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Curiosamente, as obras de Jeff Wall (1946) são construídas a partir de uma ligeira tensão produzida através de elementos que nos são aparentemente familiares. No centro dessa tensão encontra-se a forma como Wall insere, de forma subtil, determinados elementos formais na construção das suas “fotografias”. Desse modo, algumas das suas imagens suscitam instabilidade, pois são “fabricadas” tendo em conta um plano de reflexão caracterizado por uma intencionalidade puramente ficcional, remetendo-nos para o que parece ser uma outra dimensão, outra realidade (Belting, 2001). Tomemos, por exemplo, o trabalho intitulado A Sudden Gust of Wind (after Hokusai), de 1993. O trabalho, uma minuciosa construção fotográfica, apresenta-nos a paisagem de um vale sob forte influência de um vendaval.

Na imagem, objectos e pessoas surgem indiscutivelmente afectadas pela força da intempérie, produzindo um enorme impacto visual (cujos detalhes/pormenores foram manipulados digitalmente pixel a pixel). A imagem, no entanto, na sua totalidade parece estar suspensa, aparentemente após a súbita chegada do fenómeno climatérico, facto que remete o trabalho de Wall para uma operação, como afirma Frade, onde tem lugar «(...)

uma subtracção perceptiva da realidade, nomeadamente ao suspender as dimensões temporal e espacial, imobilizando dessa forma a própria imagem. Este “congelamento” da imagem fotográfica é, simultaneamente, uma paragem do tempo, ou melhor, uma subtracção do tempo à sua passagem, mas que oferece ao olhar a possibilidade de ver essa passagem inscrita na imagem» (1992:92).

Apesar das figuras estarem suspensas, congeladas, como se o tempo fosse abruptamente retirado de toda a cena,175 a mise-en-scène mantém-se em funcionamento, visível na leitura, em particular, das várias narrativas a que a imagem alude.176 Este facto deve-se à forma como A Sudden Gust of Wind foi construída, partindo da reunião de mais de cem fotografias diferentes remontadas digitalmente. Assim a suspensão do tempo não teve origem no uso da câmara fotográfica, mas em processos que podem ser associados à produção de uma pintura, onde se pode simular a ilusão do instantâneo e também construir imagens que nada têm a ver com aquilo que acontece no mundo real. Os detalhes na fotografia parecem assumir uma história individual dentro da composição, tendo vários fios condutores, relegando para segundo plano aquilo que parece ser o tema principal, o vendaval.

Fig. (28) Jeff Wall A Sudden Gust of Wind (after Hokusai), 1993

O personagem central da fotografia, um homem que perde o seu chapéu, não parece demonstrar uma preocupação com o sucedido, evocando antes, através das feições do seu rosto, uma perplexidade, uma indagação face a algo diverso – “olha-nos” nos olhos,

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De certa forma, sempre coexistiram duas atitudes em relação a este medium. Uma muito ligada à fotografia documental e outra que, visando os seus próprios mecanismos internos, essencialmente, técnicos, é transposta para o campo mais vasto e genérico das artes plásticas (Pérez, 2004).

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O artista utiliza caixas de luz, ciberchromes, que produzem um efeito luminoso, como se as imagens possuíssem uma luz interior que como Belting afirma: «(...) instaura um diálogo entre a Fotografia e a Pintura» (2001: 298). À primeira vista, em termos compositivos, o trabalho parece conter em simultâneo dois sentidos: o primeiro faz-nos pensar que estamos perante um “instante decisivo” como Cartier-Bresson o definiu; o outro aponta para uma “unidade” (em termos de grandiosidade visual própria das pinturas da tradição do período clássico).

transformando a imagem, como refere Flusser, no resultado «(...) do esforço de abstrair duas das quatro dimensões espácio-temporais, para que se conservem apenas as dimensões do plano» (1998:54). Wall explora assim o efeito “aglutinação” (da dimensão temporal) presente na imagem, ou seja, a composição é feita a partir da colagem de fotografias com proveniências diversas aparentemente separadas “coladas” através da participação do espectador e da sua imaginação. Esta estratégia que se encontra, por exemplo, no cinema onde tudo se reorganiza a partir do envolvimento do espectador com as cenas e os personagens, pressupõe um tempo à partida temporalizado, um tempo que é dado. Mas em

A Sudden Gust o factor tempo não é transmitido por imagens em movimento, mas por uma

imagem fixa que é compreendida através de um movimento temporal, muito associado à pintura ou à escultura. O sentido poético presente neste trabalho consubstancia-se numa perturbadora representação, onde realidade e não realidade se expressam numa particular relação/tensão entre movimento e imobilidade – que não é visível através de um fluxo de continuidade (a existir está oculto), mas numa passagem, num fragmento de um mundo rico em movimento, paradoxalmente. E tudo acontece em função da duração do olhar que é dedicado à própria imagem.177

Christopher Bucklow (1957) produz, a partir de um complexo processo técnico, fotografias “transbordantes” de luz e movimento, com uma intensidade dramática. As fotografias parecem emanar uma radiação solar, efeito que é produzido a partir da utilização de uma camera obscura.

A série Guest foi iniciada em meados dos anos 90, incidindo em figuras masculinas e femininas, ora de frente, ora a três/quartos, referindo-se a “retratos” oriundos do seu círculo de amigos. Bucklow vê estes trabalhos, essencialmente, como um retrato colectivo, individualizado.

Fig.(33) Cristopher Bucklow Guest, 1994

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Nas palavras do próprio artista «O mestre dos mestres prepara a mais pequena coisa com antecedência, e confia em que todo o planeamento do mundo conduzirá só a algo fresco, móvel, leve e fascinante» (Wall, 2004:33).

O processo presente na construção das obras de Bucklow tem duas etapas: a primeira consiste em desenhar uma silhueta de um corpo, em tamanho real, numa folha de alumínio. Bucklow, de seguida, submete esse desenho à acção de uma grande camera

obscura, extraindo o seu molde em alto contraste. Numa segunda fase, essa imagem volta

ser colocada na camera obscura em contacto com uma folha de papel fotográfico sensibilizado (colocado atrás). A camera obscura possuiu 150 orifícios dispersos por toda a sua parede frontal que, nesta fase, são destapados, permitindo, desse modo, a penetração da luz solar a partir de vários ângulos, dando lugar à formação e fixação de muitas imagens, na folha do desenho onde se encontra a figura.

O método de Bucklow permite o desenvolvimento de trabalhos apoiados nas variações da luz solar e dos seus efeitos especulares, nomeadamente da intensidade e da duração da mesma em que estão expostos à camera obscura. As imagens que resultam do seu complexo processo são estranhas ao espectador, e apesar de ter origem numa

performance fotográfica, essa estranheza parece ter origem no processo impessoal que está

em causa, o qual o artista desloca a atenção do espectador da fotografia em si e do acto que a construiu: «Seja o que for que ela dê a ver e qualquer que seja a sua maneira, uma foto é sempre invisível: não é ela que nós vemos» (Barthes, 1998:48). As suas fotografias, em formatos de grandes dimensões, apresentam uma variedade de intensidades luminosas, representando seres inundados de luz, que parecem olhar para nós – os olhos estão diluídos na própria intensidade luminosa que toma conta da imagem. Ao mesmo tempo, essas imagens têm a capacidade de nos transmitir movimento, em parte resultante dos milhões de pontos luminosos, pequenos e grandes, que parecem cintilar em pequenos e discretos

flashes, devido à exposição a diferentes intensidades de luz – um mapa das estrelas, um

detalhe do cosmos, uma sensação transbordante que nos ultrapassa, fazem das imagens de Bucklow, em especial, as da série Guest, um dispositivo em permanente movimento. Tanto as imagens de Wall como as de Bucklow trabalham o movimento a partir de uma percepção temporal – em ambos os artistas, observamos diferentes tipos de estímulos visuais presentes na própria construção da imagem (e de forma diferente) capazes de promoverem, necessariamente, a construção de um tempo subjectivo. Desse modo, a presença da natureza do estímulo (que resulta da colocação dos elementos visuais, manchas, formas, pontos de luz…), a partir do qual a informação é percebida pelo espectador tem origem na quantidade de mudanças que ocorrem subtilmente na própria

imagem, garantindo um maior número de estímulos – uma imagem dinâmica, rica em movimento.

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