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Parte III – A Ideia de Cinema

III. 3 – Vertov, o homem-olho

Os problemas que os futuristas italianos colocaram ao cinema, relacionados com a sua aparente disfuncionalidade face às mudanças presentes no contexto modernista, suscitando sentimentos contrários, entre a adesão e a recusa, teriam, no entanto, um forte impacto no trabalho de um conjunto de jovens realizadores russos.222 Neste contexto, vamos ao encontro de Dziga Vertov.

O período que se seguiu imediatamente à Revolução Russa, de Outubro de 1917, foi abundante e profícuo em acontecimentos artísticos, fenómeno que decorreu da disseminação dos ideais revolucionários. Mas também sabemos que o período que decorreu entre 1915 e 1930 foi, no seio das próprias vanguardas russas, um período muito conflituoso que se expressou através de duas velocidades diferentes. Se um primeiro momento, período anterior à própria revolução de 1917, foi particularmente importante para a relação que se estabeleceu entre a actividade artística em si e os ideais revolucionários presentes, perfazendo, no conjunto, uma força unitária de perfeito entrosamento com as mudanças em curso, o segundo (posterior ao período revolucionário), iria justamente reflectir os imensos problemas que decorreram das pesquisas vanguardistas dos artistas russos com as do próprio poder político instaurado. H. D. Buchloh no texto

From Faktura to Factography (1987), a partir da análise de Walter Benjamin (1994),

confere a esse tempo dois sentidos distintos: o antes e o depois da revolução russa, onde

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Porém, sabemos a força que estas ideias iriam ter no cinema soviético e no próprio desenvolvimento do cinema norte-americano, nomeadamente, no período designado áureo e, em particular, no aparecimento de autores como D.W. Griffith, Raoul Walsh, Thomas Ince.

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Na cinematografia futurista, “pretendia-se” que todas as artes fossem resumidas a uma realidade de 24

frames por segundo, sendo o frame, agora, o quadro. 221

«Il faut libérer le Cinématographe comme moyen d´expression pour en faire l´instrument idéal d´un art

nouveau immensément plus vaste et plus souple que tous les arts existants (...)» (Marinetti, Corra, Settimelli,

Gina, Balla, Chiti, 2008: 351).

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procura destacar diferenças entre os (e dos) artistas face às duas situações, delineando, desse modo, dois tempos diferentes referentes à arte soviética de vanguarda. A linha Faktura, a linha do experimentalismo afecto aos artistas inicialmente empenhados artística e socialmente na construção de uma “nova Rússia”, ao qual se seguiria a linha da Faktographia – que Buchloh define como período de “colagem” – a arte entendida como pura invenção formal, e não “propaganda mimética”. Faktura e Faktographia foram, pois, responsáveis pela produção artística na Rússia durante as primeiras três décadas do séc. XX, desenvolvendo um ambiente único e exuberante. Foi durante este período que as autoridades (em concomitância com os ideólogos da revolução) foram beber muita da inspiração para as mudanças em curso, abrangendo praticamente todos os sectores da sociedade russa. Este interesse, como frisou muito bem Krisztina Passuth (1988), surgiu logo após a vitória bolchevique expressa numa convocatória por parte do Comité Central do Partido Comunista, onde os artistas então considerados de vanguarda foram chamados a desempenhar um papel de grande relevância no projecto revolucionário em curso – os escritores e poetas Alexandre Blok (1880-1921) e Vladimir Mayakovski (1893-1930), os pintores Petrov-Vodkine (1878-1939) e Natan Altman (1889-1970), o escultor Vladimir Tatlin (1885-1953) e o encenador Vsiévolod Meyerhold (1874-1940). O objectivo era simples: fundar e estimular uma profícua colaboração entre os artistas de vanguarda na construção de uma nova Rússia. No entanto, as manifestações da vanguarda artística (o Cubo-Futurismo,223 o Suprematismo, o Produtivismo e o Construtivismo) foram, desde muito cedo, olhadas com alguma desconfiança por parte dos responsáveis pelo sector da Educação e da Arte. Em primeiro lugar a acusação (como Benjamin referiu)224 destes

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Curiosamente, na Rússia, o Cubismo e o Futurismo foram, desde o início, e ao contrário do que aconteceu particularmente em França e Itália, movimentos convergentes – o Cubo-Futurismo foi, desta forma, entendido pela vanguarda russa como uma poderosa ferramenta cultural de ataque aos “sectores reaccionários”. Na Europa ocidental, os cubistas alcunhavam o Futurismo de “sphaguetada”. A questão fundamental residia no facto do Futurismo ter expresso a sua oposição à essência estática presente nas relações entre formas e cores das obras cubistas, procurando, ao invés expressar velocidade, dinamismo e evitando dessa forma qualquer representação da imobilidade, afastando-se da responsabilidade em sugerir ou transmitir peso, densidade, volume. Ou seja, quer no plano material, quer no espiritual, o Futurismo deveria rejeitar toda e qualquer manifestação realista, e optar pela expressão do pulsar da vida moderna.

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Benjamin estava a par dos debates que se iam produzindo na década de 20 do séc. XX, em particular, na União Soviética, através da sua profunda amizade com Asja Lacis (que conheceu em 1924), directora de uma companhia teatral e defensora das ideias e das causas revolucionárias soviéticas. E também de Bertolt Brech, com quem iniciou um profícuo diálogo a partir do início da década de 30 do séc.XX. Foi notória a sua ênfase no cinema soviético, pois entendia que o cinema era, acima de tudo, uma ferramenta que operava no foro cognitivo, na tendo a mente e seus “mistérios” com destinatário. O filme realizado por Dziga Vertov (O

Homem da Câmara de Filmar), foi, pois. o pretexto para Benjamin desenvolver as suas ideias no texto a

artistas serem “filhos” de uma “arte aburguesada ocidental”, decadente, aliás, razão pela qual as suas actividades foram sempre muito vigiadas. Por outro lado, o surgimento de novas palavras de ordem, em finais da década de 30, directamente a partir do interior do sector intelectual russo, nomeadamente termos como “reconstrução” e “refundação”, surgem como conceitos que acabariam por emergir e transformar-se em novos paradigmas de uma sociedade que estava há trinta anos envolvida em profundas mudanças sociais. A vanguarda devia ser de esquerda e a tradição finalmente superada (Ferro, 1976).

É com um artigo publicado no jornal Literatournaia Gazeta de 25 de Maio de 1932, que surge pela primeira vez o termo “Realismo Socialista” que, no fundo, vem pôr fim à conflitualidade existente no seio das vanguardas russas. Estamos a falar de um clima de profunda mudança sociocultural que não era específico do contexto cultural russo, disseminando-se por toda a Europa (o chamado regresso à ordem), consolidando desta forma o fim das vanguardas históricas.225 O cinema e a fotografia (como a colagem e a fotomontagem) pareciam ser o emblema, o paradigma da revolução em curso, não escapando a um destino, de certo modo, pré-anunciado – estar ao serviço da propaganda ideológica, o que Marc Ferro (1993), de resto, considera como “um certo mal entendido” entre o que se queria do cinema soviético, por parte dos artistas, e da visão institucional revolucionária. Com efeito, esse facto torna-se bastante claro nas palavras de Alexander Rodchenko, para quem o cinema e a fotografia seriam, sobretudo, novos meios para procurar novas linguagens, capazes de darem expressão a uma nova cultura visual emergente na época. Em 1925, Alexandre Rodchenko, enquanto representante do pavilhão russo na Exposição Internacional de Artes Decorativas e Industriais Modernas, em Paris, descrevia que na Rússia se respirava um “sabor” socialista, tocando tudo e todos, um ambiente de confiança, camarada, amigo e de festa, (Kiaer, 1996).

Em plenos anos 20, reinava, pois, um ambiente absolutamente invulgar, de grande curiosidade por tudo o que dizia respeito ao cinema, inclusive o que se produzia no

“arte de produção”. Ou seja, o peculiar contexto soviético (e o seu cinema) conseguia produzir e incorporar uma arte de cariz industrial directamente fundada e incorporada na vida quotidiana.

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Nesse sentido, é importante termos em conta a noção do temo vanguarda, usado no contexto do início do séc. XX (não esquecer a referência Mikhail Bakunin e a revista que fundou L’Avant-Garde fundada em 1878, como também o importante emuito citado texto de Baudelaire intitulado Mon Coeur Mis à Nu (publicado postumamente, ...), onde o autor recupera o conceito wagneriano de Gesamtkunstwerk, termo que significa obra de arte total, referindo-se à ópera, uma arte feita de muitas artes (pintura, literatura, teatro, etc.). Deste modo, quando nos referimos às vanguardas russas temos que ter necessariamente em conta as idiossincrasias (muito ligadas a processos ideológicos, de ruptura e de confronto) próprias da história da arte russa.

estrangeiro. Inúmeros acontecimentos iriam ajudar a proporcionar ao cinema, e a Vertov226 em particular, o desenvolvimento de um laboratório capaz de assimilar todas as experiências estéticas que abundavam, à época, e simultaneamente impor-se através da tentativa de criação de uma linguagem adequada ao meio, cinemática por excelência e, nesse sentido, Vertov esteve atento aos inúmeros contributos que desde a poesia, passando pelo teatro até à escultura227 irão estar presentes na aventura do cinema russo.

Após a estabilização dos mecanismos técnicos específicos da captação da imagem em movimento e posterior projecção, o cinema iria encontrar as condições necessárias para se reconverter à dimensão vertoviana, nomeadamente no desenvolvimento de um conjunto de ideias inovadoras decisivas para a sua definição enquanto prática artística.228 Vertov foi provavelmente um dos primeiros artistas que, ao relacionar-se directamente com a imagem em movimento, viria a ter a noção do fortíssimo impacto que a produção e a natureza desta imagem poderia provocar no espectador, no sentido de explodir literalmente os “limites da recepção”. Deste modo, Vertov estabeleceu entre o espectador e as personagens um estado de máxima cumplicidade: o homem do novo cinema russo (nomeadamente, a evocação do novo trabalhador da Rússia moderna) é, sem dúvida, o espectador que exprime o seu comprometimento com a revolução e com a colectividade. Nesta demanda, Vertov procurava um cinema de cariz subjectivo, uma interpretação do mundo a partir de experiências individuais, como se fosse uma percepção extra-corpórea. Ou melhor, o seu olho mecânico ocupasse o espaço que é pertença dos seus olhos, que desta forma assumem o lugar dos olhos de todos os personagens que desfilam pela cidade de Odessa (Michelson, 1995). O grande conceito que Vertov desenvolve é, pois, o cinema-olho (do russo Kino-

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O nome Dziga Vertov (Denis Kauffman) signigica na prática uma adesão total ao novo mundo: Dziga é a onomatopeia de uma manivela da câmara de filmar e Vertov significa rodar. Como se Dziga Vertov fosse literalmente transformado numa câmara de filmar (humana) capaz de registar, documentar e editar o mundo em imagens. Por exemplo, o seu manifesto Kinonedelia (1918), um jornal (de pequenos fait divers) foi, sobretudo, construído a partir de fragmentos de imagens em movimento. Mais tarde, em companhia da mulher e do irmão, funda o intitulado Conselho dos Três (1922), e imediatamente surge a tese – o cinema-

olho – que irá alterar o rumo do cinema para sempre, nomeadamente tendo em vista o cinema dramático

alemão e o cinema americano que, salvaguardando inúmeros aspectos técnicos defendidos por Vertov, estavam submetido aos interesses do Teatro e da Literatura.

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De que se destacam a Poesia (“matemática”) de Mayakovsky, o Teatro produzido com a introdução de engenhos mecânicos de A. Gan, a escultura monumental de Naum Gabo (1890-1977), do seu irmão Antoine Pevsner (1886-1962) e Vladimir Tatlin (escultura/projecto à Terceira Internacional), a Pintura de Malevich, a Fotomontagem de Alexander Rodchenko e El Lissitzky.

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A Vertov se deve um substancial conjunto de invenções em torno da manipulação da imagem em movimento, que ainda hoje se mantêm “vivas”, bem como inúmeros avanços relacionados com formas de captar, editar e montar imagens. O filme O Homem da Câmara de Filmar (1929) foi o rosto do seu cinema, responsável pela revolução que da vanguarda russa, sem esquecer a importância do contributo de outros cineastas.

glaz), onde o cinema, acima de tudo, é um instrumento para analisar o mundo,

transformando, deste modo, o operador de câmara (kinok) literalmente num olho.

Assim, para Vertov, o “olho” do cinema (a lente da câmara) permite-nos aceder à “verdade do mundo”, descodificando-o de uma forma clara porque, ao contrário do acontece com o olho humano, a lente da câmara é objectiva e imparcial. De alguma forma, poderíamos ser levados a pensar que as ideias que Vertov desenvolve em torno do seu cinema estariam próximas de um “realismo cinematográfico”, essencialmente promovido através das qualidades tecnológicas da máquina do cinema.229 Pelo contrário, para Vertov a câmara de filmar era, antes e mais, uma ferramenta, um interface que no encontro com o espectador substituía-se, dessa forma, à “natural” percepção humana, manifestamente incapaz de ver o mundo tal qual ele é (o realismo de Vertov assume-se contra todo e qualquer naturalismo).

O cinema, em Vertov, não reproduz a realidade, cria e desenvolve a sua própria realidade, desierarquizando o ver. Na essência, o cinema para Vertov é entendido como uma revolução. Vertov olhava para a ficção como um “agente do mal”, algo que enganava deliberadamente o espectador. Aliás, este sentimento foi veementemente expresso pelo autor, enquanto líder do grupo Kinoks: «Nós proclamamos que os filmes antigos, baseados em romances, filmes teatrais (...) são leprosos (...) Afastem os vossos olhos deles! (...) Nós afirmamos que o futuro da arte do cinema passa por negar o seu presente (...)».230

Neste sentido, a máquina cinematográfica, para Vertov, era eficaz, perfeita, substituindo-se às limitações do olho humano: por sua vez a lente da câmara (o olho da máquina) trabalhava ininterruptamente. Esta tentativa de alcançar uma autonomia artística absoluta do cinema, por parte de Vertov, configura um posicionamento estético diferente do que, por exemplo, na época, o cinema alemão231 ou americano evidenciavam, ambos ainda muito dependentes e subsidiários de outras artes, como o teatro ou a literatura, por exemplo. Deste modo, Vertov refutava toda e qualquer referência ao cinema que, de alguma forma, estivesse implicado na lógica discursiva do “mundo”, bem como temas do

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A ideia de que o cinema produzia uma verdade, única, singular, concebida a partir da neutralidade do “olhar” de uma máquina. Os seus filmes, Kinonedelia – série (1919), Aniversário da Revolução (1920), A

Batalha de Tsaritsin (1922/25), Kinopravda – série (1926), A Sexta Parte do Mundo (1927/28), O Homem da Câmara de Filmar (1928), O Décimo Primeiro Ano (1929), Três cânticos para Lenine (1) (1937), ou a Canção de Ninar (1938), e O Juramento dos Jovens (1947/53), em formato de noticiário, são prova disso. 230

«We proclain the old films, based on the romance, theatrical films (...) to be leprous (…) Keep your eyes off them! (…) We affirm the future of cinema art by denying it´s present (...)» (Vertov, 1985:7).

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No caso particular do cinema expressionista alemão, o uso acentuado dos efeitos da luz pretende literalmente libertar-se do ponto de vista plástico do teatro e da literatura embora as questões ligadas à narrativa se mantivessem num regime de grande proximidade com o teatro e a literatura.

real (os dramas familiares, as guerras... .) que, segundo o autor, acabariam por contribuir para o aparecimento de uma imagem profundamente identificada consigo mesma (Petric, 1987) e desse modo acabariam por negar a neutralidade presente no olhar humano232 – ao desenvolver a ideia da coincidência da imagem com a realidade, Vertov apontava para o futuro das próprias imagens em movimento, intuindo que se estava a dar um passo significativo na criação de uma forte linguagem, expressiva, nova e exuberante, diferente das linguagens reproduzidas noutros cinemas.233 Mas, como afirma Vogel, o contexto político russo ao estar atento (e próximo) ao cinema tinha as suas próprias ideias acerca do que ele que deveria ser: «(…) a criação duma nova consciência, a destruição de valores reaccionários, a demolição de mitos, de Estado, da Igreja e do Capital – estes objectivos deviam premiar a superstrutura ideológica do estado proletário, das suas artes, da sua educação. E o cinema – do ponto de vista de Lenine, a arte mais importante – devia assumir um papel central na luta, porque era arte mais acessível para as massas dispersas e iletradas»,234 contexto que Vertov utilizou de forma subtil.

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