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Parte I – Imagem e Percepção

I. 1.2 – O “palco” retiniano em Fra Angélico

Quando comparamos os mecanismos físico-químicos presentes na produção de uma imagem fotográfica e cinematográfica com o que se passa no ambiente fisiológico da retina, não excluímos, à partida, uma enorme variedade de procedimentos operativos semelhantes empreendidos em outros media, “ditos” mais tradicionais, como é o caso de algumas pinturas em que, nomeadamente, se simula por analogia o processo químico que

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A importância deste ambiente retiniano que, na estreita colaboração entre os cones e os bastonetes, estabelece os parâmetros de um pico relativo a uma curva que baliza a luminosidade, desenhando um arco que, se fosse diferente, seria em parte responsável por um outro mundo visual. Os limites da acuidade visual dependem da sensibilidade aos comprimentos de onda, onde está presente a intensidade luminosa de um estímulo face ao tempo de exposição na retina.

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A parte química da película fotográfica, por exemplo, simula o “ambiente retiniano”.

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A retina funciona como uma espécie de tela (com cerca de 0,5mm de espessura) constituída por células nervosas e assemelha-se a uma calote esférica (com um diâmetro de 25mm), onde as imagens se projectam de forma plana, independentemente da intensidade da fonte de luz.

se desenrola na retina.

Na pintura de Fra Angélico, São Nicolau de Bari, verificamos que o pintor tirou pleno partido da forma como apreendemos a realidade. O painel alude à vida de São Nicolau de Bari e foi realizado em 1437. Neste painel estão representados dois dos vários milagres atribuídos a São Nicolau – o primeiro diz respeito a um saco de cereais que o santo miraculosamente multiplicou, salvando desta forma os habitantes da cidade de Mira de morrerem de fome; o segundo reporta-se a um milagre acontecido no mar, de salvamento de marinheiros. Inicialmente, a pintura desenvolveu-se em três painéis com aproximadamente 34x60 cm cada, “desenhados” para serem encastrados na frente de uma

predella da Capela Dominicana de São Nicolau em Perugia34 O cais aparece em primeiro plano e atravessa toda a pintura, sendo possível identificar a agitação quotidiana que aí se vivia. O próprio São Nicolau aparece aqui pela primeira vez, abençoando a “cena”. Em segundo plano, o mar, desenhado em forma de baía, em tons verde-escuros e castanhos esverdeados, apresenta alguma agitação. Três embarcações surgem ancoradas ao fundo. No recorte da baía aparece uma elevação em tons rosa com uma fortaleza no seu cimo. Por cima desta elevação, e pela segunda vez, o santo aparece representado entre as nuvens com uma auréola à sua volta, olhando para o interior de um dos navios em que se vêem marinheiros em pose de oração. A “magia” reside na forma notável como Fra Angélico aplica a luz na própria pintura:35 começa por colocar a fonte de luz no lado esquerdo, perfazendo um arco de luminosidade, da esquerda para a direita, que anda muito próximo do verde azulado e do verde amarelado, dando-nos uma mudança de uma zona clara para uma escura em que percebemos melhor as cores, sem provocar um deslocamento da visão e consequente fadiga visual. Deste modo, as cores usadas pelo pintor são, grosso modo, muito esbatidas, com relevo para o esverdeado e para um céu timidamente iluminado, ponteado com pequenos traços de cor (Vasari, 2002).

Por outro lado, as figuras que aparecem em primeiro plano estão iluminadas, também da esquerda para a direita, sendo que a luz aqui parece ser “projectada” por trás da pintura. Como se Fra Angélico percebesse, sem recurso aos sistemas em que a luz fica

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Durante o século XIX, este altar-mor foi destruído. Actualmente, o painel encontra-se no Museu do Vaticano em Roma, e partes do altar, incluindo algumas pinturas, encontram-se no museu de Perugia. Os três painéis principais do retábulo representavam uma Madonna e o Menino acompanhados de quatro santos em poses estáticas, pintados sobre um fundo dourado.

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Todos os elementos visuais da cena parecem flutuar num ambiente atmosférico tridimensional. Na própria estrutura da pintura, podemos constatar que não existe uma perspectiva dominante. Basta analisar as proas das embarcações para imediatamente nos apercebermos que os ângulos de captação são diferentes (Marie e Hagen, 2003).

subjugada às leis da perspectiva, como construir uma imagem em que o espectador fosse responsável, em parte, pela “recepção”, em termos luminosos da cena representada e, simultaneamente, pela opção da distribuição da luz sobre ela. Esta distribuição espacial da luz foi concebida pelo autor aproximando-se do conhecimento actual de como a “retina” se comporta na percepção espacial dos limites e fronteiras formais dos objectos. Por isso, a própria instalação do painel é também importante: na penumbra e sem luz directa.36

Fig.(1) Fra Angélico O Milagre do Cereal, 1437

A noção de escala da pintura é-nos dada, não através de um sistema perspéctico baseado num único ponto de vista, mas num fino recorte de contornos que obedecem ao movimento que o nosso cérebro desenha ao perscrutar a pintura.37 Do mesmo modo, os volumes são sugeridos por justaposições entre o claro e o escuro. A própria sequência narrativa é tão desconcertante como a realidade. A imagem é para ser vista a partir de uma coreografia que convoca factores fisiológicos primários e secundários, essenciais para se poder analisá-la à luz dos problemas anteriormente tratados, apostando claramente no ambiente retiniano e suas especificidades.38 Ou seja, a pintura parece ter sido feita a pensar

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M. Salmi, num texto intitulado Il Beato Angelico, tenta desvendar a forma como o pintor trabalhou esta questão da iluminação e como tirou partido dela «(…) la belleza della luce che diviene nella filosofia luce spirituale non esclude tuttavia per quella piena concordia fra il conteruito e la forma osservatta nell´Angelico, tra la vita intenerata e l´arte immacollata, che artista fosse forte di una preparazione di ordine tecnico, diciamo meglio, scientifico nella disposizione della luce che contrasti si effonde nell´ambiente o che senbra promante dalle figure.». De forma diferente da luz “introduzida” na pintura, por exemplo por Masaccio, de cariz racionalista, de forte efeito plástico, onde escala e volumetria são agora sublinhados através do claro- escuro de grande contraste, de grande efeito dramático e que iria perdurar durante todo o Quattrocento (1970). Neste sentido, em Fra Angélico a mobilidade do espectador surge em função de um ritual.

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A designada perspectiva em forma de espinha, que prevê que tudo parte de um eixo central de fuga ao qual estão “ancoradas” várias perspectivas.

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O nosso sistema visual está equipado para reagir às mudanças de luz. A luminosidade que é reflectida a partir de uma superfície, por exemplo, de uma pintura, é inteiramente determinada na sua relação particular com o ambiente luminoso geral. Os pigmentos e suas especificidades químicas e físicas conferem à superfície campos de luz e de cor específicos. E é na diferenciação da forma e do fundo que tudo se determina.

na mobilidade do espectador,39 no sentido em que é percepcionada através de uma “montagem” puramente mental, apoiada numa dinâmica fomentada na sua aproximação, diferente das imagens visuais “obtidas” com recurso à perspectiva central, onde tudo passou a ser construído sob a tutela do ponto de vista fixo, no qual o espectador passa a estar sujeito às leis do processamento da visão enquadradas pela perspectiva e que, de certa forma, se mantiveram na fotografia e no cinema. Neste caso, em particular, a imagem parece funcionar como uma espécie de “teia” unificadora capaz de tudo enquadrar, controlada e apoiada pelo espectador. Fra Angélico construiu este painel desenvolvendo uma rede de numerosos índices luminosos, onde os limites espaciais das figuras e dos objectos têm a função de separar as superfícies coloridas complanares.40

Será por isso interessante estudar o trabalho desenvolvido pelos artistas plásticos no início da década de 60 do séc. XX, quando começaram a usar a imagem em movimento e, em particular, a trabalhar os denominados filmes-instalações e as vídeo-instalações, que

parecem ter apostado na construção de um “espaço” cuja lógica de

intervenção/participação do espectador, de certa forma, induz uma total mobilidade face ao representado, tirando ao mesmo tempo partido absoluto das condições fisiológicas inerentes ao ambiente retiniano.

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