, cada escritor entra no jogo munido (ou desprovido) de todo o seu "passado" literário. Encarna e reatualiza toda sua história literária (principalmente nacional, ou seja, lingüística), e transporta consigo esse "tempo literário" sem nem mesmo estar claramente consciente dele, simplesmente pelo fato de pertencer a uma região linguística e a um conjunto nacional. É sempre portanto herdeiro de toda a história literária nacional e internacional que o "faz". A importância original dessa herança, que age como uma espécie de "destino", explica por que mesmo as obras mais internacionais, como as do escritor espanhol Juan Benet ou do iugoslavo Danilo referem-se em primeiro lugar, pelo menos como reação, ao espaço nacional do qual saíram. E seria necessário dizer a mesma coisa de Samuel Beckett que, embora seja decerto um dos autores mais aparentemente afastados de qualquer historicidade, pode ser compreendido em seu próprio itinerário, que o leva de Dublim a Paris, por meio da história de seu universo literário nacional: o espaço irlandês.

Não se trata aqui de evocar a "influência" da cultura nacional sobre o desenvolvimento de uma obra literária, nem de restaurar a história literária nacional. Pelo contrário: é a partir de sua maneira de inventar a própria liberdade, isto é, de perpetuar, ou transformar, ou recusar, ou aumentar, ou negar, ou esquecer, ou trair sua herança (e

tica) nacional que se poderá compreender todo o trajeto dos escritores e seu próprio projeto literário, a direção, a trajetória que tomarão para se tomar o que são. O literário e nacional é uma espécie de definição primeira, a e quase inevitável do escritor, definição que ele irá transformar (se necessário recusando-a ou, como Beckett, erguendo-se contra ela) por sua obra e trajetória. Em outras palavras, cada escritor situa-se, em primeiro lugar, no espaço mundial, pelo lugar que nele ocupa o espaço literário do qual saiu. Mas sua posi- ção também depende da maneira como herda a inevitável herança nacio- nal, das escolhas estéticas, formais que é levado a operar e que definem sua posição nesse espaço. Pode recusar a herança e tentar

MUNDO DE UMA MUNDIAL DA LITERATURA

No documento Casanova - República Mundial das Letras (páginas 30-34)

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