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A revolução herderiana

No documento Casanova - República Mundial das Letras (páginas 53-57)

Entre 1820 e 1920, ocorre na Europa o que Benedict Anderson chama a "revolução filológico-lexicográfica", ao mesmo tempo em que surgem movimentos nacionalistas. As teorias de Herder, enunciadas a partir do final do século e que se difundem rapidamente por toda a Europa, provocarão, por meio da oposição declarada ao poderio fran- cês, a primeira ampliação do espaço literário a toda a Europa. De fato, Herder não propõe apenas um novo modo de contestação da hegemonia francesa válido apenas para a Alemanha, ele põe em funcionamento uma matriz teórica que permitirá ao conjunto dos territórios domina- dos politicamente inventar sua própria solução para lutar contra sua dependência. Instaurando um vínculo necessário entre e língua, autoriza todos os povos ainda não reconhecidos política e culturalmente a reivindicar uma existência (literária e política) na igualdade.

A influência do modelo histórico e literário francês e a evidência da filosofia da história veiculada de maneira tácita mas poderosa pela cul- tura francesa eram grandes que Herder foi obrigado a forjar um ma- terial teórico e conceitual completamente novo. A obra que redige em 1774, Uma outra filosofia da História para contribuir para a

da humanidade, é uma máquina de guerra contra a filosofia de e sua crença explícita na superioridade da época "iluminada" do classicismo sobre todos os outros períodos da história. Herder

ao contrário a igualdade de valor das épocas passadas, em particular da Idade Médias3, afirmando que cada época, cada nação, detém sua singu- laridade e deve serjulgada segundo seus próprios critérios, toda cultura tendo, portanto, seu lugar e seu valor, independentemente do dos outros. Contra o "gosto francês", publica com Goethe e Von

Art und Kunst [Da maneira e da arte na qual exprime principalmente sua admiração pelo canto popular, por Ossian e por Shakespeare, que são, para ele, três exemplos da naturalidade e da força

78. E isso capital para compreender a inglesa. 79. L. Colley. Forging Nation, op. cit. 80. S. cit.

81. Ibid., p. 357. 82. Ibid., p.

83. Hagen observa as imensas conseqüências culturais da paixão nacional alemã

no da Idade Média e em a na

do estilo a respeito do qual os alemães "estavam de que era o única estilo propriamente alemão ao qual era preciso 'voltar"'. Etat Narion dans

de Paris, Editions du 1996, p.

em literatura. São igualmente três "armas" elaboradas contra o poder aristocrático e cosmopolita do francês: em primeiro lugar o povo, depois a tradição literária não procedente da Antigüidade latina

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contra o "artifício" e a "ornamentação" assimilados cultura francesa, Herder opta por pontificar uma poesia que seria ao mesmo tempo "autêntica" e "imediatamente popular" - e finalmente a Inglaterra. O esboço geral da estrutura do universo literário

em via de ser constituído permite compreender melhor por que os alemães sempre se apoiaram na Inglaterra e em seu capital mais impor- tante e incontestável: Shakespeare. A configuração das relações de força significa que os dois pólos de oposição ao poderio francês poderiam apoiar-se um no outro. Os ingleses serviram-se simetricamente da reavaliação de Shakespeare pelos românticos alemães para

em compensação, como sua grande riqueza literária nacional. Herder também procura explicar por que a Alemanha não tem ainda uma literatura reconhecida universalmente: para ele, toda "nação", assi- milada a um organismo vivo, deve desenvolver seu "gênio" próprio, e a Alemanha ainda não teria sua maturidade. Propondo um no às línguas "populares", inventa um novo modo de acumulação literá- ria totalmente inédito até ele, e essa teoria, "revolucionária" no sentido próprio, permitirá que a Alemanha entre, apesar de seu "atraso", na con- corrência literária internacional. Concedendo a cada país e a cada povo o principio de uma existência e de uma dignidade apriori iguais ás dos

outros, em nome das "tradições populares" que constituiriam a origem de toda a cultura de uma nação e de seu desenvolvimento histórico, designando a "alma" ou até o "gênio" dos povos como fonte de qualquer fecundidade artística, Herder provoca uma reviravolta, e por muito tem- po, em todas as hierarquias literárias, todos os pressupostos, considera- dos até ele intangíveis, que constituíam a "nobreza literária".

A nova definição que ele propõe tanto da língua

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"espelho do povo" - quanto da literatura - "a língua é reservatório e conteúdo da literatura", como escreve já em seus Fragmentos de 1767 -, anta- gônica à definição aristocrática francesa predominante, revoluciona a noção de legitimidade literária e conseqüentemente as regras do jogo literário internacional. Ela supõe que o próprio povo sirva de conserva- tório e de matriz literários, e portanto que se pudesse a partir de então

avaliar a "grandeza" de uma literatura pela importância ou pela "auten- ticidade" de suas tradições populares. A invenção dessa outra legitimi- dade literária - nacional e popular

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permitirá acumular outro tipo de recursos, até então desconhecidos no universo literário, que ligarão ainda mais o literário ao político: todas as "pequenas" nações

pa e de outros lugares também poderão pretender, pelo seu enobrecimento por meio do povo, a uma existência independente, inseparavelmente política e literária.

O efeito Herder

O papel de Herder foi central na Alemanha. Os escritores românticos foram profundamente influenciados por suas idéias. Retomaram sua filo- sofia da história, seu interesse pelo período medieval, pelo Oriente, pela linguagem, seu estudo da literatura comparada, sua concepção da poesia como veículo essencial de "educação" nacional. Holderlin, Paul, os Schlegel, Hegel, Schleiermacher, Humboldt, todos foram grandes leitores de Herder. O próprio conceito de "românti- co" no sentido de "modemo", em oposição ao de "clássico" ou de "anti- go", é de origem herderiana: por aí se fundamentava a reivindicação de dos alemães em luta contra a hegemonia cultural francesa. É com e Herder que se começou na Alemanha a lançar "aos franceses a condenação de super

fi

cialidade, de frivolidade e de imoralidade, en- quanto para a Alemanha reivindicava-se solidez, probidade,

Para o resto da Europa, é preferível provavelmente falar da ação de uma espécie de "efeito Herder", na medida em que se trata mais das conseqüências práticas da aplicação de algumas idéias-chave de Herder do que da elaboração propriamente teórica e política de seu pensa- mento. As Idéias sobre da história da humanidade

1791) - provavelmente a obra mais célebre de Herder

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obtiveram desde seu lançamento um imenso sucesso na Hungria, onde eram lidas em alemão8'; sabe-se também que o breve capítulo consagrado aos

eslavos nas Idéias teve um efeito determinante: Herder tomou-se o

"mestre da humanidade croata", "o primeiro a defender e louvar os

84. cir., p. 12.

85. Paris, Éditions

O motivo principal, incessantemente repetido pelos húnga- ros, romenos, poloneses, sérvios e é o direito e a ne- cessidade de escrever em sua lingua materna. Na Rússia, ficou conhecido por meio de sua tradução francesa assinada por Quinet. Na Argentina, sua influência política foi grande no final do século Nos Estados Unidos, foi mais uma vez a constelação dos temas "litera- tura, nação, humanidade" que, por meio dos textos de Georges

- um dos quinze estudantes americanos de Gottingen que seguiram os ensinamentos de discípulos de Herder -, constituiu a principal dou- trina do herderianismo americano: "A literatura de uma é nacio- nal", escreve "cada nação carrega em si um grau de perfeição totalmente independente de qualquer

O sistema de pensamento desenvolvido por Herder elaborava uma equivalência entre língua e nação. Por isso, as reivindicações nacionais que apareceram no decorrer do século em toda a Europa eram inseparáveis das reivindicações As novas línguas nacionais que se pretendia impor quase perdido o uso durante o período de domínio político - como o húngaro, o checo, o gaélico, o búlgaro, o grego, etc.

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ou só existiam na forma oral de um dialeto ou de uma língua camponesa - como o esloveno, o romeno, o norueguês, o eslovaco, o ucraniano, o letão, o o finlandês, No momento da afirmação cultural nacional, declarada instrumento de emancipação e de especificidade nacionais, a língua é bem rapidamente e

lexicógrafos e lingüistas que organizam sua codificação, a escrita e o apren- dizado. O papel capital em todas as épocas dos escritores e, mais ampla- mente, dos intelectuais nas nacionais explica, grande parte, a submissão das produções intelectuais as normas nacionaisg0.

86. Ibid., p. 201.

87. O uso dessa expressão demonstra que ainda não se tratava de uma tautologia, mas de uma idéia nova.

88. Citado por P. Pénisson, p. A tradução para o francês é minha.

89. E. Hobshawm, 73 e B. Anderson,

cit., p. 82-85 [Ed. bras.: Nação e nacional. São Paulo, Atica, 1989.1; e

M. Johnston, Une

1938, Paris, PUF, 1985, p. 313-322 e

90. Benedict Anderson demonstrou em Nação e consciência nacional que o dos "lexicógrafos, e homens de letras ... era central na formação dos

nacionalismos europeus do século (B. Anderson, op. 69).

As coletâneas de poesias e de tradições populares do próprio Herder, publicadas antes dos famosos contos dos irmãos Grimm, vão servir de modelo às coletâneas de contos e de lendas populares que serão publicadas toda a Europa. O checo Frantisek Celakovsky publica, de 1822 a 1827, três volumes de cantos populares eslavos, e depois uma coletânea de quinze mil provérbios e ditados eslavos; o esloveno Stanko Vraz edita seus poemas ilirianos, Vuk após uma cor- respondência com Jacob Grimm, reúne canções populares Sabe- se que o próprio jovem Ibsen participou pouco mais tarde, de um grande movimento de renascimento nacional e foi estudar entre os camponeses as manifestações da "alma" norueguesa.

Em suma, essa "invenção" de línguas e de literaturas ditas "popula- res", repetida em toda a Europa (e até, como vemos, além dela), é a simetria exata do movimento de dos séculos e xvrr que que as nações européias emergentes inventassem novos instrumentos para lutar contra a dominação, no entanto reputada teste, do latim. A reviravolta que as teorias (ou o efeito) de Herder pro- vocam na República das Letras só é inteligível por si mesma a partir da história desse universo, apresentado aqui linhas gerais, ou seja, na lógica da gênese do espaço literário internacional. Visto que entrar no espaço literário é entrar na concorrência, visto que o espaço só se forma e unifica a partir da concorrência e das rivalidades que nele aparecem, é

preciso descrever e compreender os novos conceitos teóricos, as revolu- ções na ordem filosófica literária como instrumentos na luta pela legitimidade literária. No decorrer desse período, portanto, são princi- palmente as regiões européias em via de emancipação política que ini- ciam esse processo de "nacionalização" de uma lingua e de uma literatura. O período de descolonização, que começa aproximadamente após a Segunda Guerra Mundial (e que ainda não tenninou), marca a tercei- ra grande etapa de formação do espaço literário internacional. Desse ponto de vista, não passa da continuação e da extensão da revolução herderiana: as novas nações independentes, que obedecem aos mos mecanismos político-culturais, também formularão reivindicações lingüísticas, culturais e literárias. As conseqüências da descolonização no universo literário fazem parte da continuidade das revoluções nacio- nais c literárias da Europa no século Arevolução herderiana

MUNDO DA LITERATURA

segue sob outras formas. Por meio dos diversos avatares políticos da noção de "povo", a legitimidade popular oferece a esses recém-chega-

dos um caminho de e literária.

Como no século na Europa, coligir contos e lendas populares permite transformar em literatura (escrita) uma produção oral. Os pri- meiros empreendimentos folcloristas que suscitaram em toda a Eu- ropa coletas de narrativas populares, ligados crença romântica na "alma" e no "gênio" do povo, são substituídos um pouco mais tarde pela etnologia, ciência colonial "desviada" em proveito de uma ficidade cultural reapropriada e que também permite, perpetuando prin- cipalmente a crença em uma "origem" popular camponesa, reconduzir as coletas e os recenseamentos de um patrimônio oral que se poderá declarar específico e nacional. Em épocas e contextos históricos dife- rentes, são duas versões de uma mesma crença em uma identidade e em uma especificidade popular e originária. Segundo a mesma lógica de acumulação de uma riqueza literária e intelectual faltante, os escri- tores dos paises egressos dos processos de descolonização no Magreb, na América Latina e na África negra iniciaram portanto um processo parecido, dessa vez a partir do modelo da etnologia.

A questão lingüística se coloca portanto em termos muito semelhan- tes: como em grande número de países europeus no século os paises oriundos da descolonização são muitas vezes dotados de línguas sem verdadeira existência literária, caracterizadas sobretudo por grandes tra- dições orais. A escolha nacional e literária diante da qual se encontrarão os intelectuais desses paises -adotar a língua da colonização ou cons- tituir um patrimônio e literário próprio - dependerá eviden- temente da riqueza, da literariedade dessas línguas, mas também do nível de desenvolvimento econômico. Baggioni observa justamente que os problemas de alfabetização que se colocavam no final do século

xrx "no sul da Europa e nos Bálcãs para as jovens nações que, como a

Polônia, a Romênia, a a Iugoslávia, a e até a Grécia, acumulavam as desvantagens de uma economia majoritariamente agrí- cola e subdesenvolvida, de um analfabetismo em massa, de uma unida- de nacional frágil e recente, de um nível tecnológico baixo e de uma elite restrita e polarizada sobre as produções intelectuais estrangeirasn9',

91. D. Baggioni, op. p. 298,

colocam-se também, e nos mesmos termos, aos jovens paises da África ou da Ásia.

Mas a situação pós-colonial deve uma de suas particularidades aos efeitos da imposição sistematizada e tematizada das línguas euro- péias nos territórios colonizados. Caracteriza-se igualmente pela com- plexidade das formas de dependência, e portanto das estratégias para delas se livrar. Para existir enquanto tal, o espaço literário nacional supõe, com efeito, o acesso da nação a uma verdadeira independência politica; ora, as nações mais recentes também são as mais dominadas politica e economicamente. Como o espaço literário é relativamente dependente das estruturas politicas, as dependências literárias interna- cionais são, em certa medida, correlacionadas com as estruturas de dominação politica internacional. Por isso, os escritores excentrados' em relação ao mundo pós-colonial têm de lutar não apenas, como os escritores dos espaços mais dotados, contra a influência politica nacio- nal, como também contra a ascendência internacional que pode ser ela própria ao mesmo tempo politica e literariamente.

As forças politicas internacionais que operam hoje sobre os espa- ços literários desprovidos adquirem formas eufemizadas: trata-se prin- cipalmente da imposição lingüística (muito poderosa) e da dominação econômica (por exemplo, uma ascendência sobre a organização edito- rial). Por isso, a dominação cultural, lingüística, literária e, é claro, politica, pode perpetuar-se mesmo uma vez a independência nacional proclamada. As relações de força literárias passam assim, em grande medida, pelas relações de força politicas.

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Par fidelidade ao original optamos pelo neologismo "excentrado". (N.E.)

No documento Casanova - República Mundial das Letras (páginas 53-57)

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