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Parte III – A Ideia de Cinema

III. 2 – Subitamente, o contexto futurista

A ideia de se produzir um dispositivo capaz de promover “encanto e magia”, manipulação de sentimentos (e simultaneamente um veículo de propaganda ideológica) junto de um público alargado, transformar-se-ia, em termos socioculturais, provavelmente num dos mais importantes eventos ocorridos nos últimos 100 anos, marcando para sempre, e de forma emblemática, a forma como nos relacionamos com o mundo. Interessa neste sentido perceber/aferir os contributos directos que estiveram na origem da relação deste novo dispositivo com os vários interesses associados a sectores da sociedade, onde se incluiu, naturalmente, o artístico.

Se recuarmos até ao princípio do século XX, mais concretamente ao ano de 1909, ano de lançamento do manifesto Violence Incendiaire publicado no jornal Le Fígaro, em Paris, por Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944), verificamos que o cerne do texto era o ataque directo e inequívoco à cultura em geral, denunciando-a através da crítica às “estruturas sociais” que mantinham, na sua opinião, a arte imbuída de uma atitude arcaica e historicamente desfasada face a um tempo social/tecnológico radicalmente transformado. Curiosamente, foram as ideias em torno do cinema e, em particular, da imagem em

movimento com que Marinetti202 teve contacto, por via do trabalho de Filoteo Albertini (1865-1937),203 um dos precursores do cinema em Itália, que levou à enfatização das questões plásticas que envolviam directamente problemas relacionados com o Movimento204 e a Dinâmica. A Dinâmica, entendida como sensação de vertigem, conferia a este novo meio de expressão armas indispensáveis para assegurar, segundo Marinetti, a continuidade da arte enquanto paradigma do mundo e em movimento sincrónico em relação a ele. Movimento e sensação de velocidade “fora do espaço real” garantiam a Marinetti, desse modo, através do fascínio do cinema, uma real possibilidade de representação que fosse emblemática, justamente, desse novo desígnio que acompanhava um mundo cheio de máquinas, movidas a energia, onde a velocidade, o movimento e a dinâmica se constituíam como a cambota, a força motriz, a ordem de comando.205

A obra de Giacomo Balla (1871-1958) foi desenvolvida a partir da sintetização de todas as fases da sua pintura, descaracterizando e mostrando os processos formais subjacentes à produção do movimento, por exemplo, ou mesmo em torno de inúmeras pesquisas que o efeito da luz206 produzia nas formas representadas – dinamismo e decomposição a par de elementos próximos do simbolismo, outras ainda decorrentes da influência da Arte Nova – que Balla conjugava na sua pintura (Lista, 1991).

Outro caso muito interessante reporta-se ao trabalho de Umberto Boccioni (1882- 1914) que, no próprio universo futurista, desenvolve uma ideia que reflectia, essencialmente, a dinâmica na moderna sociedade industrial. O dinamismo resultava, no entender de Boccioni, da fusão entre as artes em si e também da fusão entre as linhas de força das obras e os espectadores, originando, deste modo, um jogo cénico que os envolvia num ambiente singular.207 O fascínio futurista pelo dinamismo evidenciava-se, na sua

202

Aquilo que Marinetti propunha era a simples erradicação de toda uma cultura baseada na tradição agora incapaz de acompanhar as múltiplas e variadas transformações técnicas e tecnológicas que surgiram por todo o lado, alimentadas pelas novas energias, com relevo para a electricidade, enquanto símbolo e paradigma dos novos atributos socioculturais desse tempo – velocidade e energia (Marinetti, 1995).

203

Inventor do designado Kinetógrafo Albertini em 1895 (Griganaffini, 1995).

204

Esta ideia pressupunha que o papel do movimento possibilitado pelo cinema, produzido de forma mecânica, a nível perceptivo, era manifestamente semelhante ao movimento real da vida, aspecto importante para o contexto futurista.

205

O cinema parecia ser, na óptica de Marinetti, sobretudo uma forma de expressão dinâmica, capaz de convocar o que melhor se conseguia produzir em todas as outras artes. O cinema era entendido como a síntese e integração da tecnologia na arte.

206

Os seus estudos sobre o movimento, a cor e a luz influenciaram muitos artistas integrados em inúmeras correntes artísticas, nomeadamente, o Suprematismo, o Cubismo, o Abstraccionismo. A obra intitulada

Dynamism of a Dog on a Leash (1912) explora a questão da visão estroboscópica, visão que resulta do

encadeamento de “fotogramas” em sucessão de uma determinada acção.

207

A possibilidade de expandir as obras através de uma avalancha de ritmos baseados em estruturas dinâmicas capazes de, no seu conjunto, atrair o espectador para um jogo de movimentos e sensações,

generalidade, nas técnicas que se relacionavam com a pintura, agora realizada por métodos electromecânicos e, por isso, tornando mais dinâmico todo o processo adstrito à construção das obras.

Fig.(33) Giacomo Balla Dynamism of a Dog on a Leash, 1912

Deste modo, uma das ideias que sobressaiu do projecto futurista208 foi a de reunir várias expressões artístico-culturais, da literatura à pintura, da escultura à arquitectura, passando pelo teatro209 e pela performance, “mergulhando-as” num novo mundo de possibilidades tecnológicas, facto que se traduziu numa aproximação aos eventos e acontecimentos presentes na vida quotidiana.

O dinamismo surgia assim como o leitmotiv, onde a velocidade era a arma que tudo formava e deformava: os objectos, as memórias e a própria percepção. O Cinematógrafo parecia ser a máquina perfeita, o paradigma, a solda entre todas as disciplinas, definindo de forma exemplar as práticas artísticas e o papel futuro dos espectadores na sua relação com a arte que, segundo Marinetti, podiam agora vivê-la plenamente. Não deixa de ser interessante esta ideia, presente em Marinetti, em que o Cinematógrafo surge como a solda entre todas as disciplinas mas, ao mesmo tempo, provém delas entendidas enquanto entidades separadas.

No entanto, o Cinematógrafo para os futuristas italianos constitui-se como um

constituiu um legado fundamental para o assunto que estamos a analisar.

São representativas deste pressuposto as suas obras intituladas Elasticity (1913), Dynamism of a

Soccer Player (1913) ou mesmo Development of a Bottle in Space (1912). 208

Dinamismo, energia, velocidade, simultaneidade aparecem-nos, desde logo, no Manifesto Técnico da

Literatura Futurista, cerca de 1912-13 e já antes no seu primeiro romance da autoria do próprio Marinetti, Mafarka, o Futurista.

209

Prampolini, na cenografia, transpôs as ideias cinemáticas de Marinetti e Albertini para o palco teatral, onde a intenção era dinamizar uma acção dramática que se expressasse ao nível da mente dos espectadores. Os seus eventos designados “palcos futuristas polidimensionais” (Grau, 2003:144), onde o espaço cénico era geralmente esférico e desenhados em função do público, promoviam também a ideia de propor movimento a tudo, espectadores incluídos. O seu trabalho viria a ter grande importância no designado Teatro Sintético Futurista, no Teatro Surpresa e no Teatro do Futuro (também intitulado Visionário) expandindo-se até à década 40, com o Teatro do Grotesco.

problema: se por um lado eram reconhecidas as suas potencialidades, nomeadamente a sua capacidade em traduzir de forma invulgar o contexto de mudança que estava em curso, por outro lado, a vigente produção de filmes, essencialmente oriundos do contexto norte- americano, francês, alemão e inglês, reflectia, na óptica futurista, um uso “limitado” dessas potencialidades. Esses objectos representavam, para os artistas futuristas, uma continuidade da tradição clássica, com recurso à narrativa e à mimesis. O próprio manifesto futurista do cinema dava conta deste problema:

«Salvo os filmes interessantes de viagens, guerras, caçadas, etc., não souberam senão infligir-nos dramas, melodramas e dramalhões ultra-passadistas. O próprio cenário que pela sua brevidade e variedade pode parecer ter evoluído é, ao contrário, na maioria das vezes, uma análise patética e banal. Todas as imensas potencialidades artísticas do Cinematógrafo permanecem portanto absolutamente intactas.

O Cinematógrafo é uma arte em si. O Cinematógrafo nunca deve copiar a cena. Sendo essencialmente visual; o Cinematógrafo deve completar, antes de mais, a evolução da pintura: destacar-se da realidade, da fotografia, do gracioso e do solene. Tornar-se anti-gracioso, deformado, impressionista, sintético, dinâmico, liberto da palavra».210

Desta forma, o cinematógrafo, na óptica futurista, era um extraordinário meio, essencialmente propício à expressividade, capaz de gerar novas emoções, afastando-se, dessa forma, da primeira vaga de filmes produzidos a partir do Cinematógrafo: os futuristas ofereceram um pensamento cinemático diferente – a arte futurista devia ser como o cinema. Resta então uma dúvida basilar: se, por um lado, se compreende a perplexidade da relação do Cinematógrafo com a produção genérica de filmes na época, por outro, permanece um enigma a razão pela qual os futuristas italianos não enveredaram pela utilização do Cinematógrafo em termos de experimentação. Não existe uma resposta consensual, sendo certo que a irrupção do cinema e sua transformação em indústria, quase em simultâneo, ocorreu com tal impacto que literalmente varreu toda e qualquer hipótese de se construir à altura, em termos culturais, qualquer alternativa do que Peter Bondanella

210

«À l´exception des films intéressants de voyages, chasses, guerres, etc., ils n´ont su que nous infliger drames, mélodrames, dramuscules ultra-passéistes. Le scénario lui-même, qui par sa brièveté et sa variété peut paraître en progrès, n´est au contraire, le plus souvent, qu´une analyse pitoyable et banale. Toutes les immenses possibilités artistiques du Cinématographe demeurent donc absolument intactes.

Le Cinématographe est un art en soi. Le Cinématographe ne doit donc jamais copier la scène. Étant essentiellement visuel, le Cinématographe doit avant tout parachever l´évolution de la peinture: de détacher de la réalité, de la photographie, du gracieux et du solennet. Devenir anti-gracieux, déformant, impressionniste, synthétique, dynamique, motlibriste» (Marinetti, Corra, Settimelli, Gina, Balla, Chiti, 2008: 351).

(2009) define como um período imparável e decisivo para o próprio êxito com que o cinema iria deparar-se a nível mundial.

Esta situação pode explicar, de alguma forma, a razão pela qual o futurismo italiano não foi capaz de produzir um razoável número de obras de cariz cinematográfico211 ou trabalhos verdadeiramente desenvolvidos com recurso à imagem em movimento. É certo que a maior parte dos artistas que aderiram ao movimento eram, sobretudo, pintores e escultores, decisivos no futuro da imagem em movimento, em particular através de uma enfática influência que iriam produzir nos seus colegas cubo-futuristas, suprematistas e construtivistas russos.212 Todavia, a partir da produção de obras de cariz plástico e poético, desenvolveu-se um pensamento estético que se iria revelar radicalmente cinemático, de importância vital, nomeadamente, para o desenvolvimento do próprio cinema em si.

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