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Parte III – A Ideia de Cinema

III. 3.1 – O operário, a máquina e o quotidiano

A obra prima de Vertov, O Homem da Câmara de Filmar, introduz a câmara de

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A importância do filme O Homem da Câmara de Filmar não se refere só ao cinema mas outras artes, em particular, à Pintura e à Escultura, a partir de efeitos tão diversos como o uso de lentes novas e inovadores sistemas de zoom, efeitos ópticos envolvendo o travelling em simultâneo com abruptas mudanças de planos, sobreposições, a imagem dividida, etc.

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Entre 1920 e1930 a produção norte americana ficou nas mãos dos grandes estúdios, período que marca a enorme produção cinematográfica americana: Warner Bros. Pictures, Famous Players-Lasky Corporation, RKO (Radio-Keith-Orpheum), Metro-Goldwyn-Mayer, Metro Pictures Corporation e Fox Film Corporation/Foundation foram responsáveis pela produção de prodigiosas películas, hoje clássicos do filme mudo, já com o trabalho de muitos cineastas europeus plenamente integrados no ambiente de Hollywood.

Faust (1926) e Tartuffe (1925) de Murnau, Underworld (1927), New York (1929) de Josef von Sternberg, Napoleon (1927) de Abel Gance, The Gold Rush (1925) de Charlie Chaplin ou ainda Safety Last (1923) de

Harold Loyd são exemplos desse período.

O próprio cinema francês dos anos 20 que a crítica denominou cinema impressionista, onde se destacam autores como Louis Delluc (1890-1924), Abel Gance (1889-1981) ou Jean Epstein (1897-1953), por exemplo, foram de extrema importância para a vanguarda do início do cinema. Cinema Impressionismo por aproximação à pintura e à literatura e por oposição ao Expressionismo. Os filmes “impressionistas” caracterizavam-se pelo uso de câmaras móveis, de câmaras subjectivas, de montagens muito curtas e pela evocação de imagens em jeito de flashback.

O cinema russo fez parte de um “sonho” colectivo – um estado novo para um homem novo. Por isso, é muito interessante que este input dado por Vertov, nas décadas iniciais do séc. XX, se tornasse uma consequência decisiva para a definição de uma “escrita“ própria do cinema, tornando-o, do ponto de vista expressivo, autónomo.

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«(…) the creation of a new consciousness, the destruction of reactionary values, the demolition of myths of state, church, and capital – these objectives were to permeate the ideological superstructure of the proletarian state, its arts, its education. And the cinema – in the Lenin’s view, the most important of the arts – was to assume a central role in the struggle; for it was the art most accessible to the dispersed, illiterate masses.» (Vogel, 2005:32).

filmar no quotidiano. Captar a realidade deveria ser, assim, um acto puro e genuíno, algo que só um olho automático poderia protagonizar.

Esta procura de realidade apreendida apenas através das imagens que a câmara de filmar possibilitava, não se impôs de forma imediata. A partir da aceleração (ou da desaceleração), Vertov procurou associar e construir novos ritmos e novos sentidos entre as imagens. As concepções espácio-temporais construídas a partir da manipulação da velocidade da imagem, ajudaram a tirar partido dos enquadramentos, e também dos inúmeros pontos de vista que, em termos técnicos, as câmaras de filmar possibilitavam. Não se trata, pois, de apresentar qualquer transcendência – o cinema de Vertov recusava veementemente usar imagens que, de algum modo, pudessem ser interpretadas como metáforas do espírito –, mas a própria materialidade da vida.

Fig.(34) Dsiga Vertov, O Homem da Câmara de Filmar, 1928

O cinema vertoviano procurava que as imagens se comportassem como um instrumento de dialectização do mundo o que, por vezes, aproximou o seu cinema da ideia de documentário. Estamos pois, perante uma ideia de montagem, sobretudo promovida a partir do encontro entre, por exemplo, os olhares das personagens, nas suas inúmeras possibilidades de cruzamento, ou de deslocamento casuais de objectos e não só no “corte artificial” e respectivo intervalo proporcionado entre as imagens. É, pois, daquilo que é – ou pode ser – susceptível de ser verdadeiro ou falso que a sua cinematográfica (e as suas imagens) trata. Vertov tira partido da câmara de filmar para produzir determinado tipo de imagens – cuja verdade é a sua própria natureza técnica – e, nesse sentido, o próprio “intervalo” (leia-se o corte entre as imagens) dos fotogramas, bem como a sua aplicação e fixação em intervalos específicos, acabaria por ser relegado para um segundo plano. Assim, o impacto individual da imagem de Vertov nos espectadores não é tão dependente do intervalo (o corte) e de tudo o que ele permite em termos de reorganização de sentido para as imagens, mas, sobretudo, é, na óptica de Vertov, um dado puramente perceptivo.

Para Vertov, o fenómeno da persistência da visão torna o espectador prisioneiro do efeito perceptivo gerado pela racionalização da colocação das imagens numa determinada sequência de imagens. Deste modo, o pensamento e a reflexão presentes nas imagens de Vertov reflectem-se inegavelmente muito mais com a forma como a imagem é deixada “correr”, como se ela própria procurasse o lugar a que pertence e não tanto com o intervalo (o corte) que a delimita – por exemplo, em Eisenstein é o corte que tudo delimita e organiza (Grilo, 2007). Efeitos como a ilusão estroboscópica, a sobre-impressão retiniana, como consequência, dariam lugar à produção de um cinema de cariz óptico, estroboscópico, capaz de exprimir, acima de tudo, a interacção entre pontos e matérias captados nas imagens (leia-se homens, pontes, fábricas), em contraponto com a direcção que, entretanto, o cinema norte-americano parecia tomar. Com Vertov, estava em curso (visava-se) a formação na consciência no espectador de uma ideia segundo a qual o cinema é basicamente uma realidade transformada,235 e tal como Benjamin anteviu: o autor- produtor reiventa o medium. Benjamin, defende, no texto O «autor como produtor», a ideia do “artista-engenheiro” relacionada com os construtivistas russos (era assim estes se designavam a si mesmos), onde estavam as premissas de uma atitude que visava uma nova forma de reutilização dos velhos aparelhos ligados à produção cultural (dedicando uma especial atenção às bibliotecas, às escolas, bem como aos diversos organismos culturais existentes um pouco por toda a Rússia). De resto, o Proletkult236 é o símbolo dessa posição, em defesa das organizações culturais ao serviço dos espectadores e dos consumidores237.

O filme O Homem da Câmara de Filmar apresenta-se sem a ajuda de legendas intercalares, sem um cenário e sem actores, com um objectivo essencialmente de teor experimental, afastando-se do texto e da dramaturgia.

Vemos a câmara de filmar durante todo o filme, como se Vertov quisesse tornar o

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O trabalho Entusiasmo (1930/31) foi o primeiro filme sonoro de Vertov. Este filme mostra o esforço colectivo desenvolvido na construção idealista de uma nova Rússia. Os operários aparecem como os heróis da revolução, em planos gerais, muito abertos, dando primazia ao colectivo face ao individual. Este trabalho revela uma notória influência do Construtivismo, em termos plásticos e ideológicos, afastando-se dos aspectos realistas.

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Após 1917, a tendência “Cultura Proletária”, apareceu em força, aspirando ao desenvolvimento de uma arte genuinamente proletária. Foi a partir, sobretudo das ideias de Lunacharsky que o Proletkult (Proletarskaya Kul´tura) foi criado, em 1918, tendo com pano de fundo uma refundação das escolas artísticas russas – a escola de Vitebsk, na Bielorrússia, fundada por Marc Chagall em 1921, viria a ser o expoente máximo dessa revolução.

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Em nenhum dos textos de Benjamin, se faz a apologia do sistema comunista, que o autor conhecia muito bem, pois em 1926, realizou uma prolongada visita a Moscovo. Para ele, uma coisa era a realidade artística produzida pelos artistas, e, outra, os valores defendidos pela linha oficial do partido comunista soviético.

processo técnico que envolveu a feitura do filme num facto público – o próprio “homem da câmara de filmar” aparece várias vezes como um operário em pleno labor. Mesmo a sala de montagem aparece como ideia de cinema, como o laboratório, onde se “produz” o filme. É no desvendar destes processos que o conceito de espectador em Vertov toma lugar, nomeadamente na forma como o mundo é mostrado: o espectador vê as imagens filmadas pela câmara (que pretendem ser a realidade), e também a “fabricação” da realidade (que situa as imagens, por vezes, nos limites da percepção). Vertov mostra o dispositivo, sendo que a realidade transformada é parte do dispositivo. Por exemplo, coloca a câmara de filmar debaixo do comboio, no interior dos carris, mostrando-nos a parte inferior de uma carruagem em movimento que se vai transformando progressivamente numa imagem abstracta.

Com o O Homem da Câmara de Filmar, Vertov pretende retratar o quotidiano da cidade industrial de Odessa, onde a actividade fabril é, na verdade, o protagonista principal, substituindo-se aos actores. O cenário, fortemente industrializado (imponente, dantesco) assume o papel de uma narrativa oculta, que nos vai contando o fervilhar da vida quotidiana. Deste modo, mais do que um filme, é de uma experiência cinemática baseada em acontecimentos reais que se trata; prova disso, é a forma como Vertov captava e editava as imagens no quotidiano da cidade de Odessa, procurando preservar a espontaneidade das acções e dos gestos, como se não tivessem sido captados pela câmara.

As premissas que Vertov desenvolveu em torno da imagem do cinema foram, como dissemos, importantes para o próprio rumo do cinema e também para a sua relação com os espectadores. O colectivo Grupo Dziga Vertov (“Groupe Dziga Vertov”) criado por Jean- Luc Godard em 1968, onde se destacam cineastas como Jean-Pierre Gorin (1943) ou Anne-Marie Miéville (1945), por exemplo, procurou justamente dar continuidade às questões levantadas por Vertov: o experimentalismo da imagem, a sua capacidade de comunicar com os espectadores, o seu papel como denúncia da realidade, a não encenação da realidade... . Filmes como Pravda (1969), Le Vent d´Est (1969), Tout va Bien (1972) constituem-se como autênticos “documentos” da influência, vitalidade e potencialidade do cinema proposto por Vertov.

O próprio cinéma-vérité, fundado em 1959 pelo cineasta Jean Rouch (1917- 2004),238 esteve também ligado às premissas elaboradas por Vertov, um cinema objectivo,

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Salienta-se o filme rodado em África (em colaboração com Edgar Morin (1921)) Cronique d´un été (1961), onde é retratada a vida quotidiana numa comunidade africana. Outro trabalho fundador refere-se a Le

um testemunho na primeira pessoa. Na génese deste cinema estava uma profunda indiferença face à produção norte-americana pós-segunda Guerra Mundial e uma aproximação à história do início do cinema, em particular às vanguardas dos anos 10 e 20 do séc. XX.

O cinema documental, influenciado por Jean Rouch, foi sobrevivendo ao longo do séc. XX, cruzando-se com outros regimes discursivos, em particular com a própria história de arte e das artes plásticas. Aliás, este cinema tem sido, nos últimos tempos, o lugar por excelência de uma aparente mutabilidade plástica, onde se cruza uma diversidade de estratégias que visam, em última instância, um desempenho estético e ideológico que iria definir o género. Neste sentido, o cinema documental tem vindo a aproximar-se do conceito de cinema de arquivo,239 por um lado, e surge muito imbricado com outras artes, por outro, em particular no que diz respeito ao contexto da vídeo-instalação, sem contudo perder a génese da sua identidade.

Um dos casos actuais mais interessantes reporta-se ao trabalho Dial H-i-s-t-o-r-y, da autoria do artista belga Johan Grimonprez (1962), concebido com um filme- documentário para ser instalado num cubo branco (uma sala com quatro paredes brancas e sem cadeiras). Dial H-i-s-t-o-r-y conta-nos uma sucessão de acontecimentos highjacking que se constituem como uma espécie de raccord visual. No desenvolvimento da obra, Grimonprez inspirou-se directamente no trabalho do escritor Don Delillo, em particular, no seu romance White Noise, transmitindo-nos uma visão romântica, sobretudo patente nas imagens dos atentados a aviões dos anos 60 e 70, onde os terroristas são tratados como

freedom fighters.

Cada projecção tem a duração de 68 mn. Ao fim de algum tempo, os espectadores

Joli Mai (1962), de Chris Marker. Jean Luc-Godard realizou o seu primeiro trabalho sob influência directa do cinéma-vérité, com o trabalho À bout de souffle (1960).

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Na prática, o cinema de arquivo e o cinema documental estão divididos por uma linha muito ténue, pois embora se constituam como géneros independentes, no essencial partilham um espaço comum. Em princípio, o cinema de arquivo tenta manter-se neutro face aos assuntos que aborda, limitando ao máximo tudo aquilo que possa de alguma forma assumir (ou aproximar-se de) contornos ficcionais, ou a encenação de factos, privilegiando-se a visualização daquilo que é alvo da atenção. Os panoramas filmados, de finais do séc. XIX (com uma duração entre 3 e 5 mn), são apontados como os objectos inicias do género, que nos mostram cenas da vida quotidiana, onde “aparentemente” está presente um olhar “desinteressado” sobre tudo o que não se resume à mera captação das imagens anónimas. Já no designado cinema ou filme documental, encontramos um sem número de estratégias que utilizam a ficção, a encenação com o sentido de “induzir” um determinado ponto de vista ético. Um dos exemplos mais carismáticos do que acabámos de afirmar diz respeito ao filme Et la Lumière (1989), do realizador Otar Iosselianni (1934), que retrata, a partir de factos reais, o rapto de uma mulher de uma aldeia africana, desencadeando de imediato uma busca por parte do marido. Os actores são os habitantes da tribo; um filme de carácter antropológico que também serve para nos mostrar a cultura que está presente nos povos longínquos.

sentam-se, espalhando-se pelo chão. O trabalho foi realizado a partir de layers de imagens fotográficas, video-clips, found footage, imagens deliberadamente retiradas de recortes televisivos e de reportagens, e também de encenações, fielmente realizadas pelo autor. A banda sonora (desenvolvida por David Shea) desempenha um papel fundamental em todo o trabalho, procurando enfatizar tudo o que é visto.

A par de Grimonperez, Edgardo Cozarinsky (1939)240, Yervant Gianikian (1942) e Angela Ricci-Lucchi (1942),241 por exemplo, são autores maiores deste género que se mantém activo e profícuo e extremamente adaptado aos regimes discursivos que emanam dos variados dispositivos que dizem respeito à imagem em movimento, onde a vídeo- instalação ocupa um grande destaque. Por outro lado, não podemos esquecer que estes trabalhos descendem, em grande medida, do género documentário e, sobretudo, da vanguarda operada pelo filme de arte dos anos 60 neste campo. Foi a partir da década de 80 que inúmeros artistas questionaram a pretensa objectividade do documentário, mergulhando-o numa direcção que podemos assumir como subjectiva, tendência que encontra cada vez mais espaço entre as novas gerações de cineastas e artistas que trabalham a imagem em movimento, dando um novo impulso às múltiplas possibilidades do documentário.

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