• Nenhum resultado encontrado

O JUÍZO DE CASSAÇÃO COMO FUNÇÃO PURAMENTE NOMOFILÁTICA

No documento Rafael de Oliveira Guimarao (páginas 181-186)

5 DOS EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA

6 O JUÍZO DE MÉRITO DOS RECURSOS EXCEPCIONAIS JUÍZO DE CASSAÇÃO E JUÍZO DE REVISÃO

6.1 O JUÍZO DE CASSAÇÃO COMO FUNÇÃO PURAMENTE NOMOFILÁTICA

De acordo com que se verificou nos itens 2.1 e 2.2.1, trata de requisito de admissibilidade dos recursos excepcionais a demonstração de que o acórdão-recorrido examinou uma questão federal de um modo diverso do entendimento do STJ ou de outros Tribunais e da doutrina pátria, desde que preenchidos os demais requisitos de cabimento – ser questão de direito, estar decidida pelo acórdão a questão de direito, ser uma decisão de Tribunal, não caber mais recurso ordinário contra a decisão, tudo de acordo com o argumentado no item 2.2.3 –, e, ainda, ter o recorrente demonstrado tais circunstâncias em suas razões recursais, e alegado, dependendo do caso, as hipóteses contidas nas alíneas a a d do art. 102, III, da CF/88; ou das alienas a a c, do art. 105, III, da CF/88.

Os recursos excepcionais, os que examinam especificamente questões de direito, são meios de impugnação presentes na grande maioria dos ordenamentos jurídicos do mundo. Manoel Ortells Ramos, doutrinador espanhol, ao coordenar ensaio sobre recursos aos Tribunais de cassação em que participaram grandes processualistas do mundo, advertia que os mencionados recursos têm as mais diversas denominações pelo mundo, porém sempre com a mesma natureza.

Essa natureza já comentada no item 2 é a de realizar uma função estritamente de exame de questões de estrito direito, ou como pontua o Professor Loïc Cadiet, da Universidade de Sorbonne em Paris, no Recurso de Cassação – o similar ao Recurso Especial na França – o magistrado exerce uma função de “paralegislador”486, em que o Tribunal de Cassação mostra a ele mesmo, e aos outros Tribunais da Federação, como uma questão de direito deve ser interpretada, ou como um dispositivo legal incide sobre uma determinada situação. Tal função, extremamente importante para o sistema jurídico é de dar unidade e fortalecer a jurisprudência de um país, conforme lembra Jean Vincent487, para que esta

486 “[…] le juge de cassation exerce une function jurisprudentielle qui en fait une source de droit, on a pu dire de

lui qu’il est un ‘paralégislateur’, mais elle peut tout aussi bien se referrer au jugement qui se pronounce dans son dispositif sur les mérites du pourvoi soumis en l’espèce au juge de cassation (‘casse e annule’): en cela, si sa function n’est que jursdictionelle, le juge de cassation n’en est pas moins le ‘législateur du cas particulier’, il édicte une norme catégorique, particulière et concrete, pour le litige qui lui est soumis” (CADIET, Loïc. Le juge de cassation en Europe. Revista de Processo, n. 209. São Paulo: Revista dos Tribunais, jul. 2009. p. 411).

487 “La Cour de Cassation a pour mission, on le rappelle, de favoriser l’unité de la jurisprudence des tribunaux

realmente exerça corretamente a função de fonte do direito, e dê estabilidade ao sistema jurídico e segurança aos jurisdicionados, consubstanciadas na previsibilidade das decisões judiciais, como lembra o português Cordona Ferreira488.

Visando exercer essa função de estabilizar a jurisprudência e servir de orientação para os magistrados aplicarem o Direito em um país é que o Professor da Universidade de Barcelona, Jordi Vieva Fenoll489, ressalta a mencionada função e a importância dos Tribunais de Superposição ou de Cassação. Nas palavras do processualista espanhol:

Se el tribunal de cassación, por uma razón o por outra, no realiza esa labor, el juez de instancia simplemente hará lo que le venga en gana, y además sin temor alguno. Y al ser varios los jueces de instancia y no tener ningún órgano que unifique sus interpretaciones (porque para eso está el tribunal de cassación, y no otros órganos), la inseguridad jurídica que se genera es brutal. Los abogados ya no deben preocuparse de estudiar la jurisprudencia del tribunal de cassación, porque casi nadie la sigue y, por tanto, deviene completamente inútil. En una situación semejante los Letrados deben averiguar, pura y simplemente, qué interpretaciones posee el concreto juez de primera instancia, o su inmediato superior, lo que iran conociendo, de no publicarse su jurisprudencia, por canales siempre inseguros e informales. De forma que se van produciendo, poco a poco, jurisprudencias menores paralelas que hacen que el recurrente no sepa ya a que atenerse, lo que abre las puertas a uma inseguridad juridica que, cuando se detecta el problema descrito, ya es tarde, ya se ha instalado em todas las estructuras y es sumamente dificultoso expulsarla.

O recurso de cassação, que, para fins elucidativos e de congruência com a ordem mundial, será doravante tratada por tal nomenclatura, mesmo tendo-se a consciência de nomenclatura diversa em nosso ordenamento, possui importância vital no Direito, pois seus efeitos não são somente para o caso concreto, mas resultam em fonte do Direito, que será base para a aplicação da norma jurídica posteriormente. Daí a preocupação da doutrina francesa em modificar um precedente jurisprudencial com extrema cautela490.

sur les jurisdictions d’appel et de premier degré et qu’elle empêche par la même la jurisprudence de rester une source vivante et jaillissantre de Droit.” (VINCENT, Jean et al. Institutions judiciaires. Organisation. Jurisdictions. Gens de justice. 8. ed. Paris: Dalloz, 2005. p. 622). No mesmo sentido: “[…] funzione di nomofilachia, essendo volta a garantire l’unitá e la razzionalizzazione della creazione giurisprudenziale del diritto.” (GIOIA, Valerio de. Il nouvissimo processo civile: tutte le vonità introdotte dalla riforma. Forli: Experta Edizione, 2009. p. 130).

488 “A sua causa-final está na necessidade de salvaguardar os cidadãos, sobre as soluções previsíveis, face às

contínuas mudanças de juízes e ao alargamento do seu número, bem como ao progressivo aumento de legislação e, quantas vezes, alguma descoordenação legislativa.” (FERREIRA, J. O. Cordona. Guia de

recursos em processo civil. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. p. 105).

489 NIEVA FENOLL, Jordi. El recurso de cassación. Santiago: Abeledo Perrot, 2010. p. 48-49.

490 “Parce que le revirement traduit um choix et exprime le pouvoir créateur e la Cour de Cassation, um devoir

de cohérence et l’exigence de certitude du droit militent pour que des formation restreintes (formations à trois, formations de sections) ne s’arrogent pás le pouvoir de proceder à um revirement de jurisprudence.”

Os mencionados Tribunais de Cassação não são órgãos consultivos, ou seja, não são provocados quando os jurisdicionados pretendem ter conhecimento sobre uma questão de direito, mas são recursos que exteriorizam seus efeitos tanto para a aplicação futura do Direito quanto para o caso concreto, pois, de acordo com o trazido no item 1.4, os recursos excepcionais possuem como objeto imediato o exame de direito objetivo, e como objeto mediato o exame do direito subjetivo e, assim, atingindo a situação do caso concreto.

Verifica-se uma questão a ser enfrentada: se preenchidos os pressupostos de admissibilidade, e tendo em vista que, apesar dos recursos excepcionais examinarem o direito objetivo, as consequências reflexas serão sob o direito subjetivo, como se dá o juízo de mérito de tais recursos?

A partir do momento em que um recurso excepcional é admitido, ou seja, a partir do momento em que tal recurso é apresentado, alegando-se a má interpretação de um dispositivo de lei em que o Tribunal local tenha exteriorizado na decisão recorrida, e também se fundamentando qual a interpretação de tal dispositivo seria a correta, tem-se uma lógica bipartida, um exame do direito objetivo (objeto imediato) e após o subjetivo (objeto mediato).

Em momento posterior à admissão do recurso, o Tribunal de superposição realiza o exame da questão de direito, ou seja, verifica se a interpretação dada pelo Tribunal local foi a correta. Esse primeiro ato é o exercício do juízo de cassação, em que somente a questão de direito é avaliada, e não qualquer questão de fato. Essa última questão, que, de acordo com Karl Larenz491, seria a de verificar se um fato ocorreu, ou não, tem seu último exame na decisão do Tribunal local, impugnada pela via do recurso de cassação. O que se examina neste recurso é somente como a legislação deve ser aplicada na premissa fática já trazida no acórdão-recorrido como incontroversa.

O italiano Guido Calogero, um dos grandes estudiosos sobre o juízo de cassação e suas características, conclui que, no juízo de cassação, se realiza um juízo universal492, em que o Tribunal exterioriza um entendimento sobre uma questão de direito que pode ser aplicada em qualquer situação específica, pois não individualiza o caso julgado, função dos recursos ordinários que examinam o caso concreto e exercem um juízo “singular”. Nesse momento (juízo de cassação), o magistrado preconiza como uma questão de direito deve ser

(MOLFESSIS, Nicolas. Les revirements de jurisprudence: rapport remis à Monsiuer le Président Guy Cavinet. Paris: Lexis Nexis Litec, 2005. p. 39).

491 “[...] a questão de facto se reporta ao que efectivamente aconteceu, enquanto a questão de direito se identifica

com a qualificação do ocorrido em conformidade com os critérios da ordem jurídica.” (LARENZ, Karl.

Metodologia da ciência do direito. 6. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997. p. 433).

492 “Parimenti, la cognitio juris è si, e per le stesse ragioni già dette, un ‘giudizio universale’ e la cognitio facti

um ‘giudizio individuale’ símile a queli de cui, poniamo, la metodologia crociana vede contesta la storia.” (CALOGERO, Guido. La logica del giudice e Il suo controlo in cassazione. Padova: Cedam, 1937. p. 148).

interpretada, ou seja, exterioriza entendimento no sentido de que a norma X possui tal característica e quando ocorrer uma situação Y, assim a norma deve ser aplicada. Não há uma referência a um caso concreto, ou a qualquer situação fática. Melhor dizendo, nesse momento, de acordo com a doutrina italiana, há uma atividade nomofilática, “sumindo” com qualquer exame de direito subjetivo da parte493.

Se o Tribunal de instância extraordinária verifica que o Tribunal local exteriorizou uma interpretação adequada, o recurso tem provimento negado, ou, de acordo com o que será exposto, “tem um juízo de cassação negativo”, pois, como a interpretação dada ao dispositivo de lei pelo Tribunal a quo foi a correta, ela merece ser prestigiada e servir de exemplo para decisões futuras, e não ser “cassada”. Esse ato de cassar a decisão recorrida significa dizer que a interpretação dada pelo Tribunal local ao dispositivo de lei foi errônea e não merece prosperar. Neste caso, será dado provimento ao recurso, sendo realizado um “juízo de cassação positivo”, ou nas palavras de Roger Perrot, “será cassado o julgado”494.

No momento em que é realizado um juízo de cassação positivo, é que se encontra o elo entre objeto imediato e mediato nos recursos excepcionais. Em outras palavras, somente nessa situação é que se poderá cogitar em apreciar o direito subjetivo da parte, pois, quando o juízo de cassação é positivo, inicia-se a fase de provimento de um recurso de cassação, em que o respectivo Tribunal afirma que tal dispositivo de lei não deve ser aplicado de tal forma, mas de outra, para, somente depois disso, cogitar uma intervenção no direito subjetivo do recorrente.

Existem algumas situações em que, mesmo com o provimento do recurso excepcional, a função será somente nomofilática, ou seja, pelo fato de o Tribunal dizer como uma norma deve ser interpretada, a questão se encerra. Seria o caso de questão objeto do recurso envolver uma condição da ação. Nesse caso, reconhecendo o Tribunal que, interpretando a norma, a consequência é o fim da demanda, um eventual ato posterior não é necessário.

Porém, a grande maioria das situações, como nas questões de mérito, que, pelo fato de o Tribunal de Cassação afirmar que a norma não deve ser interpretada da forma que o Tribunal local o fez, mas de outra forma, implica cassar e reformar o acórdão recorrido nesse ponto, o que resulta em consequências para o caso concreto. Ou seja, num segundo momento,

493 “[...] sempre più le caratteristiche di rimedio atto a favorire la funzione nomofilattica della Corte, sfumando

quella di strumento di garanzia di soggetiva per i singoli, attraverso la revisione di precedenti giudizi.” (GIORDANO, Rosaria; LOMBARDI, Antonio. Il nuovo processo civile: commento orgânico alla legge di riforma del processo civile. Roma: Nel diritto Editore, 2009. p. 413).

494 “La Cour de Cassation n’est pas de statute sur les pretentions des parties pour les départager: son seul role est

de rechercher si le juge a correctement appliqué la règle de droit et d’annuler son jugement (de le ‘casser’) s’il appraît que la loi n’a pás été respectée. C’est tout.” (PERROT, Roger. Institutions judiciaires. 12. ed. Paris: Montchrestien, 2006. p. 179).

o Judiciário irá definir como a premissa normativa estabelecida pela Corte de Cassação vai influenciar no caso concreto. Essa é a resolução do objeto mediato do recurso, assim, é um ato de jurisdição ordinária, pois atinge o direito subjetivo da parte. Está-se falando agora do juízo de revisão.

Antes de qualquer conclusão, é importante se reportar aos recursos de cassação europeus. Com o surgimento das Cortes de Cassação, e, via de consequência, dos correspondentes recursos, o ato de julgar o mérito ficou bipartido: primeiramente, a Corte de Cassação realizava a cassação (desconstituição) do acórdão recorrido se a interpretação dada ao dispositivo legal pelo Tribunal a quo não fosse a mais correta, e, somente depois de desconstituído o acórdão, este era “enviado” a um Tribunal de instância ordinária que fazia o julgamento do direito subjetivo – com averiguação dos fatos e dando a solução mediata ao caso: o juízo de revisão - de acordo com a interpretação legislativa preconizada pela Corte de Cassação495.

Nas palavras do Prof. Nelson Nery Junior:

[...] há países – como, por exemplo, Itália e França – nos quais existem o recurso de cassação e o correspondente tribunal de cassação, constituindo sistema separado do recurso de revisão. Nesse caso, ao dar provimento ao recurso, o tribunal de cassação apenas cassa, anula a decisão recorrida, devolvendo os autos à instância inferior, para que esta possa rejulgar a causa aplicando necessariamente a interpretação e a conclusão dada pelo tribunal de cassação. Este tribunal de cassação não tem o poder de rejulgar a causa (juízo de revisão)496

Clara Moreira Azzoni também esclarece:

[...] nos recursos de cassação europeus, com exceção de algumas hipóteses previstas expressamente na legislação, o provimento do recurso leva à anulação da decisão recorrida e ao envio do processo para um julgador do mesmo grau hierárquico daquele que proferiu a decisão impugnada, a fim de que seja realizado novo julgamento (cassazione com rinvio, no caso da Itália)497.

495 Cf. MANGONE, Kátia Aparecida. Prequestionamento e questões de ordem pública no recurso extraordinário e no recurso especial. São Paulo, 2010, 268 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pós-

Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação do Prof. Cássio Scarpinella Bueno. p. 38.

496 NERY JUNIOR, Nelson. Questões de ordem pública e o julgamento do mérito dos recursos extraordinário e

especial: anotações sobre a aplicação do direito à espécie (STF 456 e RISTJ 257). In: MEDINA, José Miguel Garcia et al (coords.) Os Poderes do Juiz e o Controle das Decisões Judiciais. Estudos em homenagem à Professora Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 967-968.

497 AZZONI, Clara Moreira. Efeitos dos recursos extraordinário e especial no direito processual. São Paulo,

2008, 302 f. Dissertação. (Mestrado em Direito) – Pós-Graduação em Direito da Universidade de São Paulo, sob a orientação do Prof. Oreste Nestor de Souza Laspro.p. 39.

Verifica-se que a sistemática dos recursos de cassação, que originaram os recursos excepcionais brasileiros, é a de um julgamento de mérito bipartido: ao dar provimento ao recurso excepcional, primeiramente o Tribunal de Cassação desconstitui o acórdão recorrido por erro de interpretação de uma norma jurídica (juízo de cassação) e depois envia os autos a um Tribunal de instância ordinária para que esse faça um julgamento da causa já com a interpretação legal dada pelo Tribunal de Cassação à questão jurídica (juízo de revisão).

Para constatar a natureza desses juízos de cassação e revisão, mister uma apreciação nos ordenamentos jurídicos francês, italiano e português, pois são as fontes mais próximas desse procedimento de julgamento de mérito dos recursos excepcionais.

No documento Rafael de Oliveira Guimarao (páginas 181-186)

Outline

Documentos relacionados