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O período de autogestão no serviço público de educação no contexto do Pós-25 de abril

Parte I – Enquadramento teórico, político e normativo

2. Paradoxos da Escola enquanto serviço público de Educação Contextos macropolíticos de

2.4. O período de autogestão no serviço público de educação no contexto do Pós-25 de abril

No período que antecedeu a afirmação do regime democrático através do “25 de abril”, o sistema educativo em vigor passava por uma amedrontada abertura da escola às ditas classes populares, assistindo-se aos primeiros passos da “escola de massas”. É verdade que essa abertura da escola talvez não tenha resultado muito da vontade política do regime, antes terá sido ditada pelo precipitar das circunstâncias resultantes do

desenvolvimento económico e industrial que então se verificava a nível europeu a que o regime político de então se tentou alhear o mais possível.

Como nos relembra Grácio (1985), ao referir que

tem de reconhecer-se que o sistema se movia e alterava: em boa parte, independentemente de decisões políticas do poder (…). Tem de reconhecer-se também que muito do que se passava no mundo das escolas (…) repercutia as condições sociais e políticas que marcavam o fim da ditadura (p. 83).

Se antes se tornava cada vez mais difícil manter uma escola de elites num regime já decadente, após a Revolução de Abril, não foi mais possível parar a explosão em que se transformou o ambiente escolar, enquanto contexto assumido de “escola de massas”, repleta de atividade, dinamismo e reivindicação.

Naturalmente que, quando nos referimos à “escola de massas”, fazemo-lo numa perspetiva de enquadrar esta ideia ou conceito, numa política educativa que tenha surgido como uma necessidade de tornar a educação democrática ou perspetivar mesmo o papel da educação na promoção e construção da democracia. Ao que nos parece,

o desenvolvimento da escolarização que acompanhou o movimento revolucionário de 1974/75 não foi, com efeito, apenas legitimado pelo propósito de assegurar uma “igualdade de oportunidades de acesso” a um património cultural universal e, por isso, insensível aos circunstancialismos locais (Correia, 2000, p. 8);

Antes, também, poderá ter trazido uns primeiros passos de participação autonómica na construção da educação para o País.

Assim, importa perceber quais os contributos que este período de afirmação da democracia em Portugal deu para a descentralização e autonomia de organização na escola portuguesa, não perdendo de vista o panorama anterior com que se encontrava modelada a organização da escola portuguesa, num sistema altamente centralizado, baseado no modelo liceal e assente na figura do reitor/diretor que tudo controlava e de quem tudo dependia e onde a execução obedecia ao formal e centralmente decidido.

Nesta mudança brusca de regime após o 25 de Abril, entramos naturalmente num período de necessária e urgente afirmação da democracia, e neste contexto notou- se de imediato esta influência no sistema escolar, onde o reitor ou diretor, antes nomeado centralmente, é substituído nas funções de direção dos estabelecimentos de ensino por uma comissão de gestão que integra professores alunos e funcionários e é eleita pelos vários corpos da escola.

De acordo com as conceções individuais ou de grupo assumem-se diferentes posições de rivalidade e antagonismo em defesa da escola pelo que,

aos que acreditavam poder “conquistar” todo o poder para a escola e construir a sua soberania governativa, opunham-se os representantes da “maioria silenciosa”, embora nem sempre silenciosos nas reuniões da Assembleia de Professores de algumas escolas (Sanches, 2002, p. 67).

Neste clima revolucionário de indeterminação e ausência de orientações a que não é alheio o contexto de fragilidade do poder do próprio Estado, constata-se uma praticamente total ausência de orientação normativa pelo que, neste contexto, as escolas registavam uma situação de acentuada e generalizada heteropraxia, em busca de ordenamentos alternativos e de regras (Lima, 2011b, p. 59).

Se por um lado a administração central se encontra completamente tolhida da sua capacidade de ação, por outro, a escola que sempre esteve dependente dessa administração centralizada encontra-se numa encruzilhada de olhar para o passado e ao mesmo tempo querer assumir também como sua, uma nova legitimidade revolucionária, onde ensaia o poder popular, ou pelo menos, se expande à sociedade civil, numa participação política e social sem precedentes (Formosinho e Machado, 2000a, p. 34).

Assim, imediatamente a seguir ao “25 de Abril”,

Assembleias Gerais de Escola com professores e alunos, nalguns casos depuseram ou sanearam, como quiserem, directores e reitores, e substituíram imediatamente esses responsáveis por comissões. Comissões com os mais diversos nomes, eleitas das mais diversas formas, umas com alunos, com muitos ou poucos alunos, outras com funcionários, outras sem funcionários, enfim … a diversidade é total, porque não há qualquer coordenação (Lima, 2002, p.15).

Neste contexto de completo desnorte do ME, apanhado completamente de surpresa, a escola continuava a autogerir-se no caos organizacional e de desordem onde as expectativas eram à medida dos projetos e ideologias individuais ou de grupos, em função da conceção de escola e sociedade que cada um dos atores defendia como sendo a mais adequada e mais correta.

Não surpreende portanto que, num ambiente de

explosiva descompressão, em muitos estabelecimentos de ensino tenha emergido, por vezes convulsivamente, até à anomia da vida escolar, a busca de novo ordenamento estrutural e normativo (Grácio, 1985, p. 83).

Se há grupos que defendem a autogestão pedagógica na perspetiva da soberania governativa, outros talvez mais moderados, nem tanto. Por força das circunstâncias, vive-se uma evolução e precipitação de acontecimentos onde, por força das circunstâncias, os professores acabam por tomar a dianteira e assumir alguma liderança no processo. Ao que parece, o que antes e durante algum tempo eram Assembleias onde participavam diferentes grupos, evolui, na maioria dos casos, para Plenários de

Professores, deixando assim, à margem as famílias e os encarregados de educação e, em geral, as relações com a comunidade local (Lima, 2011b, p. 59)

Estas Assembleias, onde tudo se discutia e decidia, desde a avaliação ao livro a usar, assim como o funcionamento do ano letivo, até à forma de vestir, prolongavam-se, por vezes, em reuniões intermináveis que duravam dias seguidos. Assim, toda a legislação anterior é afastada, e considerada impraticável, em certas escolas mais, em certas escolas menos (Lima, 2002, p. 15).

Neste intrépido buscar de novas soluções onde tudo que é do antes tem de ser obrigatoriamente alterado, numa reformulação global da política e objetivos da educação,

procuram-se novas estruturas de governo, administração e participação – ou a gestão democrática das escolas. É a ruptura política e pedagógica, para a qual grande parte dos professores, dos alunos, e das autoridades administrativas escolares, estão compreensivelmente impreparados (Grácio, 1985, p. 84).

Se é certo que se construíram neste período pós revolucionário forte dinâmicas locais de implicação na educação e na resolução dos problemas da escola e sendo também correto afirmar-se que do poder central nem sempre houve orientação no caminho a seguir, então poderá inferir-se que, nesta altura, terá havido autonomia no funcionamento da escola.

Neste precipitar de acontecimentos, onde diariamente se constatava a inaplicabilidade de tudo o que é legislação anterior e se substitui por decisões que se tomam na escola através dos órgãos que ela própria instituiu, parece estar a exercer-se a autonomia na organização e funcionamento da escola na sua plenitude. Lima (2002) refere-se-lhe da seguinte forma:

Eu costumo dizer que o que o que se inaugura neste momento é a primeira edição da gestão democrática. Eu distingo duas. A primeira edição da gestão democrática é autogestionária, é uma edição de autonomia, é uma edição de deslocação do poder do Ministério para as Escolas. Mas não por vontade do Ministério (p. 15).

Efetivamente, o controlo do funcionamento da escola encontrava-se na mão das organizações escolares num exercício pleno de autonomia, enquanto o ME acabava por não encontrar outra solução que não fosse promover a legalização das decisões que, espontaneamente, cada uma das escolas foi tomando através dos órgãos entretanto instituídos.

Assim, o Decreto-Lei n.º 221/74, de 27 de maio com timbre do Governo Provisório, acaba por ir ao encontro das medidas que já tinham sido tomadas, conforme se pode inferir do seu curto preâmbulo:

Considerando a necessidade urgente de apoiar as iniciativas democráticas tendentes ao estabelecimento de órgãos de gestão que sejam verdadeiramente representativos de toda a comunidade escolar e sem prejuízo de outras medidas que venham a ser tomadas para regularizar a vida académica nos diversos níveis de ensino.

Por este parágrafo se pode constatar que, embora por um lado se esteja a tentar apanhar o comboio que já vai em andamento, por outro, já se prevê vir a tomar outras medidas de controlo e regulamentação, conforme se continua a assumir através do Art.º 1.º, onde se refere:

Enquanto não for regulado o processo de escolha democrática dos órgãos de gestão dos estabelecimentos de ensino, (…) a direcção dos mesmos estabelecimentos poderá ser confiada (…) a comissões democraticamente eleitas ou a eleger depois de 25 de Abril de 1974.

Se por um lado se diz que se vai regular a escolha democrática, por outro, aceitam-se as comissões democraticamente eleitas, podendo à partida parecer indiciar a existência de alguma contradição. Não nos parece que assim seja, antes pensamos ser o procurar ganhar tempo para voltar novamente ao terreno e regular a contento do poder central logo que haja condições para tal.

Como não há tempo nem condições para regulamentar, atribuiu-se às comissões de gestão as funções antes atribuídas aos diretores e reitores, conforme prevê o Art.º 2, ao referir que a estas caberão as atribuições que incumbiam aos anteriores órgãos de gestão. Como as escolas, por esta altura, tudo faziam e tudo decidiam, desde a abertura do ano letivo, à utilização ou não de manuais e até à existência ou não de avaliação dos alunos, pouco importavam as atribuições ou competências porque, na prática, tinha-se competência para tudo.

Neste contexto, talvez seja conveniente recordar que o Decreto-Lei n.º 221/74, de 27 de maio, enquanto diploma regulamentador dos órgãos de gestão da escola, nada diz acerca da sua constituição nem da forma como se deve desenvolver o processo eleitoral. Assim, como o Normativo nada refere, pode-se fazer de qualquer forma, com alunos, sem alunos, ou seja, na dúvida, pode fazer-se segundo a conveniência, o que significa que nesta altura se faz tudo e de tudo.

E se o Ministério tinha vontade de voltar a assumir o controlo da situação, a verdade é que por esta altura não havia condições para tal, perante manifestações e reclamações sistemáticas e num ambiente escolar onde:

A mobilização, a participação activa nas escolas era muito grande, a deslocação do poder era diária. Esta deslocação do poder nunca foi uma descentralização, o Ministério nunca descentralizou, foi uma avocação de poderes dos actores escolares dentro das escolas. Foi uma apropriação, foi uma ingerência, foi uma forma de participação enquanto ingerência de facto (Lima, 2002, pp. 16-17).

Na verdade, as escolas acabaram por se apropriar da sua própria gestão, mas que outros entendiam como sua ou, se quisermos, que o ME entendia ser sua competência. Assistimos, assim, e como Lima (1992) já referia, a um exercício pleno de autonomia, por parte da escola, numa verdadeira assunção da gestão e organização do seu próprio funcionamento, imposta pelas bases do sistema escolar; não foi sequer uma delegação ou uma devolução de poderes, foi sim uma apropriação de poderes (p. 232).

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