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III.5.2 – A música visual de Oskar Fischinger e René Schwob

III. 7.1 – Pasolini e Farock

Pier Paolo Pasolini é outro autor do campo do cinema cuja obra tem sido objecto de interesse por parte de inúmeros cineastas e artistas plásticos.

Pasolini distinguia duas imagens que se complementavam no ecrã do cinema (que só lá podiam existir) e que, por isso, eram próprias (constitutivas) do cinema. Designava-as respectivamente “imagem cinematográfica poética” e “imagem cinematográfica de prosa”. Através desta distinção, o autor procurou, por um lado, defender a imanente natureza metafórica da imagem cinematográfica poética – uma imagem cuja força residia na procura, exploração e evocação do inconsciente, do que não é racional, onde o mito está presente, por oposição a um cinema do primado da visão. No seu entender, em detrimento dos seus “conteúdos”, estaríamos pois em presença de uma imagem cinematográfica de prosa. Pasolini apostava, desta forma, na sensibilidade do espectador, no sentido em que era ele era o fiel depositário, considerando-o, desse modo, responsável pela organização final das sequências das imagens (Troncy, 1997). No fundo, tal como já o tinham feito Bresson ou Godard.298 Estas duas expressões (cinema de prosa e de poesia) foram usadas por analogia com o discurso verbal no cinema. No cinema de poesia, Pasolini confronta- nos com a presença da câmara. Ela (com a sua notória presença) impõe-se como o factor

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Nomeadamente nos trabalhos Les Dames du Bois de Boulogne (1945) e Deux ou Trois Choses que je sais

determinante na condução de toda a obra. As imagens são trabalhadas como num espaço de representação paralelo à realidade quotidiana, aparecem e desaparecem, dissolvem-se, pois o tempo e o espaço que as marca é flexível, expansivo, relegando para segundo plano qualquer tautologia com o real. No cinema de prosa, é a escuridão que prevalece, tornando a imagem que ocupa o ecrã o factor que assume maior importância e, portanto, o campo de visão do espectador. O equilíbrio entre estes dois princípios constitui-se como o verdadeiro mecanismo de impulsão de toda a sua obra.

Tomemos por exemplo o polémico filme299 Il Vangelo Secondo Matteo (1964), onde Pasolini representa Cristo de forma invulgar. Cristo é apresentado numa dimensão hiper-humanizada, procurando, desse modo, fornecer-nos uma imagem realista. Contudo, não deixa de, ao mesmo tempo, ser capaz de estabelecer uma ponte entre o real e o sagrado. O ecrã, neste caso, é elevado à condição de metáfora dessa ponte, como refere Luciano de Giusti (1990). O filme, concebido a partir de diversos enquadramentos inspirados directamente na pintura de Masaccio, nomeadamente nos frescos da Capela Brancacci (1424), com planos muito estilizados e fortemente marcados/contrastados entre o claro e o escuro, produzem uma imagem que se confunde, ou se comporta, como (se fosse) uma pintura, como que a querer tomar o lugar “natural” das imagens em movimento.

O espectador300 é desta forma atraído por uma imagem de cariz poético, no qual cada uma se assume como quadro em permanência, alternando-a com uma dimensão narrativa, onde agora a prosa, ou seja, a palavra e o texto têm lugar. Esta parece ser a grande invenção do cinema de Pasolini, ser capaz de assinalar ao espectador a existência de dois lugares distintos do lugar que a imagem deve ocupar: um que apela à realidade, à vivência e à identificação com a própria “narrativa” da vida real, onde a mensagem, de teor fortemente politizado, toma lugar; e outro, que aponta para o afastamento da realidade e promove a fantasia,301 a metáfora e o mito (Greene, 1992).

Esta dualidade entre o cinema de prosa e de poesia, pensada por Pasolini, foi e

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Apesar de polémico, este seu trabalho recebeu um prémio atribuído pelo Ofício Católico Internacional do Cinema (OCIC).

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A designada Trilogia da Vida, Decameron (1971), Il Raconti di Canterbury (1972) e Il Fiore Delle Mille

e Una Notte (1974), foram trabalhos que obtiveram grande adesão popular, o que lhe valeu o epíteto de

realizador do povo.

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Que sustenta ainda outra situação: a porosidade entre o real/ficção que é decorrente das capacidades técnicas colocadas à disposição, primeiro do realizador e depois dos espectadores. O que se vê no ecrã e aquilo que se projecta na mente do espectador é qualquer coisa que Pasolini queria que se confundisse ou que se fundisse num mesmo dilema – a identificação entre filme e espectador, configurando-se ambos como “ecrãs dinâmicos”.

continua a ser um factor de atracção presente na obra de muitos artistas plásticos e cineastas. Tomemos por exemplo o trabalho de Harun Farocki.

Fig. (49) Pier Paolo Pasolini Il Vangelo Secondo Matteo, 1964

Harun Farocki (1944) tem vindo a desenvolver o seu trabalho em torno da possibilidade da existência de um cinema contra o cinema. Isto é, Farocki tenta dificultar a classificação dos seus trabalhos, dispersando-os por entre as categorias do cinema, do documentário, do vídeo, da vídeo-instalação, demonstrando plena consciência das possibilidades e limites do medium utilizado. A força do seu trabalho centra-se numa problematização radical das questões e dificuldades que Pasolini (e Bergman) identificavam na produção de uma certa imagem cinematográfica, aquela que resultava numa montagem eficaz, simples e transparente, e, por isso, de grande efeito visual, mas simultaneamente provocadora da paralisia do espectador: um espectador paralisado que vê em silêncio. Neste contexto, o trabalho de Farocki apresenta-se fortemente “climatizado” pelo trabalho de Pasolini, onde o texto (a palavra), e a forte presença política, produzem imagens mescladas, remisturadas, que se “escondem” numa aparente naturalidade. A este respeito, Thomas Elaessen escreveu o seguinte: «O facto de Farocki ser tanto escritor como realizador de filmes é, por isso, tanto um sinal dos tempos com uma vocação. Tendo decidido, desde muito cedo, ser, no espírito de Arthur Rimbaud e Charles Baudelaire, “resolutamente moderno”, Farocki apoderou-se ele próprio do medium mais resolutamente contemporâneo».302

As You See (1986) desenvolve-se em torno do termo alemão Aufklärung

(esclarecimento), traduzindo-se num enredo de múltiplas narrativas que conduzem a Auschwitz. Já no “filme” Images of the World and the Inscription of War, de 1988, o realizador desenvolve um trabalho que cruza, de forma complexa, muito difícil de sr acompanhado, em termos narrativos, o texto, a palavra e a imagem a partir de uma forte

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«The fact that Farocki is both a writer and a filmmaker is therefore as much a sign of the times as a choice of vocation. Having early on decided to be, in the spirit of Arthur Rimbaud and Charles Baudelaire, “resolutely modern”, Farocki availed himself of the most resolutely contemporaray medium» (2004:11).

crítica social dirigida a uma instituição científica afecta ao Ministério do Mar Alemão. Em

Between Two Wars (1988), provavelmente o seu trabalho mais intrincado, debate-se sobre

aquilo que terá “acontecido” no período que se interpôs entre as duas grandes guerras. Obra paradigmática da arte de Farocki que se pode resumir como um conjunto de “ensaios” que nos vão mostrando aquilo que é considerado não visualizável: o pensamento em torno de temas abstractos: a solidão, o desenraizamento urbano, a angústia da incerteza do presente ou a iminência da morte.

Fig.(50) Harun Farocki Between Two Wars, 1988

Em Farocki, tal como em Pasolini, a imagem cinematográfica é marcada por inúmeras associações que são produzidas pelas múltiplas narrativas presentes nos filmes, possibilidades de interconexão e constantes ecos e reenvios visuais que se processam de imagem em imagem, permitindo aos espectadores contemplações reflexivas. Na hibridez do trabalho de Farocki, a palavra sobrepõe-se à imagem, formando um tema, uma textura, um ecrã, um grão. É através dela que a imagem é percepcionada. A velocidade com que circulam as palavras cria um ritmo que difere do que é imposto pela imagem. Desta dissonância resulta uma espécie de abismo perceptivo: qual é o verdadeiro lugar das imagens? E que gestos e expressões sublinham de facto os discursos visuais? Associam-se, inicialmente, os factos alusivos à figura do artista e das suas indagações em detrimento do espectador, mas não deixando de sublinhar o sentido geral da vida. A imagem, em Farocki, é assim transformada em palavras e a “música” em corpos. As suas imagens latejam, saem para fora do ecrã, movimentando-se no espaço em profundidade.303

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De realçar a obra Les Incivils (1995) da autoria de Pierre Huyghe, onde retoma o lendário filme de Pier Paolo Pasolini Uccellacci e Uccellini (1966). O filme centra-se na relação entre pai e filho (Totó e Ninetto Davoli) que percorrem, de uma ponta a outra, toda a Itália até se fixarem numa grande cidade industrial (Milão), acompanhados por um corvo falante. Os três vão dissertando argumentos de natureza política. Pierre Huyghe recria determinadas passagens do filme original de Pasolini, filmando nos mesmos locais, 30 anos depois, na companhia do actor original Ninetto Davoli. O trabalho de Pasolini tem sido, por este motivo, uma referência e uma influência decisiva para inúmeros artistas plásticos que procuram dar ênfase à dualidade poética das imagens.

IV. – Da imagem em movimento à revolução vídeo

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