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7 AS MATÉRIAS DE ORDEM PÚBLICA E A COGNIÇÃO DE OFÍCIO

No documento Rafael de Oliveira Guimarao (páginas 197-200)

7.1 O CONCEITO DE MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA

Definir quais são as disposições legais que consistem em normas de ordem pública, por possuírem justamente valores de ordem pública, é tarefa extremamente difícil. É praticamente impossível definir um rol de normas de ordem pública com caráter definitivo, pela própria característica de mutabilidade de nossa sociedade. Dessa forma, impende afirmar que os valores para se elevar uma norma jurídica à qualidade de norma de ordem pública sofrem mutações constantes.

Primeiramente deve-se tentar conceituar “ordem pública”, para depois identificar quais normas detêm esses valores, e como elas são analisadas pelo Poder Judiciário.

A expressão “ordem pública”, conforme Nathaly Campitelli Roque, comporta divisões:

A idéia de “ordem” é um dos componentes da idéia básica de “sistema”, já que se entende que todo sistema conta com uma “organização”, em sentido amplo. Já a noção de “público” remete à idéia de interesse de todos, diferente da idéia de “privado”, que remete ao íntimo, ao particular517.

Assim, a ordem pública é um valor protetivo de outros valores, esses vitais para a organização da sociedade por protegerem a própria unidade do sistema jurídico como bem imediato, e a sociedade como bem mediato.

Do direito português, importante a menção às ideias de Ana Prata, para quem a ordem pública é “o conjunto dos princípios fundamentais do ordenamento jurídico, com valor supra ordenador e básico, cuja salvaguarda tem em vista não apenas a tutela de interesses privados, mas – e primariamente – a de interesses coletivos”.518

De acordo com as ideias positivistas, é necessário se estabelecer uma ordem jurídica para ter um sistema jurídico que se deva respeitar, e quanto mais respeitabilidade ele tiver, maior será o progresso de uma sociedade.

Ante tais constatações, decisivo seria que a exteriorização dada pelo Estado do que ele entende serem os valores vitais, para que a ordem pública não viesse mediante conceitos

517 ROQUE, Nathaly Campitelli. A ordem pública e seu regime jurídico no direito processual civil. Revista dos Tribunais, n. 908. São Paulo: Revista dos Tribunais, jun. 2011.p. 266-267.

518 PRATA, Ana. Cláusula de exclusão e limitação da responsabilidade contratual. Coimbra: Almedina,

sociológicos, mas sim mediante normas jurídicas, pois esta é a linguagem de comunicação entre o órgão legiferante e o jurisdicionado. Gisele Santos Fernandes Góes519, em tese de doutorado sobre o tema, entende que a ordem pública é justamente uma razão pública que congrega valores sociais, políticos e econômicos de uma sociedade, e é função do ordenamento proteger tais valores, tipificando-os em normas jurídicas.

Conforme leciona Cândido Rangel Dinamarco, Antônio Carlos de Araújo Cintra e Ada Pelegrini Grinover, a inserção de normas estabelecendo os valores protegidos pela ordem pública foi consequência necessária para a proteção desta, e, ao mesmo tempo, para que tais valores não fossem deixados ao arbítrio das partes. No mesmo sentido foi necessário estabelecer que o juiz deveria ter o poder de decidir sobre tais normas independentemente da vontade das partes. Tais ideias tiveram início na segunda metade do século XIX520.

A ordem pública tem sua razão de ser no dever que tem o sistema jurídico de tutelar interesses subjetivos que abranjam o maior número de cidadãos possível e, dentro do que esses próprios cidadãos entendam como o melhor para a sociedade, ou seja, são disposições que não levam em conta o direito individual do cidadão, mas sempre o interesse coletivo. Neste sentido, adverte Ricardo de Carvalho Aprigliano521 em outra tese de doutorado a esse propósito.

No entanto, não há como definir a ordem pública de uma forma única para todos os institutos jurídicos. Tem-se a ordem pública como o mandamento para defender a unidade do sistema jurídico e da sociedade, e, dependendo do instituto jurídico analisado, agregam-se

519 “Articula-se, nesse sentido, a ordem pública como uma razão pública que precisa de configuração em torno

do seu funcionamento quanto a elementos para se perfazer e esses instrumentos estão localizados na teoria do discurso de Habermas porque lida com a comunicação e, tranquilamente, o direito é permeado pela linguagem e níveis de argumentação.

O direito de Habermas é visto como um código assossiado ao poder político, sem se subsumir a normas de comportamento, regulamentando as instituições quanto aos seus procedimentos e competências.

Por tudo até então esposado, a ordem pública como razão pública é uma instituição que congrega uma somatória de valores econômicos, políticos, sociais, etc., que despontam e assumem posição privilegiada num específico momento histórico, emitindo os interesses gerais da sociedade e que devem ser objeto de tutela primordial do Direito, com mecanismos procedimentais de eficácia e de controle quanto à realização de seus objetivos.” (GÓES, Gisele Santos Fernandes. Proposta de sistematização das questões de ordem pública

processual e substancial. São Paulo, 2007, 284 f. Tese. (Doutorado em Direito) – Pós-Graduação em Direito

da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação da Profa. Teresa Arruda Alvim Wambier. p. 55).

520 “Assim, à partir do último quartel do Século XIX, os poderes do juiz foram paulatinamente aumentados:

passando de expectador inerte à posição ativa, coube-lhe não só impulsionar o andamento da causa, mas também determinar provas, conhecer ex officio as circunstâncias que até então dependiam da alegação das partes, dialogar com elas, reprimindo-lhes eventuais condutas irregulares, etc.” (CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 70).

521 “As normas de ordem pública, como é curial, são aquelas que respeitam a toda a sociedade, mais do que a

cidadãos indivicualmente considerados, aquelas que se inspiram no bem comum, mais do que nos interesses de alguns.” (APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho. Ordem pública e processo. O Tratamento das questões de ordem pública no Direito Processual Civil. São Paulo: Atlas, 2011. p. 10).

outros conceitos. Outra monografista do tema, Eliane Proscursin Quintella522, assevera que a indefinição do conceito de ordem pública conferiu a esta extrema elasticidade, ou seja, possibilitou incluir novas matérias como se fossem de ordem pública – segundo a tradição a respeito dos usos da noção de ordem pública – e a sua constante atualização e manipulação pela doutrina e pela jurisprudência.

Com tais considerações, verifica-se que se está, indubitavelmente, diante de mais um conceito valorativo, pois, perseguindo as palavras do Prof. Tércio Sampaio Ferraz Junior523, a compreensão do que seja matéria de ordem pública está relacionado com os valores que uma sociedade proteja, ainda que previstos na lei, num momento histórico específico, para se chegar ao entendimento de como a norma jurídica deve ser aplicada.

Como dito, dependendo do instituto do direito analisado, a ordem pública é vista por diferentes prismas, conforme Nathaly Campitelli Roque524:

[...] no campo do direito administrativo, a expressão ‘ordem pública’ aparece, na maioria das vezes, vinculada ao poder de polícia do Estado (tanto no sentido de fiscalização geral da atividade dos particulares como no de polícia pública de segurança), no sentido de afastar ameaças ao bem estar da população e garantir sua incolumidade física e mental. [...] O sentido de ‘poder de polícia’ também é tomada a expressão no processo penal, como fundamento das prisões cautelares (prisão preventiva, prisão temporária), a fim de garantir a incolumidade da vítima e de testemunhas ou de proporcionar a segurança do próprio instrumento processual, e no direito penal, como elemento de determinadas categorias de crimes ou de causas de modificação da pena.

Já no Direito Internacional, a expressão ‘ordem pública’ remete à idéia de manutenção da ordem sócio-político-jurídica (como, por exemplo, a estabelecida no art. 17 da LICC – Lei de Introdução à Normas do Direito Brasileiro) possibilitam aos Estados rejeitar tratados e acordos internacionais, no todo ou em parte, por conflitarem com os princípios básicos de sua estruturação. [...] como no direito constitucional, como significado mais abrangente de segurança jurídica.

No direito processual civil, as chamadas questões de ordem pública remetem a normas que autorizam o juiz, a qualquer tempo ou grau de jurisdição, extinguir o processo sem julgamento de mérito ou determinar sua nulidade.

522 QUINTELLA, Eliane Proscursin. Matéria de ordem pública no âmbito do direito processual civil. São

Paulo, 2004, 321 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação da Prof. Teresa Arruda Alvim Wambier. p. 12.

523 “O conceito é indeterminado se não é possível, de antemão, precisar tais objetos. [...] Já os conceitos

valorativos são os que manifestam uma imprecisão de sentido não quanto aos objetos abarcados (denotação), mas quanto à intenção (conotação), isto é, uma imprecisão quanto aos atributos que os definem. Assim, por exemplo, o conceito de honestidade (mulher honesta) e de dignidade (ofensa ao decoro parlamentar) envolvem esse tipo de imprecisão. Conceitos valorativos admitem e exigem, no campo jurídico, a busca de certa objetividade dos valores nele presentes, o que ocorre pela referência ao contexto social em que são utilizados.” (FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito. 5. ed., São Paulo: Atlas, 2007, p. 298)

524 ROQUE, Nathaly Campitelli. A ordem pública e seu regime jurídico no direito processual civil. Revista dos Tribunais, n. 908. São Paulo: Revista dos Tribunais, jun. 2011. p.265-266.

[...] No direito privado [...] ganham caráter impositivo e afastam completamente a vontade das partes [...]. Seu conteúdo está vinculado a direitos da personalidade (como o direito ao nome e à filiação), à proteção à família (regulação do casamento e de sua dissolução) e à dignidade da pessoa humana (limitação à disposições de herança e direito irrenunciável a alimentos).

Por ora, entende-se que a ordem pública é o valor maior que protege valores outros vitais para uma sociedade, e deve ser verificada por diferentes prismas, conforme o ramo do direito analisado. Mas quais seriam esses valores básicos de uma sociedade? Infelizmente, a resposta só pode ser momentânea. Explica-se.

O que uma ordem pública está protegendo depende primordialmente do momento histórico por qual está passando uma sociedade. Nos dizeres de Calamandrei, a ordem pública é concebida para tutelar os valores que o julgador retira do ordenamento jurídico e da sociedade como os mais importantes525. Gisele Santos Fernandes Góes pontua que “o foco de superioridade do Estado no liberalismo se concentrou na proteção econômica, então a ordem não se dirigia à sociedade, apenas se atendo aos aspectos de expansão econômica burguesa”.526

Com a evolução histórica brasileira, no Estado Novo as normas de ordem pública se direcionaram para o fortalecimento econômico do Estado a partir do capital estrangeiro. No período da ditadura militar, paradoxalmente, as normas se direcionaram a censurar a liberdade de expressão e as liberdades individuais, num intuito de reprimir o comunismo, sendo entendidas como uma proteção à ordem pública. Já na Constituição da República de 1988, e que vigora momentaneamente, buscou-se o fortalecimento das instituições públicas, o amplo debate e a obtenção de dois objetivos básicos: (a) a conquista dos direitos sociais; e (b) a aquisição de uma ordem jurídica justa aos jurisdicionados.

Tarefa não menos difícil é verificar, no sistema jurídico, quais normas contêm os valores protegidos pela ordem pública. Para tanto, há que se identificar duas características básicas, embora, desde já, adverte-se, não sejam absolutas. São elas: (a) o interesse público como objetivo527; e (b) a indisponibilidade na aplicação de tais normas.

525 “questões de ordem pública são relações regulamentadas por normas jurídicas cuja observância é subtraída,

em medida mais ou menos ampla, segundo os casos, à livre vontade das partes e à valoração arbitrária que as mesmas podem fazer de seus interesses.” (CALAMANDREI, Piero. Direito Processual Civil. Campinas: Bookseller, 1999. v. 1. p. 211).

526 GÓES, Gisele Santos Fernandes. Proposta de sistematização das questões de ordem pública processual e substancial. São Paulo, 2007, 284 f. Tese. (Doutorado em Direito) – Pós-Graduação em Direito da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação da Profa. Teresa Arruda Alvim Wambier. p. 72.

527 “A ordem pública envolve o Poder Público e a medida dele é a versão do interesse público mais apropriado

No documento Rafael de Oliveira Guimarao (páginas 197-200)

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