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2 – Sob influência do enquadramento e do campo

Parte II – Do Visível ao Visual

II. 2 – Sob influência do enquadramento e do campo

A noção de quadro (a delimitação da superfície material da imagem, um espaço plano bidimensional), a partir do Renascimento, materializa-se a partir do dispositivo da pirâmide visual. O sistema albertiano, como vimos, parte de um olho que “perscruta” o espaço em todas as direcções. A noção de quadro representa, pois, uma janela que se abre ao mundo construída em frente do espectador, dando a ver o espaço imaginário da pintura, e que continuou com a fotografia ou o filme. Tratando-se, desse modo, de uma escolha simbólica, que é efectuada a partir de um corte do visível pelo olhar.

Com o aparecimento da máquina fotográfica e da moldura da imagem que ela produz, em particular, inequivocamente um produto albertiano, deve salientar-se a seguinte particularidade: dada a sua natureza técnica, a máquina fotográfica apresenta uma enorme mobilidade, e apesar de ter tornado presente a ideia de uma identificação da moldura da imagem com a pirâmide visual, como refere Villain (2001), essa identificação manifesta-se na forma de uma pirâmide visual em movimento. Facto que, na realidade, já estava presente na pintura pós-renascentista, onde em potência podemos observar inúmeras tentativas, por parte dos pintores, de produzir uma “mobilidade” próxima da moldura da imagem fotográfica, nomeadamente no que diz respeito à liberdade que ela possibilita no corte do visível efectuado de forma espontânea pelo olhar.

Mas foi no cinema, e através da sua imagem, que essa mobilidade adquiriu um significado mais explícito, definindo-se essencialmente como um processo que enquadra permanentemente em movimento. Se na pintura (e na fotografia, de forma ligeiramente diferente) se chega a uma imagem que é fruto de um campo observável, responsável pelas posições singulares do quadro em relação à cena representada (entendendo-se o quadro como o limite desse campo), o cinema institui o seu campo observável como sendo o resultado de um enquadramento puramente móvel. Definitivamente entendido como uma actividade imaginária da pirâmide visual em movimento que, no caso em questão, resulta da instauração de uma particular relação entre a posição da câmara e a do “objecto”. Deste modo, o campo na imagem do cinema só pode ser entendido como aquilo que é resultado de uma “zona de contacto imaginária” entre o que a câmara filma e o objecto filmado. Assim, no cinema, enquadrar é, acima de tudo, um acto de delinear e de construir um espaço visual, transformando-o num espaço de representação que, como refere Gilles Deleuze (2004) corresponde à determinação de um sistema que assimila tudo o que está presente na imagem. É através deste processo que se determina o equilíbrio e a

organização plástica dos elementos visuais (fixos ou em movimento), que exclui ou inclui, formando, no todo, um campo particular, onde não deixa de estar presente o resultado de um enquadramento.

O termo campo designa pois a parcela do espaço contido no quadro, quer na sua dimensão material, a duas dimensões, quer na sua dimensão figurativa, a três dimensões e em profundidade. Neste ponto é necessário um esclarecimento adicional que se prende com a natureza do enquadramento móvel presente no cinema. É na analogia da sua imagem com o espaço real que está presente o “forte” efeito de realidade.135 A realidade do seu campo entendida como um espaço profundo, imbricado com o espaço visível (a ideia de que a imagem cinematográfica reproduz o movimento real), não tem, por isso, uma “moldura” fixa” (não se detém nas margens do quadro), antes prolongando-se para além dele, na forma de um fora-de-campo.

André Bazin, no texto «Peinture et Cinéma», reclama para a imagem cinematográfica a metáfora albertiana da moldura entendida como “uma janela aberta para o mundo”. Tal como acontece na perspectiva linear, o quadro ao impor um centro e limites, inevitavelmente “obriga” a construção do seu campo a partir de um olhar. Sendo assim, o quadro é, antes de mais, o limite de um campo, sentido que o cinema iria conferir em definitivo ao termo.136

No entanto, Bazin acrescenta que a influência do enquadramento no campo é sempre uma operação que resulta da unificação entre o dispositivo e a sua imagem e o espectador,137 constatação que encontra no cinema a particularidade do seu enquadramento.138 Com a noção de movimento de câmara vai-se relacionar, de forma particular, a imagem, o espectador e o dispositivo. Deste modo, o enquadramento móvel do cinema aproxima-se do espectador.

Desde logo, Bazin estabelece uma diferença-chave que se prende com a questão da

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Christian Metz (1971) refere que o cinema, através da produção mecânica do movimento da imagem, tornou quase indistinto, a nível perceptivo, o movimento real da vida quotidiana, reforçando (por via da sua génese maquínica) desse modo a impressão de realidade das suas imagens.

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O quadro centraliza a representação, enfatizando uma dimensão de espaço-tempo onde se concentra o imaginário que domina a cena representada – o cinema “expande” significativamente os limites desse campo.

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Dominique Villain (2001) caracteriza o enquadramento do cinema, à partida, como um olho imaginário (seja de um pintor ou de uma câmara) face a um conjunto de objectos que definem uma cena.

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Assim, o termo enquadramento que na pintura, por exemplo, em termos genéricos, se caracteriza por posições particulares do quadro em relação à cena representada, no cinema vem adquirir uma variedade de expressões devido à questão particular da sua mobilidade – enquadramento picado ou contrapicado, frontal, etc. O enquadramento pode-se resumir a uma actividade, na qual se estabelece uma relação particular entre olho e cena, delineando assim o mundo visual.

temporalidade. O cinema, por via da montagem, constrói (emprega) a sua imagem a partir de uma unidade temporal que o autor designa por horizontal, tempo dado, construído. No quadro, essa unidade apresenta-se em profundidade, tempo a construir. Deste modo, a moldura do quadro serve, acima de tudo, para evocar os limites da própria pintura e da realidade, “polarizando” o espaço representável para dentro dos limites do “quadro” (imagem centrípeta), da sua moldura. Ao contrário, os limites do ecrã da imagem cinematográfica não se constituem na moldura da imagem, onde só é possível ver parte da realidade.139 A imagem do cinema parece, desta forma, esconder-se na moldura, no “frame” do quadro e, dessa forma, prolongar-se para fora (imagem centrífuga). Assim, Bazin define a noção de quadro (moldura) no cinema, acima de tudo, como um processo que o delimita, pois esconde o que não vemos, tornando o seu campo expandido, caracterizando-se, dessa forma, a noção do fora-de-campo no cinema.

Em última análise, o enquadramento na imagem do cinema é pois centrar e descentrar estabelecendo, desta forma, uma relação particular entre o olho (olho da câmara, do espectador, do realizador) e as cenas, questão que remete o enquadramento para uma área diferente da composição.140 No cinema a noção de ponto de vista do enquadramento adquire (para a qual Jacques Aumont (2001) chama a atenção), pois, acresce um grau de complexidade – a “quem” se deve atribuir o “olhar”, ao realizador (?), ao espectador (?), à objectiva da câmara (?). A ele subjaz a subjectividade que traduz, na prática, um juízo sobre o que é representado, valorizando-se ou desvalorizando-se em função da atenção em particular de um pormenor.

Apesar de a noção de campo, de enquadramento e de ponto de vista, tal como os abordamos, se adequarem às imagens fixas e às imagens em movimento, essencialmente a partir do séc. XVII, tendo como base os estudos sobre o movimento na natureza de que falaremos a seguir, é notória também, a partir dessa época, a obtenção de uma relação muito mais explícita entre campo e enquadramento, nomeadamente ao relacioná-los como parte/fragmento/parcela de um espaço representado, em cujos limites está também

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A moldura do quadro é o que limita a imagem, o que a contém, não deixando a imagem transbordar. É graças aos “limites” da imagem que o espaço parece transformar-se de forma incessante, face às modificações internas ao campo, como se, de certo modo, esses limites se tornassem operadores activos de uma transformação que está em contínuo progresso na própria imagem.

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A noção de enquadramento é distinta da noção de composição em pintura. Na pintura, a composição “deve” reger-se segundo um certo equilíbrio que se deve estabelecer dentro do próprio quadro, onde os elementos visuais se contrapõem uns aos outros. Ora, no cinema o espectador é constantemente solicitado por um mundo de coisas fora do enquadramento e o que é apresentado através da sua janela/ecrã só encontra o seu equilíbrio no total do “filme” – daquilo que é representado e também do que não está representado.

implicada a mobilidade do olhar, da qual a imagem do cinema é representativa.

É, precisamente, neste ponto que parte do dispositivo afecto à vídeo-instalação se diferencia tanto da pintura como do cinema. No trabalho de Joan Jonas Mirage (1978), a artista vai desenhando um círculo com as mãos sob a projecção de uma imagem em movimento, como se quisesse delimitar com as próprias mãos aquilo que é o espaço limite do quadro, tornando esse momento o que deve ser visto como pertencente à imagem. E, nesse sentido, o campo (como resultado de um enquadramento), que Jonas questiona em particular, abrange o que é captado pela objectiva da câmara e também o que não é. Se pensarmos exclusivamente, no cinema, a noção de campo abrange o que se passa dentro e fora do ecrã, mas decididamente essa noção não pode ser dissociada da “sua forte impressão de realidade”.

Fig. (13) Joan Jonas Mirage, 1976-78

A vídeo-instalação faz explodir a noção de quadro e de ecrã presente na pintura e no cinema, pois embora na génese da sua construção esteja presente, genericamente, um ecrã com uma imagem em movimento, ela acrescenta, neste caso, variações no ponto de vista e na escala que permitem ao espectador jogar com a proximidade e afastamento face ao que está a ver. A vídeo-instalação, ao contrário do que acontece no cinema, por exemplo, procura um espectador identificado com o efeito produzido pela estrutura global que encerra o seu dispositivo: imagem, espaço e corpo produzem um dispositivo variável e não regular, onde obtemos sempre resultados diferentes como consequência do facto da mobilidade da percepção. Este dado faz toda a diferença quando se trata de comparar o que acontece com a imagem em movimento no contexto do cinema, onde não há deslocação e o espectador imobilizado tem que desenvolver processos de dramatização face ao que está a ver com o corpo paralisado no interior de uma sala escura. Christian Metz (1971) atribui um significado especial ao espectador de cinema que faz com que o mesmo se transforme num sonhador, a partir de um corpo “imobilizado”. Por sua vez, o espectador da vídeo-

instalação, é induzido a agir e a estabelecer uma parceria com a acção da imagem. Por vezes, não sonha nem se deixa hipnotizar: a sua movimentação impede-o de se concentrar de forma a partilhar um imaginário colectivo, algo presente nos espectadores de cinema.

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