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RAÍZES HISTÓRICAS DOS RECURSOS EXCEPCIONAIS

No documento Rafael de Oliveira Guimarao (páginas 49-54)

2 APONTAMENTOS SOBRE OS RECURSOS EXCEPCIONAIS

2.1 RAÍZES HISTÓRICAS DOS RECURSOS EXCEPCIONAIS

Embora o direito brasileiro possua institutos jurídicos genuinamente nacionais, em sua grande maioria os institutos são inspirados em ordenamentos jurídicos estrangeiros. Com os recursos excepcionais brasileiros não é diferente. Suas fontes mais próximas e semelhantes são o writ of error, do direito norte-americano, e o recurso de cassação, do direito francês.

Indubitavelmente, e conforme leciona José Afonso da Silva137, os recursos excepcionais tiveram uma de suas maiores inspirações no Judiciary Act de 1789, dos Estados Unidos, o qual permitiu que a Corte Suprema Norte-Americana revisasse as decisões finais dos mais altos Tribunais mediante um instrumento jurídico denominado writ of error, que a priori, controlava a legitimidade de leis estaduais e sua constitucionalidade das mesmas.

O writ of error emergiu do anseio da formação do estado federativo, em seu sentido literal. Após a independência dos Estados Unidos quanto ao domínio inglês, formaram-se quatorze estados, os quais tinham competência para legislar, fazendo surgir legislações contraditórias entre si, muitas vezes em desconformidade com a própria Constituição que lhes dava competência legislativa.

Devido a tais motivos, bem como à necessidade de controle da interpretação legislativa, por imposição das próprias colônias, e não por atitude do Poder central da Filadélfia – na época capital dos Estados Unidos –, foi preciso criar um setentrião para a aplicação das normas.

A Supreme Court passou então a preservar a harmonia e a aderência dos novos estados, os quais frequentemente entravam em conflito, mesmo no tocante às normas federais e constitucionais. Conforme muito bem apontado por Rodrigo Barioni, a Suprema Corte americana passou a ter competência predominantemente recursal, a não ser nos casos de competência originária constitucionalmente prevista na Seção 2 do art. 4.º138, à luz do que ficou evidenciado no julgamento do famoso caso Marbury v. Madison139.

137 Cf. SILVA, José Afonso da Silva. Do recurso extraordinário no direito processual brasileiro. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1963. p. 28-29.

138 Cf. BARIONI, Rodrigo. Ação rescisória e recursos para os tribunais superiores. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2010. p. 160.

139 “A Constituição dos Estados Unidos prevê, de fato, que o Supremo Tribunal é somente uma instância de

recurso, exceto em certos casos particulares. O Judiciary Act, 1789, permitindo consultá-lo diretamente para lhe exigir que formule ordens à Administração, vai contra o disposto nesta norma da Constituição. O Supremo Tribunal deve recusar-lhe qualquer feito.” (DAVID, René. Os grandes sistemas do direito

O referido julgado, estudado mais detidamente pelos doutrinadores de direito constitucional, encerrou grandes mudanças também para o processo civil. De acordo com René David, o caso abrigou repercussão porque John Adams, um presidente federalista, teve como sucessor o democrata republicano Thomas Jefferson. Às vésperas da posse do novo presidente, Adams fez duas importantes nomeações: a de John Marshall, para o cargo de juiz- -chefe da Corte Suprema; e de Marbury, para o cargo de juiz de paz do Distrito Federal, com a aprovação do Senado, mas sem que este último recebesse a carta de nomeação para o cargo. Assim que Thomas Jefferson assumiu o cargo, Madison, novo secretário de Estado, não enviou a carta de nomeação para Marbury, o que o obrigou a impetrar um writ of mandamus (espécie de mandado de segurança)140 na Suprema Corte.

Contraditoriamente, John Marshall, nomeado por Adams, reconheceu que Marbury tinha direito a ser nomeado ao cargo, mas declarou que o Supremo não tinha competência para conhecer do controle difuso de constitucionalidade, pois somente teria competência recursal.

O leading case não só estabeleceu o controle de constitucionalidade difuso, como também declarou a competência predominantemente recursal da Suprema Corte Norte- Americana, incluindo o writ of error.

As semelhanças com nosso recurso extraordinário são visíveis. As hipóteses de cabimento do writ o error estão estabelecidas no art. 25 do Judiciary Act. Rodrigo Barioni141, que insere em sua obra, as hipóteses de cabimento, assinando que todas elas dizem respeito a decisões de última instância (aqui já se vê a característica de superposição da instância extraordinária), em que:

[...] a) for arguida a validade de um tratado ou lei ou ato de autoridade dos Estados Unidos que a decisão impugnada considerou inválida; b) for argüida a invalidade de lei ou do ato de autoridade de qualquer Estado, em razão de serem contrários à Constituição, tratados, ou leis dos Estados Unidos, que a decisão considerou válidos; c) forem arguidos título, direito, privilégio ou imunidade, com fundamento na Constituição, tratado, lei ou autorização outorgada por autoridade dos Estados Unidos, que a decisão impugnada seja contrária.

140 Cf. comparação entre os dois institutos em: GUIMARÃES, Rafael de Oliveira. Mandado de Segurança e Habeas Corpus. Competência em Razão da Matéria. Inteligência do art. 114, IV, da CF. In: WAMBIER,

Teresa Arruda Alvim et al (coords.). Reforma do Judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 607- 614.

141BARIONI, Rodrigo. Ação rescisória e recursos para os tribunais superiores. São Paulo: Revista dos

Assim, vê-se facilmente que o objetivo do writ of error é garantir a uniformidade de interpretação, seja de dispositivo constitucional, seja de tratado firmado pelo governo norte- americano, hipóteses marcantes de cabimento do recurso extraordinário brasileiro.

O writ of error, ora comentado, é tido como umas das principais fontes dos recursos excepcionais do direito brasileiro, pois era um incidente recursal que visava ao estabelecimento da uniformidade da jurisprudência. No entanto, na Europa, com raízes até mais antigas, havia outro incidente que influenciou os recursos ora estudados, qual seja o Recurso de Cassação. O referido recurso de cassação possui alicerces diferentes, com origem na França, fundado na tripartição dos poderes. Entretanto, a bem da verdade, surgiu por receio, da burguesia recém-alçada ao poder, de que as decisões do Poder Judiciário implicassem uma desestruturação do Poder Legislativo e Executivo. Assim, criou-se uma instância não pertencente ao Poder Judiciário142, com membros dos três poderes, que foi denominada Corte de Cassação, e que tinha por função uniformizar o entendimento acerca das leis federais por intermédio do já mencionado recurso de cassação.

O recurso de cassação, embora tenha sido criado com o fito de proteger os Poderes Legislativo e Executivo, exerceu funções típicas dos recursos excepcionais, pois passou a ser o instrumento de guarda da lei federal, e de sua correta aplicação e interpretação. O referido recurso também realizava a função de uniformizar as normas, evitando interpretações disformes no país, garantindo assim a segurança jurídica na previsibilidade dos julgamentos.

Os primeiros registros históricos da Corte de Cassação Francesa remontam a 1248, quando o Rei “São Luiz”, que não por fruto do acaso, determinou a instalação de um Tribunal exatamente ao lado do Palácio Real. Como costume da época, o soberano detinha o poder de legislar e de fazer justiça de acordo com o mandamento “Toda a Justiça emana do Rei”. Tendo em vista que o Rei tinha delegado ao Parlamento o poder de julgar, o Rei, mediante seu Conselho, poderia “cassar” a decisão do Parlamento sempre que este proferisse decisões contrariamente às suas ordens143. É a primeira menção a esse poder de revisão por uma instância superior às ordinárias, e à possibilidade de um remédio jurídico com a finalidade de preservar a unidade do ordenamento.

142 Conforme adverte Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia, “em 1790, pelo Decreto de 27 de novembro, os

revolucionários criam a Cour de Cassation (substituindo o Conseil des Parties, autorizado a permanecer funcionando até aquele momento).

A Corte de Cassação surgiu inicialmente vinculada à Assembleia Nacional e com a finalidade de reprimir qualquer violação ao texto da lei; leis estas tão valorizadas pelos revolucionários, já que traduziam a vontade

geral do povo.” (BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Recursos extraordinários no STF e no STJ.

Curitiba: Juruá, 2009, p. 73)

Várias transformações do Primeiro Conselho do Rei, constituído que foi no início do século XIII, se passaram. No século XIV, surgiu outra grande característica de um Tribunal de Cassação: a de que, após um julgamento de cassação144, a causa seja enviada ao Tribunal ordinário para rejulgamento145, embora, no século XIV, o Tribunal a que era enviado a causa para novo julgamento pudesse ser um terceiro, não necessariamente o juízo que tinha proferido a decisão impugnada que originou o recurso de cassação.

Somente no século XVI emergiu o termo “cassação”. Resultou da autoridade do monarca de ditar o ritmo dos costumes e a afirmação de um direito escrito emanado das ordenações reais. A Ordenação de Colbert, datada de 1667, que regulou o processo civil até o fim da monarquia, estabeleceu que a violação aos dispositivos das ordenações reais como a principal hipótese de admissibilidade para um recurso de cassação. Dessa forma, o Conselho do Rei trouxe à luz o mecanismo de cassação, a fim de contribuir para a unidade do reino e reforçar a monarquia absoluta.

Após a Revolução Francesa, a burguesia, como já dito, ante o receio de que o Judiciário distorcesse os textos legais, aproveitando a reestruturação do Judiciário de agosto de 1789, reformulou o Conselho do Rei, transformando-o no Tribunal de Cassação. Finalidade era que houvesse um controle superior das interpretações legais proferidas pelos Tribunais de segunda instância.

Em novembro de 1790, é criado o Tribunal de Cassação da França com o fim de ser um “sentinela permanente da manutenção da lei.”146 O decreto de 27 de novembro de 1790 dispôs que seria criado um Tribunal de Cassação para se pronunciar sobre todas as demandas contra os julgamentos de última instância147, determinando o reenvio ao Tribunal, em casos de suspeição, de conflitos de jurisdição e conflitos entre as decisões dos Tribunais ordinários, bem assim as interpretações dadas pelo Tribunal de Cassação. O decreto é uma fonte tão próxima de nossos recursos excepcionais que preconiza expressamente: “sob nenhum pretexto o Tribunal poderá conhecer das questões de fundo da causa.”. Já delineava a característica dos recursos excepcionais de não examinar o direito subjetivo da parte ou questões fáticas eventualmente arguídas. Outra característica do Recurso de Cassação é a previsão de que ele não suspendia a causa, semelhante ao art. 542, 2.º, do CPC brasileiro.

144 O exercício do juízo de cassação, eminentemente nomofilático, ou seja, entendendo que o acórdão do

Tribunal a quo não procedeu da melhor forma com relação à interpretação de uma norma jurídica.

145 Mediante o exercício do juízo de revisão.

146 WEBER, Jean-François. La Cour de Cassation. Paris: La Documentation Française, 2006. p. 15.

147 No francês, os acórdãos de última instância são chamados de arrêt. Recorrer de um acórdão é o mesmo que

“se pourvoir contre um arrêt.” (LOPES, Óscar Manuel Aires. Dicionário Jurídico Português-Francês. Coimbra: Almedina, 2009. p. 394).

Várias transformações ocorreram após a Segunda Guerra Mundial, principalmente com relação às especialidades das Câmaras e ao número de magistrados. O Tribunal, que não tinha competência específica nas Câmaras, passou a ter Câmaras somente para questões comerciais e financeiras, ou mesmo para questões sociais.

Jean-François Weber, presidente de uma das câmaras da Corte, em interessante estudo sobre a história da Corte de Cassação francesa148, afirmou que, quando de sua criação, a Corte compreendia 48 magistrados, registrando que após a Segunda Grande Guerra o número agigantou, chegando, atualmente, a 178 magistrados componentes.

Esses dois principais modelos de recursos excepcionais – o norte-americano, criado para uniformizar o entendimento da Constituição nos estados recém-criados; e o modelo francês, para o controle do Poder Judiciário – realizaram uma função que não era pretendida, mas importantíssima para qualquer sistema jurídico, qual seja o common law ou civil Law. Vem a ser, especificamente, a de resguardar a interpretação da lei e uniformizar o entendimento acerca das questões jurídicas. Tais modelos certamente influenciaram o surgir de recursos semelhantes, como a Revisionsgründe (§ 545, n. 1, ZPO) na Alemanha; o ricorso per cassazione (art. 360, n. 3, CPC) na Itália; na França, o pourvoi em cassation (art. 604 do CPC); em Portugal, o recurso de revista (arts. 721, 2 e 722, 1, CPC); na Espanha, o recurso de cassación (art. 477, n. 1, LEC); e, na província argentina de Buenos Aires, os recursos extraordinários de inaplicabilidad (art. 278), de nulidad extraordinário (art. 296) e de inconstitucionalidad (art. 299, CPC)149.

No Brasil, o legislador, mediante o Decreto 848, de 24-10-1890, previu, em seu art. 9.º, parágrafo único, um recurso para o Supremo Tribunal Federal contra decisões de última instância proferidas pelas justiças locais. Nossa primeira Constituição Republicana, a de 1891, em seu art. 59, § 1.º, trouxe a mesma previsão. Somente o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, do mesmo ano, é que trouxe a denominação extraordinário, o que foi acolhido pelos textos legais subsequentes, a Lei 221, de 20-11-1894, art. 24; Dec. 3.084, de 05-11-1898, Parte III, arts. 678, d, e 744150.

Todas as Constituições Federais posteriores reproduziram o cabimento do recurso extraordinário – até então o recurso cabível contra decisões de última instância, para alegar violação a dispositivo constitucional e infraconstitucional – com pouquíssimas alterações, até

148 Cf. WEBER, Jean-François. La Cour de Cassation. Paris: La Documentation Française, 2006. p. 19.

149 Cf. BARIONI, Rodrigo. Ação rescisória e recursos para os tribunais superiores. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2010. p. 167.

150 Cf. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Recurso extraordinário e recurso especial. 11. ed. São Paulo: Revista

que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu a divisão entre Recurso Extraordinário, para alegar a violação de dispositivo constitucional, e o Recurso Especial, com o fim de alegar a violação à lei infraconstitucional, em hipóteses que serão mais bem estudadas nos tópicos seguintes.

No documento Rafael de Oliveira Guimarao (páginas 49-54)

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