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1.3 – O ecrã euclidiano: espaço fechado, espaço aberto

Parte II – Do Visível ao Visual

II. 1.3 – O ecrã euclidiano: espaço fechado, espaço aberto

O ecrã euclidiano resulta do seguinte entendimento: a perspectiva linear consiste em “projectar” o espaço tridimensional num espaço bidimensional, de acordo com regras, pois tem como função transmitir, na projecção123 (entendida como um “caminho” que encontra um obstáculo, uma parede invisível), a informação “adequada” do espaço projectado. Nesse espaço, o espectador deve poder reconstruir mentalmente a volumetria dos objectos, bem como a disposição de todos os elementos visuais que compõem as cenas. Neste sentido, o ecrã euclidiano visa a representação, no espaço, das acções humanas, produzindo, em particular, na pintura, uma forte ilusão de realidade. Por outro lado, também sabemos que o espaço “não se abre”, “não se disponibiliza” só à questão da perspectiva e da profundidade em particular. Em primeiro lugar, do ponto de vista perceptivo, o espaço tem a ver essencialmente com a percepção visual e háptica. Em segundo lugar, na representação do espaço em imagens, apenas se consegue reproduzir uma parcela daquilo que é observado; por isso deixam-se de “fora” muitos outros factores que lhe são inerentes (essencialmente ligados à cor e à luz). O espaço é, pois, uma categoria muito mais complexa do que aquilo que acontece na sua representação icónica.

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A lenda clássica da origem da pintura narrada por Plínio assinala a fixação da imagem (a filha de um oleiro traça a linha de sombra do seu amante numa parede) estaria na base da noção de projecção, sob a qual se apoiaria quase toda a pintura clássica, nomeadamente, através do dispositivo perspéctico de Alberti.

Numa reflexão sobre a tese defendida por Panosfsky,124 Pierre Francastel, no texto «Naissance d´un Espace» (1970) e também em Pintura e Sociedade (1950), propõe-nos uma releitura do papel do ecrã euclidiano, centrada na análise deste ecrã.

Alberti ao definir a perspectiva como um processo de reconstrução matemática da natureza, como uma tomada de consciência das leis do mundo, considerando a arte do seu tempo como um “saber verdadeiro” (por oposição à arte medieval, fundada na imitação e na interpretação empírica das aparências), instaurou um novo entendimento da própria representação, passando, genericamente, de uma visão concreta a duas dimensões a uma visão figurativa a três dimensões. Neste sentido, a perspectiva do Quattrocento produziu uma noção de espaço representado através de um pragmatismo visual como nunca tinha existido antes.

É neste contexto que Francastel redefine a influência do ecrã euclidiano, ao longo de cinco séculos, e no caso da pintura em particular, como um sistema fechado, alimentando-se, desse modo, em torno de si própria um espaço limitado e constrangedor. Assim, Fancastel estabelece uma interessante analogia entre a “pintura-janela” do Renascimento, a partir da “moldura” da sua imagem, e a noção de “espaço cúbico”, um espaço “enclausurado” através dos limites das suas faces, entendidos como autênticas “grelhas” geométricas que se impuseram sobre o espaço real e também com consequências para o espectador – um espaço puramente visual.

Francastel propõe a análise do espaço representado a partir de um ponto de vista múltiplo, tendo em conta tanto as questões levantadas pela percepção visual e háptica. Neste sentido constrói a noção de “espaço social”, um espaço muito apoiado nas teses da Sociologia e da Psicologia, nomeadamente formuladas por Émile Durkheim (1858-1917) e Henri Wallon (1879-1962), que exaltam a necessidade dos processos sociais serem considerados em qualquer manifestação do homem, e por conseguinte também na representação. Deste modo, ele “inventa” um espaço aberto diferente do renascentista. Este espaço contrapõe-se ao espaço puramente visual, capaz de combinar as percepções visual e táctil, que denomina topográfico. Este espaço, entendido como aberto, é de natureza ilimitado, porquanto é polisensorial e operatório, providenciando, em termos objectivos, uma enorme margem de experimentação uma vez que permite ao espectador outras abordagens na representação. Da arte egípcia à Idade Média passando por alguma pintura

124 Às ideias de Panofsky sobre o sistema de representação do espaço, proporcionado pela perspectiva linear,

entendida essencialmente como uma construção intelectual tornada centro simbólico de um mundo e de um homem novo: símbolo da transformação de um mundo teocrático num mundo antropocêntrico.

do séc. XX, como o Cubismo, por exemplo, Francastel define a concepção de um espaço que resulta da percepção visual combinada com percepção táctil, e com inclusão de todo o corpo sem exclusão da mobilidade do espectador.

Tomemos por exemplo, duas obras, A Flagelação de Piero Della Francesca (1465) e Os frescos da Igreja de São Francisco (1295), de Giotto, onde podemos identificar claramente estes dois espaços. A primeira,125 do ponto de vista da composição pode ser considerada um exemplo final da perspectiva linear do Quattrocento. A obra representa um motivo religioso: uma flagelação que tem como cenário um templo. A pintura está dividida em duas cenas separadas por uma coluna do templo, onde decorre a flagelação. No lado esquerdo, e em profundidade, um plano onde se encontram Cristo e os soldados. No lado direito da pintura, e num plano frontal, encontram-se três figuras, cuja identidade não está confirmada. Nesta obra existe um ponto de fuga claro, no centro da parte inferior da pintura que possibilita às figuras dos dois planos serem vistas a partir de pontos de vista diferentes. As figuras que se encontram no plano em profundidade são mais “altas” que as do plano frontal. Deste modo, e no correcto alinhamento com a pintura, deve posicionar-se o espectador que assim fica “fixo” ao seu centro (Kemp, 1990).

Por outro lado, e de forma absolutamente notável, Piero Della Francesca parece “desviar” a atenção do acontecimento principal (a flagelação de Cristo) para que a perspectiva assuma o protagonismo da cena. Neste sentido, a diversidade dos elementos formais da composição parece acentuar uma relação cenográfica entre a pintura e o espectador:

«(...) na correspondência com a coluna do suplício há um grande disco verde escuro que se insere no precioso pavimento de mármore branco e preto de padrão geométrico, pintado em escorço, enquanto que os elementos dos embutidos em mármore, quadrados, divergem em finos rectângulos. O destaque múltiplo entre este pavimento, do qual o artifício óptico acentua o sentido de profundidade e a faixa do pavimento de tijoleira vermelha atravessado por uma faixa horizontal cria a impressão de que esse plano se dilata em direcção ao espectador, como se estivesse inclinado para a frente».126

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Piero Della Francesca, em De prospectiva Pingendi defende a construção do espaço segundo linhas que se dispõem paralelamente à base do quadro, e, na sua perpendicular, linhas convergentes para o ponto de fuga. A perspectiva, para Piero, não é mais do que a “harmonia” possível de uma racionalidade “superior”, “divina” na representação, possibilitando ao espectador uma relação especial com a natureza. (Sproccati, 1994). A Flagelação de Cristo é uma pintura de pequenas dimensões (58x81cm), encontrando-se, actualmente exposta na Galeria Nacional de Marche, em Urbino.

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«In correspondenza della collona del suppligio è un grande disco verde scuro che si inserisce nel prezioso pavimento di marmo bianco e Nero a di seguo geométrico, dipinto in forte scorcio, coricché gli elementi della tarsia in marmo, quadrati, divergono sotitili rettangoli. Lo staco netto tra questo pavimento, del qual l´atificio otticoaccentua il senso di prountità, e la fascia di pavimento in cotto rosso attraversato da uma striscia bianca orizzontale crea l´impressione che tale plano si dilati verso l´osservatore como se fosse inclinado in avanti.» (Maetzke, 1998:210).

Piero oferece ao espectador a possibilidade de observar a cena a partir do seu ponto de vista, congelando-o, desse modo, monocularmente.

Já em presença dos frescos da Igreja de São Francisco em Assis, da autoria de Giotto, em 1295, somos confrontados com uma situação diversa. Estes frescos pertencem ao ciclo das narrativas da vida de São Francisco pintado nas paredes laterais e nas superfícies/interiores atrás da fachada da igreja superior de Assis. O ciclo, de 28 episódios, está disposto em grupos de três, ocupando o espaço entre cada duas traves, excepção feita ao primeiro espaço que contém 4 frescos. Nas paredes, e junto à porta de entrada da igreja, encontram-se no lado direito e esquerdo dois frescos que fecham a cena.

Fig.(10) Piero Della Francesca A flagelação de Cristo, 1465

O espaço arquitectónico é um factor determinante, pois apesar de os frescos “viverem” individualmente eles foram, no seu conjunto, concebidos para o contexto espacial da nave central da capela da igreja. A colocação (uma narrativa que nos faz lembrar as bandas desenhadas) dos frescos ao longo das paredes actua no espectador no sentido de lhe ir despertando os “sentidos” dando-lhe simultaneamente total liberdade de movimentos. O espectador é “convidado” a procurar a melhor posição e o melhor enquadramento para assistir a uma sucessão de cenas com diferentes pontos de fuga (Baxandall, 1991).

Por sua vez, cada fresco reflecte individualmente os conteúdos narrativos de cada episódio, mas também os aspectos formais inovadores que Giotto introduziu na pintura. O fresco «O Sermão de São Francisco aos Pássaros»,127 um dos episódios que fecha a cena, é particularmente interessante. Na cena, a tensão emotiva nasce da subtil diferenciação dos rostos e dos olhares das personagens, do ritmo das linhas e das cores que ajudam a concentrar a atenção sobre o conteúdo da história, ao mesmo tempo fornecendo um certo

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Ciclo de São Francisco: sermão de São Francisco aos Pássaros, 1295. Nave central da capela superior de Assis.

“naturalismo” a toda a cena, como a propósito refere Martin Kemp: «Este sentido do carácter “de testemunha ocular” da cena de Giotto reflecte um dos motivos principais por detrás do novo naturalismo (...) para apresentar as narrativas do sagrado voltadas para o espectador em termos humanos (...)».128

Fig.(11) Giotto Ciclo de São Francisco: O Sermão de

São Francisco aos Pássaros, 1295

Fig.(12) Nave central da capela superior Assis

Os dois conceitos, espaço fechado e espaço aberto, constituem dois entendimentos que, não se anulando um ao outro, promovem, no entanto, ao nível da representação do espaço, concepções muito distintas. A importância é significativa, pois no séc. XIX e com o “estilhaçar do ecrã euclidiano” na representação artística, verificou-se a manutenção genérica dos seus princípios na fotografia e no cinema. Ponto que irá ser essencial para se poderem analisar as questões da produção e regime da imagem fixa e em movimento, onde se inclui, de forma particular, o problema espacial, da fotografia, do cinema, da vídeo- instalação e também o do estatuto do espectador. Ou seja, se é indiscutível que tanto a fotografia como o cinema mantiveram “os princípios do ecrã euclidiano”, já em relação à vídeo-instalação, as questões que Francastel enunciou em torno do seu conceito de espaço aberto, polisensorial e operatório parecem, em parte, recuperadas por esta categoria, nomeadamente no que diz respeito à pré-implicação do espectador em todo o processo artístico.

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