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III.5.2 – A música visual de Oskar Fischinger e René Schwob

III. 6.2 – Cinema e arte contemporânea

Foi com base nas questões levantadas pela Nouvelle Vague que boa parte do cinema se desenvolveu após a Segunda Guerra Mundial, na Europa, particularmente em Itália e França, através de autores tão diversos como Luchino Visconti (1906-1976), Jean-

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O conceito cameo appearance reporta-se a uma pequena aparição num cenário, ou num acontecimento em particular. Hitchcock usou esta “figura” como imagem de marca, mesmo que essas aparições fossem sempre muito curtas, quase imperceptíveis, sem proferir uma única palavra, uma espécie de charada visual para os seus seguidores. Por exemplo, no filme Blackmail (1929), Hitchcock aparece a ler um livro. Em The 39

Steps, 1935, mostra-se a caminhar numa rua. Em Young and Innocent (1937), vemos Hitchcock como um

vulgar cidadão em frente às portas do tribunal, com uma máquina fotográfica na mão.

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Nas décadas de 50 e 60, a revista Cahiers du Cinéma, liderada por jovens cineastas franceses, onde se destaca o papel de Truffaut, olhava para o trabalho de Alfred Hitchcock como sendo da maior importância para o futuro do cinema. Deste modo, Truffaut manteve muitas dúvidas sobre a quase ausência de uma cr´tica favorakvel em relação ao cinema Hitchcock, no contexto do cinema norte-americano. Sabendo da importância da obra de Hitchcock, convida-o para uma entrevista, da qual surgirá o célebre livro Hitchcock-

Truffaut, uma autêntica “bíblia” para os cinéfilos (a primeira edição data de 1967). Em 1983 Truffaut publica

a versão definitiva com a introdução de um último capítulo. Hitchcock descreve em pormenor toda a sua produção, desde do tempo do mudo ao cinema a cores, o entendimento que tinha sobre a produção realizada na Europa e nos Estados Unidos, tecendo assim considerações sobre o estatuto que a 7ª arte detinha em ambos os continentes. Hitchcock descreve a forma como o cinema se estabilizou após o sonoro e a relação com o seu espectador (o espectador cinéfilo), bem como expressa inúmeras opiniões sobre as inovações técnicas e também questões ligadas à representação dos actores (Truffaut, 1975).

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«Quand on regarde attentivement la carrière d´Hitchcock, de ses films muets anglais à ses films en couleurs d´Hollywood, on y découvre la réponse à quelques-unes des questions que tout cineáste doit se poser et dont celle-ci n´est pás la moindre: comment s´exprimer d´une façon purement visuelle?» (Truffaut, 1975:12).

Luc Godard, Roberto Rossellini (1906-1977), Federico Fellini, Alain Resnais, Francesco Rosi (1922), Luís Buñuel, Andrei Tarkovsky (1932-1986), Carlos Saura (1932), Orson Welles (1915-1985) ou François Truffaut, que procuraram o combate ao “horror do vazio”, à “hegemonia da sua vertente comunicacional” e “consequente transformação em mass

media”.

Com a chegada do som, e consequente total autonomização do cinema enquanto

medium, este viria a tornar-se, do ponto de vista dos artistas plásticos, um objecto curioso e

fascinante também pela fortíssima adesão popular decorrente do facto de ser uma arte produzida no contexto das indústrias culturais. Neste sentido, exposições que cruzam o fascínio dos artistas plásticos pelo cinema e vice-versa são muito úteis para se perceber de que forma se exerceu e se exerce a atracção entre ambos os dispositivos, de que forma as obras passam a ser contaminadas pelos diferentes contextos. Curiosamente Hitchcock foi, e continua a ser, um dos cineastas mais revisitado pelo trabalho de inúmeros artistas plásticos que, baseando-se na sua obra têm, sobretudo, vindo a desenvolver e a recriar outras interpretações a partir de variantes e fragmentos dos seus filmes (remontando-os, remisturando-os, ou tirando partido exclusivo de fragmentos sonoros), ou ainda evocando pequenas sequências em particular.

Under Hitchcock,293 comissariada por Sílvia Guerra, foi um desses acontecimentos que procurou abordar justamente o problema da atracção entre a arte contemporânea e o cinema. Desse ponto de vista, a atracção que o cinema tem exercido na arte contemporânea caracteriza-se por uma dupla problemática, por vezes paradoxal: por um lado, as questões que, necessariamente, estão relacionadas com as próprias linguagens do cinema e, por isso, dependentes da sua natureza comunicacional; por outro, o carácter mais intimista próprio da produção da arte contemporânea. A evocação de eventos e de obras que envolvem artistas plásticos cujo trabalho teve como ponto de partida uma relação privilegiada com o universo do cinema e da arte contemporânea tem na figura de Hitchcock um dado importante que se revela e se disponibiliza na força que os seus filmes exercem, quer no contexto do cinema, em particular, quer da imagem em movimento em geral. A sua obra

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A exposição ocorreu na Solar – Galeria de Arte Cinemática em Vila do Conde, em 2007. Interessa também referir outras exposições que trataram este problema da atracção entre a arte contemporânea e o cinema. Desde logo, a exposição Cinema Cinema: Contemporary Art and the Cinematic Experience, comissariado por Eija-Liisa Ahtila, no museu Stedelijk Van em 1999, Time Zone, comissariado por Jessica Morgan, na Tate Modern, em 2003, Moving Pictures: Work in Photography, Film, and Video, no Guggenheim, comissariado por Mathieu Copeland em 2002, ou ainda Groove, comissariado por John G. Hanhardt, no Film and Media Arts em 2004.

tem características especiais, premissas que se impuseram firmemente a partir da introdução do sonoro e que foram decisivas para a “colagem” do cinema ao contexto industrial sem que, ao mesmo tempo, este perdesse o lado autoral. Estas questões com que Hitchcock lidou no contexto da produção da sua obra, nomeadamente as que se ligam às características autorais de uma obra construída no “interior” de um dispositivo directamente associado aos mass media por natureza (o cinema), insuflando-a de inovações formais e expressivas, permitiram-lhe ocupar um lugar diferente no panorama do contexto da produção industrial do Cinema e também da Arte em geral. Para Hitchcock, o realizador devia ser um artista e os filmes obras de arte.294

Fig. (43) Alfred Hitchcock Vertigo, 1958

Embora perfeitamente enquadrada no campo expressivo das artes plásticas, a tendência cinemática nesse campo apresenta algumas nuances e particularidades importantes, pois na maioria dos casos aquilo que está em causa por parte dos artistas, no uso e contaminação do universo do cinema como fonte de inspiração para a produção de alguns dos seus trabalhos, é o desenvolvimento de obras cujo carácter se apresenta muitas vezes num estado de hibridez puro, onde os limites e fronteiras surgem esbatidos. Não foi em vão que evocámos a obra de Hitchcock, pois como veremos ela foi e continua a ser um elo despoletador de obras que cruzam arte e cinema, mantendo o específico ambiente cinematográfico que lhe deu origem.

A forma como o dispositivo do cinema funciona assenta fundamentalmente na atribuição de “identidades” aos espectadores. A própria manipulação dos conteúdos ligados às narrativas tem a função de os estimular na sua curiosidade pela enredo e, neste processo o papel da montagem assume grande parte de responsabilidade, sendo o principal

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Numa entrevista de 1973 (ao programa Tomorrow, da autoria de Tom Snyder), Hitchcock, durante uma hora, vai desvendando alguns dos segredos sobre a feitura dos seus filmes, factos desconhecidos que foram decisivos para a produção dos mesmos. Hitchcock considerou-se, acima de tudo, um artista e nada mais, um autor cujo meio de expressão é o cinema. www.youtube.com/watch?v=ydvU64L758c (2011/02/01; 12).

operador da proeza que mantém o espectador disponível para fingir que também faz parte da história,295 independentemente das conclusões, emoções e sentimentos que mantenha em relação à narrativa. Na vídeo-instalação o problema coloca-se de uma forma completamente distinta: o espectador não releva a existência do dispositivo, no sentido em que este é apenas o detonador de uma experiência que, em última análise, é fruto de uma acção individual e da forma como cada um deve tirar partido, redireccionando-o para diferentes situações. Este dispositivo específico necessita e tenta tirar partido das capacidades interpretativas e sensoriais do espectador mas não o pode manter paralisado como faz o cinema.

O artista Pierre Huyghe tem trabalhado especialmente esta aproximação ao dispositivo por parte do espectador, no contexto das relações estabelecidas entre o cinema e as artes plásticas. Huyghe usa remakes de filmes clássicos, apelando directamente às memórias afectivas dos espectadores, evocando o contexto original de determinados filmes reconhecidos por eles e neles suscitando a vivência/recordação de determinados momentos. Este artista parece, assim, fugir a uma problemática que diga apenas respeito ao cinema ou à vídeo-instalação. Antes, evoca uma relação de proximidade entre o dispositivo e o espectador por via de imagens oriundas do cinema embora apresentadas num contexto da vídeo-instalação. Mudança que provoca uma alteração radical de tempo e espaço296 que se irá reflectir na forma como percepcionamos as imagens. Uma das obras mais significativas deste artista é Remake (1994-95), um exercício de recontextualização de uma parte do filme Rear Window (A Janela Indiscreta, 1954), de Hitchcock. A instalação apresenta duas imagens projectadas em justaposição numa parede branca: na projecção superior podemos ver um fragmento do filme original; na projecção inferior é mostrada uma recriação do mesmo filme por dois actores amadores que substituem James Stewart e Grace Kelly e simulam as poses e acções das personagens.

Este dispositivo torna simultâneas as imagens recriadas e os planos originais. Ambas as imagens estão, por sua vez, inseridas num cubo branco sem bancos ou cadeiras. Os espectadores reconhecem a cena original e percebem que a imagem encenada não é feita de forma sistemática, dado que são visíveis muitas diferenças na projecção. Os

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Christian Metz (1971) defende a importância da montagem enquanto processo de colagem de fragmentos que pode assegurar sentido e lógica discursiva ao próprio cinema. Este processo, segundo o autor, tem a função, ou o desígnio, de “disfarçar-se” de história, porque, justamente, não implica uma ruptura na continuidade dos planos, elidindo aquilo que os separa.

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Acerca deste tema, é importante referir também o trabalho Silent Movie (1995), a segunda vídeo-instalação de Chris Marker, que se seguiu à monumental Zapping Zone (1991), do mesmo autor.

actores tentam corrigir as falas, esforçando-se por dizê-las de acordo com o original, o que provoca um efeito de aproximação dos actores aos espectadores (revendo-se no trabalho de recriação presente), ficando como que todos num mesmo plano e, neste processo, os espectadores são introduzidos na realidade do próprio dispositivo. Remake pretende, portanto, reflectir sobre os artifícios próprios da vídeo-instalação na relação que esta mantém com o espectador, independentemente dos enredos, ao mesmo tempo que denuncia a exclusão que está subjacente à imagem do cinema, tipicamente ilusória.

Fig. (44) Pierre Hughye Remake, 1994-95

Outro caso é o do artista Laurent Fiévet, através da obra Portrait a l’Hélice (2007), que visa uma relação directa da pintura com o cinema de Hitchcock.

Fig.(45) Laurent Fiévet Portrait a l’Hélice, 2007

A partir da visualização, num ecrã suspenso, do rosto da personagem interpretada pela actriz Eve Kendall, no filme North by Nortwest (1959), surge por trás, de vez em quando, a pintura de Turner intitulada The shipwreck of the Minotaur (1850). Quando o espectador se posiciona em frente ao ecrã presente na vídeo-instalação activa um par de ventoinhas, gerando uma forte impressão de vento que o remete imediatamente para o interior da tempestade representada na pintura de Turner. A forma como Eve Kendall vira a cabeça e desloca o olhar, em slow motion, com o som a pontuar esse momento, produz uma enorme tensão que se acentua/constrói através do movimento da cabeça e do olhar da personagem com as diferentes partes da pintura de Turner. Fiévet reconstrói mais uma vez

a tensão em Hitchcock, não deixando o espectador entrar nesse jogo, mantendo-o apenas expectante.

Por sua vez, Matthias Müller e Christoph Girardet nos trabalhos Phoenix Tapes #2

Burden of Proof e Phoenix Tapes #3 Derailed, datados de 1999, procuram “colar/juntar”

um conjunto interminável de “estratégias” que fazem parte da linguagem cinematográfica de Hitchcock. No fundo, procuram evidenciar um conjunto de acções que o realizador utilizava para realizar a sua obra. Por exemplo, em Phoenix Tapes #2 Burden of Proof, uma sequência de imagens (a cores), a partir da utilização de grandes planos e de pormenores, em particular “obriga” o espectador a deslocar o olhar. Em Phoenix Tapes #3

Derailed, uma sequência de imagens a preto e branco, foi realizada a partir da associação

de todos os planos efectuados em movimento, tendo como pano de fundo a construção de um ritmo alternativo baseado numa viagem de comboio, construída a partir de fragmentos de filmes de Hitchcock. Müller e Girardet procuram, sobretudo, produzir um trabalho inovador a partir da “remasterização” dos diversos elementos visuais e sonoros, que são parte emblemática da gramática do autor, transformando, dessa forma, os seus trabalhos numa imensa homenagem à obra de Hitchcock.

De realçar também a importância de dois outros trabalhos, da autoria de Johan Grimonprez e Douglas Gordon.

Fig.(46) Johan Grimonprez Looking for Alfred, 2009 Fig. (47) Matthias Müller e Christoph Girardet

Phoenix Tapes # 2 Burden of Proof, 1999

Em Looking for Alfred (2009), Grimonprez imaginou uma estonteante perseguição de duplos de Hitchcock, filmados no interior do Palais des Beaux-Arts de Bruxelas. Através da combinação de imagens (stills e fotografias), recriou um ambiente de tensão, provocado pelo desencontro dos vários sósias de Hitchcock, parodiando o efeito cameo

appearance.

Douglas Gordon na obra 24 Hour Psycho (1993) desacelera o filme (Psycho, 1960) para uma duração total de 24 horas, tornando quase impossível o seu visionamento

integral. O processo, na sua globalidade, ao basear-se no emprego do slow motion, devolve ao espectador, de vez em quando, a experienciação de determinados elementos narrativos capazes de assegurarem ligações emocionais ao filme (reconhecimento/identificação), onde o suspense e a tensão original deixam de ter sentido. Por outro, este trabalho tem ainda outra particularidade, pois a proximidade do espectador à obra instalada coloca-o dentro da cena, nomeadamente com a sua silhueta projectada na tela citando, dessa forma, o trabalho Zen for Tv de Nan June Paik (1964), cuja propósito era semelhante.

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