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Parte I – Enquadramento teórico, político e normativo

6. O Projeto Educativo e a contratualização da autonomia

6.4. O projeto educativo enquanto veículo para a autonomia

Desde o fim da década de oitenta, aquando da instituição da chamada autonomia das escolas, se tem assistido, por parte da administração educativa, a uma espécie de institucionalização de documentos de suporte dessa autonomia, surgindo neste contexto, o PE com posição destacada pelo menos ao nível do discurso político.

Desde que, através do Decreto-Lei n.º 43/89, de 3 de fevereiro, foi conferida à escola, nos termos do seu Artigo 2.º, a capacidade de elaboração e realização de um projecto educativo que se passou a colocar a questão do PE da escola, não mais como uma questão técnica de gestão, mas como razão de ser de uma outra concepção de escola, onde prevalece a dimensão autonómica (Costa, 2007a, p.78).

Assim, desde essa altura, sempre que o discurso tende para a justificação das reformas educativas, logo se procura que a resposta surja através da elaboração de um PE, sem se saber definir muito bem o que se pretende desse projeto, tal como assevera Barroso (2005b), quando afirma:

esta referência ao projecto educativo tem-se mantido como um voto piedoso da administração, formulado de um modo vago e ambíguo, sem explicitar o seu conteúdo e as partilhas de poder, obrigações e recursos que ele implica (p. 124).

Não se querendo aqui afirmar ser intenção da administração educativa de que é pouco importante o conteúdo do documento, sendo mais importante é que este exista vai de encontro ao que as perspetivas de alguns investigadores têm vindo a:

alertar para o facto de, no funcionamento das organizações em geral e das educativas em particular, se verificarem dimensões de descoordenação, de inconsequência e de dissensão

entre, por um lado, as intenções, os discursos, as decisões, os documentos e, por outro, as práticas, os resultados efectivos, a acção organizacional propriamente dita (Costa, 2007c, pp. 99-100).

Ao que parece, as sucessivas reformas que nos últimos anos se avolumaram, na tentativa de resolver problemas da educação no País, acabaram por não esclarecer cabalmente o que se prende com a elaboração do PE. No entanto, o que se tem vindo a deparar no panorama educativo é que, na prática, o PE usufrui de conotações político simbólicas, constituindo a associação entre autonomia e projecto educativo da escola (Costa, 2007a, p.78)

Embora essa associação nos pareça correta e desejável, o PE continua, mesmo assim, a arrastar atrás de si um conjunto de ambiguidades que, por vezes, transformam o que deveria ser o documento orientador das políticas educativas da escola em algo com significado contraditório, e que na prática nem sempre está ao serviço dos interesses dos alunos ou da comunidade educativa local.

Continua-se a exigir às escolas, através dos diplomas legais vigentes, a elaboração de um PE, contudo, não tem sido feito muito para habilitar os docentes com capacidades que lhes permitam desenvolver as competências e atividades necessárias à elaboração de tal documento.

Assim, pode então considerar-se estarmos perante o que Lima (2001), citado por Costa 2007c, refere como o funcionamento díptico da escola onde se pressupõe a existência de dois planos:

o plano das orientações para a acção organizacional (a perspectiva jurídica, legal, normativa, formal, correspondendo ao lado oficial e intencional da organização) e o plano da acção organizacional (o das manifestações efetivas das práticas dos actores e dos grupos, numa versão nem sempre oficial da realidade, onde por vezes ocorre a infidelidade normativa) (Costa, 2011c, p. 100).

Embora se constate que o PE, pelo menos legalmente, é uma obrigação de todas as escolas e agrupamentos de escolas, na verdade, uma certa ambiguidade acerca dos seus significados continua a manter-se, o tal modo de funcionamento díptico. Contudo, quando de forma cíclica surgem ventos de reforma, em tempos de crise na educação, o PE é assumido para alguns estudiosos ou agentes da administração educativa como solução para todos os males, dilatando, a nosso ver, o leque dessas ambiguidades. Tal como refere Barroso (2005b):

Na verdade, arriscamo-nos a que o “projecto educativo” não passe de uma moda pedagógica, de uma “palavra in” para abrilhantar os discursos e fique condenado ao estatuto efémero das “super star” do “show business” das Reformas Educativas. Para este facto, muito tem contribuído a ausência de uma reflexão crítica sobre a própria noção de projecto educativo e

das suas práticas, apoiada na investigação sobre o que efectivamente se passa nas escolas, neste domínio (p. 125).

Assim, pode afirmar-se que enquanto à volta do PE continuar existir falta de dimensão estratégica, seja pela falta de indicadores de decisão claros ou outros, vamos continuar a assistir à elaboração de projetos educativos, como o designado projecto de manutenção, onde se procura a prevalência das estruturas existentes, ou mesmo como o projecto de ficção, onde a ambição e o voluntarismo não são temperados com uma análise realista dos recursos (Costa, 2005b

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Face a este estado de coisas, o PE continua, mesmo assim, a surgir implementando as expectativas mais diversas mas, igualmente, com sentidos múltiplos, dependendo do ponto de vista de análise e dos interesses de momento e de contexto.

Considerando ainda o PE como a forma de responder das organizações educativas ao aumento de exigências e de orientações que lhe são impostas, estas:

reagem de formas diversificadas, nomeadamente através de estratégias desconexas, duplas ritualizadas, de modo a encontrarem os meios de, por um lado, acolherem positivamente as exigências contextuais, conformando-se aparentemente com elas, e, por outro, manterem outro tipo de procedimentos, por vezes, bastante desalinhado com a mensagem que vai sendo difundida (Costa, 2007c, p. 102).

Assim a organização poderá apresentar um modelo mais político e mais virado para os resultados e um modelo de ação. À questão de existir contradição ou conotação negativa neste funcionamento organizacional, investigadores respondem, tal como Costa (2007c), que a separação entre acção e política é a resposta natural às exigências desconexas e contraditórias a que são submetidas as organizações (p. 103). Esta forma de funcionamento desconexo das organizações que apelidam de hipocrisia organizada poderá, não só permitir compreender porque se pretende que o PE seja para a administração educativa um instrumento fundamental com dois significados e, o mesmo também possa significar para cada uma das organizações educativas, na forma como constroem e na forma o implementam.

Contudo, importa, a nosso ver, retirar ao PE o significado de remédio ou receita milagrosa para todos os males, encontrar as virtualidades que existem e assumir, definitivamente, o PE nas funções mas também nas virtualidades que a sua construção pode trazer à escola.

21 No trabalho Participação estratégia e liderança na construção de projectos, Jorge Adelino Costa considera que perante a ausência de dimensão estratégica na construção do projeto educativo, além dos dois tipos de projeto referidos ainda poderá ser perspetivada uma terceira vertente que passa pelo projecto vago, o qual se traduz num documento de intenções e objectivos gerais sem precisão e de metas indefinidas.

Assim parece-nos natural que o PE surja em contextos diversos e com significados e sentidos diferenciados, em função das políticas educativas que são adotadas:

como forma de controlo das escolas; como forma de normativização e racionalização da sua gestão; ou, paradoxalmente, como forma de mobilização da autonomia da escola, desenvolvimento da sua democracia interna e reforço do seu papel cívico e comunitário (Barroso, 2005b, p.125).

Efetivamente, cada uma destas funções ou sentidos que podem ser atribuídos ao PE dependem se emanam da administração educativa ou da própria comunidade educativa. Daí a importância acrescida do significado, sentido, definição e papel que a comunidade educativa local atribui ao PE da sua escola.

A primeira perspetiva, de controlo, tão válida como qualquer uma das outras, está naturalmente associada ao papel de controlo e avaliação, não sendo de descurar de todo o papel preponderante na consecução de objetivos, que pode ser atribuído a uma boa utilização da avaliação (Madureira, 2004, p. 30).

Embora a questão da avaliação seja assunto para aprofundarmos mais adiante, não poderemos deixar também de referir aqui o papel que poderá ter na elaboração do PE, enquanto definidor de um contexto que permitirá concretizar uma avaliação ao nível dos actores e da acção contextualizada nos estabelecimentos de educação e de ensino (Costa e Ventura, 2002, p. 106).

Ao permitir uma avaliação localizada, pela própria organização, numa perspetiva de autoavaliação, potencia, ao mesmo tempo, um aumento dos níveis de controlo por parte da Administração Educativa. Também ao obrigar a escola a tornar claras e explícitas as políticas e procedimentos dos seus atores, o PE surge aqui numa perspetiva diferenciadora no âmbito do funcionamento da organização escolar. Barroso (2005b) refere-se-lhe da seguinte forma:

Nesta perspectiva, a introdução do “projecto educativo” aparece claramente associada às preocupações de eficácia, eficiência, qualidade, avaliação, com que os governos e as suas administrações pretendem garantir a produtividade do sistema, a rentabilização dos recursos e as poupanças nas despesas com a educação (p. 125).

A segunda vertente que apontamos anteriormente ao PE refere-se à sua normativização e racionalização, onde os aspetos mais técnicos, que estão relacionados com a elaboração, vêm, claramente, mais ao de cima. Uma perspetiva sem dúvida importante, uma vez que permitirá trazer à gestão e administração escolares um carácter mais profissional, obrigando a procedimentos mais pré-determinados na elaboração deste documento.

Quando associamos o PE à autonomia da escola, então este documento pode funcionar como potenciador dos valores da participação comunitária e democrática, na definição de uma política educativa da escola ou agrupamento de escolas, contribuindo para aumentar e delimitar as responsabilidades e o poder entre os diferentes intervenientes.

Em nosso entender, é nesta terceira vertente ou sentido que as expectativas que nele se depositam podem efetivamente produzir novos desenvolvimentos nas dinâmicas de autonomia veiculadas através do PE. Pensamos que, cumprindo-se esta vertente, as restantes surgirão naturalmente através do desenvolvimento de processos, embora não devam, em nosso entender, ser esquecidas.

Assim, mais do que falar nas dificuldades de elaboração do PE, ou até das suas vantagens orientadas por um ou outro ponto de vista, parece-nos importante abordar o PE pela vertente da dimensão política que lhe está subjacente e do tipo de pedagogia e de gestão que ele pressupõe e implica (Barroso, 2005b, p. 126). Tal como também nos refere Costa (2007a), devemos assentar a conceção do PE naquilo que este contribui para uma

escola descentralizada com espaços de autonomia que permitam a decisão estratégica – nos campos da organização interna da gestão pedagógica, curricular e da inovação, da gestão de recursos humanos, financeiros e patrimoniais (p. 90).

Perspetivando desta forma o PE, estamos perante um documento orientador da ação da escola, em função do diagnóstico que se realizou, pelo que assim este produto e ao mesmo tempo processo, permitirá gerar expectativas que talvez assim nos conduzam à autonomia das organizações educativas locais.

Embora essas expectativas sejam inter-relacionáveis e até mesmo interdependentes, Barroso (2005b) considera que poderão ser reconhecidas como sete, as expectativas que rodeiam a elaboração do projeto educativo: (i) aumentar a visibilidade do estabelecimento de ensino; (ii) recuperar uma nova legitimidade para a escola pública; (iii) participar na definição de uma política local; (iv) globalizar a acção educativa; (v) racionalizar a gestão de recursos; (vi) mobilizar e federar esforços; (vii) passar do “eu” ao “nós” (p.127).

Parece-nos claro que nem todas as expectativas apontadas anteriormente têm o mesmo peso no desenvolvimento do PE, contudo, vamos procurar esclarecer o significado de cada uma delas.

(i) Nesta componente expectável do PE parece-nos de maior importância a procura da diferenciação, ou, se quisermos, de uma identidade por parte da escola ou agrupamento de escolas. Ao assumir gerir a sua margem de autonomia, a escola ou agrupamento de escolas assume uma identidade particular, ao nível dos seus processos de desenvolvimento, o que naturalmente permitirá uma melhor aferição quanto a resultados.

(ii) Tempo houve onde se defendeu que a escola, por ser pública, a todos deveria tratar de igual forma, para depois se passar para o estatuto de cliente, ou aluno. Esses caminhos não parecem ter sido os melhores no sentido de garantir uma nova legitimidade para a escola pública, pelo que, hoje, se reforça a necessidade absoluta de uma identificação entre a escola e a comunidade envolvente, de forma que esta se torne comunidade educativa e participante na elaboração do PE.

(iii) Quando nos referimos à participação da comunidade educativa local na construção do PE e à forma como essa participação deverá ocorrer, parece claro que apenas com uma participação ativa e empenhada dos parceiros locais é possível à escola ou agrupamento de escolas definir uma política educativa local. Articulando-se a participação alargada na construção deste projeto, será possível que, no âmbito do território local, se defina uma política educativa que responda aos problemas das populações e ao mesmo tempo, aos grandes objetivos da política educativa nacional.

(iv) Tender para globalizar a ação educativa, passa pela elaboração de um PE que não se preocupe apenas com a componente pedagógica e curricular, mas que procure trazer também para um contexto global de formação o domínio social. Só estabelecendo uma ligação estreita entre a comunidade social envolvente é possível que as atividades extracurriculares, desportivas e de ocupação de tempo livres possam ser enquadradas globalmente como vertentes formativas e educativas.

(v) A partir do momento em que a elaboração do PE implica planear e programar a gestão e utilização dos recursos disponíveis, passará a tornar-se com certeza mais rentável. Ao definirem-se prioridades face aos problemas identificados e à premência de resolução, necessariamente que vão ser quantificados custos que exigirão a otimização da sua utilização. A coordenação da utilização de espaços

e recursos pode implicar a sua disponibilização à comunidade social e assim essa também poderá e deverá disponibilizar outros.

(vi) Para mobilizar e federar esforços a escola enquanto entidade que exige a participação do meio local na construção do seu projeto, também deverá de alguma forma promover e valorizar as atividades desenvolvidas por outras entidades e integrá-las no seu PE. Garantem-se assim contributos múltiplos, resultantes da conjugação de interesses e objetivos, sem apagar identidades. (vii) Elaborar um PE é sempre passar do eu para o nós, ou não fosse este um

processo que permite integrar os projectos individuais, e de grupo, nos projectos colectivos (Barroso, 2005b, p. 128).

Embora conscientes de que há sentidos atribuídos ao PE que não conduzem à produção da totalidade das expectativas tal como as referimos, pensamos que se essa construção for efetivamente participada e efetivada de acordo com as aspirações da comunidade, então haverá certamente expectativas indiciadoras de um caminho para a autonomia, onde o CA poderá funcionar como mais um pilar dessa construção.

As dificuldades de concretização simultânea das expectativas locais e da necessária resposta às orientações da administração educativa, numa organização caracterizada por debilidades de articulação são a nosso ver evidentes. Assim, para responder às pressões, às exigências e às normas, propomos que, também na sua hipocrisia de organizada, se rentabilizem as vantagens morais desta hipocrisia, numa perspetiva de que esta seja uma solução necessária para a sobrevivência organizacional (Costa, 2007c, p. 103).

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