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A retórica discursiva da autonomia no contexto da Lei de Bases do Sistema Educativo

Parte I – Enquadramento teórico, político e normativo

2. Paradoxos da Escola enquanto serviço público de Educação Contextos macropolíticos de

2.7. A retórica discursiva da autonomia no contexto da Lei de Bases do Sistema Educativo

Terá sido este longo confronto de ideias na escola pública de pós-revolução que terá conduzido ao clima de liberdade e pluralismo que entretanto se instalou nas escolas e que havia de expressar-se na Lei de Bases de 1986 e dar lugar oficial às opções de organização curricular que se seguiram (Sanches, 2002, p. 67).

O caminho de cerca de 10 anos que foi necessário percorrer para se chegar à Lei de Bases enquanto definidora das opções de política educativa para o País não se revelou nada fácil, uma vez que, se uma parte dos professores tinham sido conquistados através da manutenção do processo eleitoral para o conselho directivo, outros havia que continuavam a manifestar a suas discordâncias no dia-a-dia das escolas.

Na verdade, ao longo deste período, assistiram-se a inúmeros focos de tensão entre os conselhos diretivos e os conselhos pedagógicos de cada uma das escolas, não sendo raro o segundo funcionar como contrapoder do primeiro, constatando-se então uma tensão entre os dois órgãos que nalgumas escolas gerou conflitos (Lima, 2002, p. 23).

Embora sujeito a contestação algo acentuada, por parte de alguns dos sindicatos, a verdade é que o modelo preconizado pelo Decreto-Lei n.º 769-A/76, de 23 de outubro se vai cimentando no terreno, as eleições fazem-se, os conselhos diretivos são eleitos e, queira-se ou não, o jogo eleitoral acaba por se fazer, e durante um certo tempo pratica- se.

Contudo, este alicerçar do modelo de gestão e esta prática do jogo acabam por entrar em crise a partir de inícios da década de 80 e a não motivar os professores, ao ponto de começar a ser comum o envio dos três nomes dos professores mais votados para o Ministro nomear um deles para Presidente do conselho directivo.

Na verdade, os professores estão a prescindir do direito de constituir listas para eleger os conselhos directivos.

Ora o que acontece, de facto, nesta altura, entre 1980 e 1986, é que chega a ser o Ministério da Educação, nalguns casos, a ver se força ou impõe Conselhos Directivos porque o próprio sistema estava a entrar em crise (Lima, 2002, p. 23).

Sem nos atrevermos a uma análise profunda que foge talvez do âmbito do nosso estudo, importa, contudo, perceber um pouco o porquê deste período de crise em que entrou este processo de democracia participativa nas escolas, onde os professores, como atores principais, começam a deixar de se sentir atraídos para participar neste processo de eleição do conselho diretivo e acabam por desmobilizar, pelo menos temporariamente.

Talvez não seja muito difícil entender onde se encontra o cerne da questão, atendendo a que se estava a pedir aos conselhos directivos que, por um lado, fossem representantes das escolas e dos professores uma vez que eram por estes eleitos, e por outro, o ME considerava-os como seus representantes nas escolas. Assim, aqueles que se poderiam sentir motivados para constituir listas para o conselho directivo acabam por ficar entre a “espada e a parede”, sob a pressão do ME e a pressão dos próprios professores que os elegem e, naturalmente, gera-se aqui um conflito de interesses, com a consequente desmobilização que se vai acentuando cada vez mais até 1986, altura da publicação da Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE).

Quanto à participação de outros elementos da comunidade escolar na administração educativa, os sucessivos governos de pós-revolução procuravam atrair, embora timidamente, a participação de diferentes agentes na dinâmica de escola, nomeadamente os pais e encarregados de educação. Contudo, a necessidade em manter o centralismo na organização, ao que parece, não facilitou essa aproximação.

Esta dinâmica centralizadora era mantida e reforçada através da publicação de sucessivos normativos que definiam uniformemente, a partir do topo, novas competências para professores no âmbito dos conselhos pedagógicos e dos grupos disciplinares6, quanto a eventuais competências para pais e encarregados de educação e autarquias e, ao que parece, ainda se estava apenas pela retórica do discurso que começava a dar atenção a esses parceiros na comunidade escolar.

Através do Decreto-Lei n.º 735-A/75, de 21 de dezembro, tinha-se reconhecido aos pais e encarregados de educação alguns direitos, como o de serem apoiados na criação de associações de pais e encarregados de educação, ou então de manter

6 Ver a este propósito os normativos então publicados, Decreto-Lei n.º 579-T1/79, de 29 de dezembro, que regulamenta a profissionalização em exercício e os contratos plurianuais. O Decreto-Lei n.º 376/80, de 12 de setembro, considerando que por força do Decreto-Lei n.º 519-T1/79, de 29 de dezembro, a coordenação da profissionalização em exercício dos docentes caberá, a nível local, aos conselhos pedagógicos dos estabelecimentos de ensino, daí a necessidade proceder a alterações na sua composição e funções. Despacho 333/80, de 22 de setembro que regulamenta a atribuição de competências do delegado e subdelegado de grupo.

estreitos contactos de cooperação, das associações com os conselhos diretivos, nos termos do Artigo 38.º.

Com do Decreto-Lei 769-A/76, de 23 de outubro, parece que os encarregados de educação também não terão sido muito lembrados. Além de se referir no Artigo 28.º que os conselhos de turma ou ano que reúnam para efeitos disciplinares devem integrar um representante dos encarregados de educação, este sem direito a voto deliberativo, refere-se ainda que o conselho diretivo deverá manter estreitos contactos de cooperação com as associações de encarregados de educação (Artigo 52.º).

Embora a pouca atenção que se dá aos pais e encarregados de educação no Normativo que pretende repor a disciplina indispensável para garantir o funcionamento do sistema educativo, se possa considerar algo estranha, através da Lei n.º 7/77, de 1 de fevereiro, esse reconhecimento acaba por ser dado da seguinte forma, nos termos do n.º 2 do Artigo 1.º:

Às associações de pais e encarregados de educação referidas no número precedente, quando legal e democraticamente constituídas, é reconhecido o direito de dar parecer sobre as linhas gerais da política de educação nacional e da juventude e sobre a gestão dos estabelecimentos de ensino, obrigatoriamente quanto às iniciativas legislativas relativas àqueles graus de ensino que revistam a forma de proposta de lei, e facultativamente nos restantes casos. Demorou ainda algum tempo a regulamentação dos direitos que agora foram atribuídos, o que se concretizou através do Despacho Normativo n.º 122/79, de 22 de maio, onde as associações de pais e encarregados de educação passam a ter reuniões com o conselho directivo, pelo menos uma vez por trimestre. É também facultado às associações a possibilidade de assegurar actividades culturais e desportivas e emitir parecer sobre o regulamento interno. Podem participar, também, em algumas reuniões do Conselho Pedagógico, ainda que sem direito a voto.

Mais tarde, o Decreto-Lei n.º 376/80, de 12 de setembro, vem alargar esse direito à generalidade das reuniões em que seja solicitada a participação dos pais ou encarregados de educação.

Neste contexto sociopolítico são cada vez mais as vozes que se fazem ouvir no sentido de ser elaborada uma Lei de Bases do Sistema Educativo, cuja necessidade era cada vez mais consensualmente reconhecida (Formosinho e Machado, 2000a, p. 39), embora nem todos defendam esta perspetiva. É o caso de Rui Grácio que, sem estar contra a que se elabore uma lei global que oriente a evolução do sistema educativo, tem sérias dúvidas acerca dos efeitos por ela produzidos.

Numa referência global à Lei Fundamental, enquanto prescritora também de linhas orientadoras na educação, à sua contextualização sociopolítica, Grácio (1985) descreve-a,

em muito tributária - preceitos acerca da educação e do ensino inclusive – da ofensiva popular que caracterizou os dois primeiros anos da “Revolução” e das contribuições, na Constituinte, (…); ora a Lei da revisão constitucional de 1982, consagra, em matéria de educação e ensino, o que se contém na versão de 1976. As alterações, sendo significativas (…) são alterações que não modificam o essencial. Dito de outro modo: a letra da lei, da Lei Fundamental permanece, enquanto se alterava significativamente a realidade do ensino, e bem assim o seu contexto político, social e cultural (p. 150).

Grácio (1985) justifica esta tomada de posição, com o que havia constatado na revisão da Lei Fundamental em 1982, onde como refere, a Letra da Lei Fundamental (de 1976) permanece, embora se tenham alterado os contextos políticos e sociais, daí ter assumido um certo distanciamento quanto à urgência e à imperatividade de elaboração de uma Lei de Bases do Sistema Educativo (p. 150), uma vez que entende que desta Lei fundamental se deve esperar mais do que um texto, por muito bem construído e elegante que seja.

Foram diversos os debates, a que aqui não podemos dar a devida atenção, dos diversos intervenientes no sistema educativo e também foram diversas as iniciativas legislativas conducentes a uma lei de bases do sistema educativo. De entre as razões que se apontavam, algumas eram bastante realistas, como sejam a necessidade de proceder a uma clarificação do sistema educativo, adequá-lo à nova Constituição da República, mas também procurar evitar que se tomassem medidas avulsas no sistema educativo e um pouco ao sabor dos diferentes governos resultantes de maiorias muito transitórias. Preconizava-se ainda que a aprovação de uma lei de bases do sistema educativo deveria resultar de amplo consenso, de modo a evitar-se o questionamento futuro de diferentes maiorias de quadrantes políticos diversos.

Finalmente, e resultante da congregação de diferentes projetos políticos, surge a Lei n.º 46/86, de 14 de outubro, que ficou conhecida como a nova Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE)7. Após este relativamente longo período de pós-revolução ficam finalmente estabelecidas as linhas orientadoras da estrutura e funcionamento do sistema educativo.

De acordo com a LBSE define-se que o sistema educativo se organiza, nos termos do Artigo 3.º, alíneas g) e l), de forma a:

77 Embora tenha sido várias as alterações que esta Lei sofreu, através da Lei n.º 115/97, de 19 de setembro, Lei n.º 49/2005, de 30 de agosto e Lei n.º 85/2009, de 27 de agosto, continua a manter-se o espírito da Lei de 1986, daí as referências.

Descentralizar, desconcentrar e diversificar as estruturas e acções educativas, de modo a proporcionar uma correcta adaptação às realidades, um elevado sentido de participação das populações, uma adequada inserção no meio comunitário e níveis de decisão eficientes; Contribuir para desenvolver o espírito e a prática democráticos, através da adopção de estruturas e processos participativos na definição da política educativa, na administração e gestão do sistema escolar (…);

Pela referência a estes dois princípios se verifica que a orientação para administração do sistema educativo deverá passar por desconcentração, descentralização, participação e práticas democráticas.

No que ao presente trabalho importa, a Administração do sistema educativo, através dos Artigos 43.º, 44.º e 45.º, são definidos os Princípios gerais, os Níveis de administração, a Administração e gestão dos estabelecimentos de educação e ensino.

Concretiza-se assim, a orientação para a administração e gestão do sistema educativo, seja a nível central, regional e local, estabelecendo-se regras de participação de todos os intervenientes no processo, bem como a ligação à comunidade. Determina- se ainda, no que a este aspeto da administração e organização do sistema diz respeito, que sejam tomadas medidas com vista a adoção de diferentes formas de desconcentração a descentralização do sistema.

Aprovada que foi esta nova Lei de Bases, os governos subsequentes ficam agora com competência para promover e implementar as necessárias reformas do sistema educativo. Assim, e ainda no seguimento dos amplos debates que então se tinham estabelecido para chegar à LBSE, a Comissão de Reforma do Sistema Educativo, entretanto instituída, propõe um Projecto Global de Actividades, promovendo e desenvolvendo estudos com vista à reorganização do Sistema Educativo.

É a partir daqui que se criam novas dinâmicas nas abordagens e estudos da organização educativa que antes se ficavam normalmente, pelos domínios jurídico e normativo, emergindo então,

novos rumos de desenvolvimento desses estudos. Os debates em torno da descentralização, da participação e da autonomia, as exigências da formação de professores e realizações como a “gestão democrática” incitam a novas abordagens da escola como organização (…) (Formosinho e Machado, 2000a, p. 41).

Entretanto, o debate em torno da necessidade de desburocratizar a Administração Pública e aproximar os serviços públicos às populações, promovendo a participação dos cidadãos acentua-se cada vez mais. Neste contexto de aceso debate na opinião pública, provavelmente devido ao aumento da quantidade de problemas a que era necessário dar resposta (que continuava a ser a mesma a partir do topo) o ME inicia

um processo de reformulação da sua orgânica, que passa pela desconcentração dos seus serviços.

Deste processo de desconcentração, ou talvez mais de descongestionamento, já tinha resultado na criação em 1980 das dezoito delegações da direção-geral de pessoal. A criação das direções regionais de educação surge um pouco mais tarde, através Decreto-Lei n.º 133/93, de 26 de abril, onde se assume no seu Artigo 13.º que são serviços desconcentrados.

Assim, a estrutura do ME8 passa a compreender serviços centrais, regionais e ainda os estabelecimentos de ensino, que poderemos chamar de locais.

Embora por vezes se procure associar esta criação das direções regionais9 à descentralização, na verdade, nesta nova orgânica, constata-se que sendo o diretor regional de educação

um inferior hierárquico em relação aos Serviços Centrais, dos quais depende, embora superior hierárquico em relação aos serviços locais que coordena. Estamos assim perante um processo de desconcentração, como forma de aumentar a eficiência da actividade da administração pública dentro do molde centralizado. De facto só poderíamos falar de descentralização se existissem organizações e órgãos locais não dependentes hierarquicamente da administração central do Estado e, portanto, não sujeitos ao poder de direcção do Estado, autónomas administrativamente e financeiramente, com competências próprias e representando os interesses locais (idem, pp. 144-145).

Embora estes novos serviços se chamem regionais, na verdade não se conseguiu por esta altura caminhar para uma efetiva regionalização nesta reestruturação orgânica do ME, continuando a manter-se as relações umbilicais com administração educacional dos centros ministeriais, e suas antenas regionais, o padrão corrente (Lemos Pires, 1997, p. 60).

Se voltarmos novamente ao nível local, mais concretamente à forma como a LBSE consagra os princípios a que deve obedecer a administração e gestão das escolas (Artigo 45.º), reparamos que se procede à separação definitiva das funções de

8

O Decreto-Lei n.º 86-A/2011, de 12 de Julho de 2011, determina uma nova estrutura ao ME agora denominado Ministério da Educação e Ciência (MEC), integra a definição das políticas dirigidas ao sistema educativo, ao ensino superior e à ciência.

9 Através do Decreto-Lei n.º 125/2011, de 29 de dezembro, que aprova a Lei Orgânica do Ministério da Educação e Ciência, o XIX Governo Constitucional, extingue as cinco Direcções Regionais de Educação, passando as suas atribuições a estar integradas na Direção Geral da Administração Escolar. Este mesmo Normativo determina ainda através do seu Artigo 29.º, o funcionamento transitório destas Direções Regionais até ao dia 31 de Dezembro de 2012.

Por alteração deste Normativo, através do Decreto-Lei n.º 266-G/2012 de 31 de dezembro, as atribuições das Direcções Regionais de Educação são integradas na Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares (DGEstE). Através do Decreto-Lei n.º 266-F/2012 de 31 de dezembro esta estrutura orgânica é dotada de cinco unidades orgânicas desconcentradas, com sede nos locais das anteriores Direcções Regionais de Educação e atribui-se direção de cada uma a delegados regionais de educação.

administração e gestão, das funções de direção, embora não se pormenorize o papel a atribuir a cada uma destas componentes

Ainda de acordo com os Artigos 43.º e 45.º da LBSE devem ser chamados a participar na direção e administração das escolas todos os interessados, desde os professores, os pais, os alunos, o pessoal não docente, as autarquias e ainda os interesses socioeconómicos, culturais ou científicos da região, institucionalizando assim a interação que deverá existir entre a escola e a comunidade onde ela se insere.

Embora se aponte aqui para a participação dos agentes locais, nomeadamente as autarquias, na verdade o que se vem a constatar é que o campo autonómico das escolas continua restringido pela teia de normativos internos, nomeadamente as “circulares” que restringem o campo de actuação autonómica das escolas (Lemos Pires, 1997, p. 61).

Ao que parece, tem sido difícil avançar para a emancipação e para a diferenciação na base da autonomia, não se conseguindo assim superar o paternalismo, a burocratização, o centralismo, a dependência de uma cultura de regulamentos e circulares (Martins, 2006, p. 50).

Quanto ao principal representante dos interesses locais, a autarquia, Lemos Pires (1997) refere a propósito:

Tem estado a entidade municipal arredada das parcerias determinativas da decisão política que ao colectivo importa (…). Sendo pela sua natureza e localização, um dos parceiros melhor disposicionados para a participação directa e legitimada no desenho e na execução da arquitectura escolar, e suas dinâmicas evolutivas, está arredada do seu governo, como se à “polis” não pertencesse (…) (p. 61).

Verifica-se assim que, embora a LBSE a que nos referimos tenha procurado institucionalizar a participação da comunidade local, o que se vem a verificar nos anos subsequentes é que os principais interlocutores se têm mantido relativamente arredados da vida das escolas. Talvez assim se entendam melhor algumas das dificuldades que foram persistindo ao longo das últimas décadas, quando se fala da participação das entidades locais na direção e administração das organizações escolares.

3. Escola pública e autonomia

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