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Parte I – Imagem e Percepção

I. 3.1 – Os “discos coloridos” de Newton

Foi tendo como pano de fundo questões essencialmente de ordem religiosa que a luz e a sua percepção iriam ser palco de um diferendo envolvendo duas figuras maiores da ciência europeia, Descartes58 e Newton.59

Na Inglaterra protestante, Newton, empenhado em perceber o fenómeno perceptivo da luz, produziu um trabalho paralelo ao de Descartes, cujo ânimo e ambição se desenvolveu em torno da defesa da fé. Deus era a própria luz.

Em finais do séc. XVII, eram as concepções mecanicistas de Descartes que dominavam o pensamento científico e concebiam o universo como se fosse uma máquina

una, cuja mecânica e suas leis seriam capazes de explicar a sua vasta dimensão

fenomenológica. O éter, uma substância que Descartes designava por “subtil matéria”60

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Alhazen descreveu, em pormenor, o funcionamento do olho humano, e constatou de que era a incidência da luz que estava na origem das tonalidades e das cores dos objectos. Interessando-se igualmente pela função conjunta dos dois olhos, observou e estudou o fenómeno designado por visão binocular (Ronchi, 1996).

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É com o trabalho de René Descartes (1596-1650) que se tem a primeira Teoria Física da Luz, enquadrada num amplo sistema global e desenvolvida na sua teoria geral da natureza. O Discurso do Método, que tinha em anexo A Dióptrica, Metheoros e Geometria, foi publicado em Leyden, em 1637. A sua grande obra sobre a luz, Le Monde, ou Le Traité de la Lumière só foi publicada após a sua morte, em 1663.

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Isaac Newton em 1704 editou Opticks or a TREATISE of the Reflections, Refractions, Inflexions and

Colours of LIGHT, texto que põe em causa a teoria da luz de Descartes. 60

O conceito de éter (matéria subtil), defendido por Descartes, pretendia explicar as relações de causa e efeito entre os fenómenos, justamente, acreditando que teria de haver um meio eficaz (o éter) que permitisse o contacto entre toda a ocorrência do foro fenomenológico. Esta ideia de que tem que existir qualquer coisa de permeio entre todos os factos, está, aliás, na base da transferência que, por exemplo, São Tomás de

(1637), seria o “motor” dessa máquina, presente em todos os lugares, capaz de agir sobre tudo. Os seus “movimentos” seriam responsáveis pelo “acoplamento mecânico” de todos os corpos do Universo. De qualquer lugar do Universo, o éter, em constante vibração e movimento, actuava, emitindo luz e cor. A luz61 e a cor, para Descartes, ocorriam, justamente a partir da pressão que o éter exercia sobre o nervo óptico. No caso da cor, esta estava dependente do movimento de cada partícula luminosa em particular, cujo espectro cromático, decorrente dos diferentes movimentos das partículas, se definia através de um

degradé cromático que ia do azul e verde (movimentos rápidos), ao laranja e vermelho

(movimentos lentos). Descartes designou a luz e a cor como qualidades próprias da visão. Newton, por seu lado, não concebia o universo como se fosse uma máquina una e, ao contrário de Descartes, não acreditava nas “qualidades mecânicas do éter”, em particular, no que diz respeito aos problemas da luz e da cor. Dedicou, por isso, parte da sua vida à observação do sol e das suas particularidades. A partir da observação directa do sol, viria a realizar um conjunto de importantes experiências. Entre períodos de exposição do olho ao sol e de escuridão absoluta, Newton tentava, entre outras coisas, visualizar a própria imagem do sol.62 A experiência mais radical consistiu em colocar uma agulha de madeira entre o globo ocular e o osso craniano, empurrando-a de seguida, na tentativa de perceber o que se vê por cima do nosso ponto de focagem. Verificou que, claramente, vemos círculos coloridos cujas cores seguem a ordem do arco-íris, com base no que decidiu realizar uma experiência física – produzir um arco-íris, com o firme objectivo de “desmontar” a composição interna da luz e da cor.63 Constatou que as cores do arco-íris

Aquino estabelece para o domínio do pensamento religioso – Deus é o éter e, por isso, está em todo o lado. Para Descartes, o éter, é a encarnação, a prova de Deus e da sua omnipresença.

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Descartes recupera as ideias de Aristóteles, nomeadamente no que se refere à luz entendida como uma entidade pura e, simultaneamente, como a base da formação de todas as cores. Tal como Aristóteles, Descartes acreditava que a luz, ao incidir na retina, iniciava um complexo processo de mistura entre claridade e sombra, na qual a cor derivava de uma espécie de disfunção temporária. Pretendia-se, deste modo, explicar tudo através da mecânica e das suas leis. Na concepção geral da sua teoria da luz, Descartes partiu do olho humano, considerando-o um dos instrumentos mais valiosos de trabalho para o entendimento do acto de “ver” (Hakfoort, 1995).

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Newton partiu do princípio de que a luz era composta por pequenas partículas emitidas por fontes luminosas com uma determinada origem. De certa forma, ainda eram as teorias gregas relativas à emissão de corpúsculos (fontes luminosas que tinham sido dominantes até finais do século XVI) nas quais a visão era estimulada a partir do momento em que os próprios corpúsculos atingiam o olho. A tentativa de perceber a forma como as diferentes imagens que vemos em função da irradiação directa de luz no olho e as outras com que sonhamos ou que simplesmente pensamos se manifestam, levou Newton ao desenvolvimento de um conjunto de experiências para a compreensão do fenómeno.

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Foi com o apoio de prismas, lentes e espelhos que Newton conseguiu recriar o fenómeno óptico que ocorre no interior do olho humano. A experiência fundamental integrou dois momentos importantes – o primeiro provou que um único raio de luz continha todas as cores, que Newton designou por espectro devido à sua

são básicas, sendo a luz branca constituída, essencialmente, pela sua adição no espectro cromático, uma mistura em que todas as cores se apresentam individualizadas e puras. O trabalho desenvolvido sobre o fenómeno da luz, da percepção e da sua decomposição em cores, abriu caminho para novos entendimentos e possibilidades inovadoras que abrangiam um largo espectro do saber.

Das investigações pioneiras64 relativas à luz e à cor, efectuadas por Newton, em pleno séc. XVII, salienta-se o efeito da persistência da imagem na retina. Newton construiu um disco colorido (conhecido por Disco de Newton) que, de acordo com as cores percepcionadas no arco-íris, e ao ser animado por um movimento rotativo e com determinada velocidade, causava um efeito “estranho e misterioso” todas as cores se “fundiam nos nossos olhos”, do qual parecia “ressaltar” uma cor branca uniforme (Barbosa e Júnior, 2002).

A importância de Newton para o esclarecimento da disseminação da luz na sua relação com o aparecimento das imagens em movimento é notável, juntando-se, desse modo, ao entendimento do funcionamento das imagens projectadas pelas lanternas mágicas,65 entretanto já conhecidas. Pela primeira vez, tinha-se a consciência da exploração de um efeito produzido na mente de um indivíduo – o movimento. Esta aproximação ao movimento foi relatada num texto da autoria de Johann Zahn (1631-1707),

Oculus Artificialis Teledioptricus Sive Telescopium (1685), que descreve esta invulgar

sensação de movimento por efeito da rotação de um vidro colorido em forma de disco com

diversidade colorida; num segundo momento, impunha-se a difícil tarefa de decompor a sua “aparente” pureza.

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O trabalho de Newton, iniciado no séc. XVII, iria estar na vanguarda do desenvolvimento das tecnologias ópticas no séc. XVIII, onde, por conseguinte, se devem evidenciar as obras e as personalidades de algumas figuras que, na época, se destacaram no prosseguimento do trabalho de Newton: Bernard Le Bovier (1657- 1757), La Pluralité (1686), Madame du Châtelet (1706-1749), apelidada de “Lady Newton” após a publicação de Dissertation sur la Nature et la Propagation du Feu (1774), Robert Smith (1689-1738), A

Complete System of Opticks in Four Books (1738) e Petrus van Masschenbroer (1692-1761), Elementa Physicae (1734).

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Sabemos que foi descrita por Athanasius Kircher, cerca de 1646, na sua obra Ars Magna Lucis et Umbrae. Kircher descreveu-a como uma simples imagem formada a partir de uma lente e, de seguida, projectada numa superfície plana. Como vimos, o seu aparecimento remonta às antigas Pérsia e China e só depois, e pela mão de Martin Martini (1614-1661), chegou à Europa (1654) (Hankins, 2003).

A primeira utilização da lanterna mágica para projecções educativas aconteceu no Louvre no Gabinete de Física de Jacques Alexandre Cézar Charles em finais do século XVIII, onde as pessoas acorriam para ver sombras e cores em movimento. Em pleno século XIX as então chamadas fantasmagorias proporcionadas pela lanterna mágica atingiam o seu auge. Encontramos ainda a famosa lanterna mágica de Cagliostro que, em Itália, era “vendida” como feitiçaria oriunda do Oriente. A própria origem da tecnologia que possibilitou a criação das lanternas mágicas não está inteiramente esclarecida. Rapidamente este dispositivo ganha notável popularidade seguindo-se por toda a Europa sessões de projecção de sombras coloridas que sugeriam o movimento em ambientes escurecidos.

transparência.66 Podemos aqui identificar dois fenómenos que irão convergir para o mesmo fim – por um lado, um efeito interior provocado na retina directamente pela incidência da luz, e um outro exterior, que se manifesta na projecção da luz num objecto. Na árdua tarefa de descodificar a luz e suas propriedades desenvolveu-se, em paralelo, um infindável número de instrumentos e engenhos (Brito Leal, 1928) capazes de utilizar a luz, em simultâneo com o fabrico de lentes cada vez mais complexas, proporcionando, deste modo, um novo mundo pronto a “explodir” no sentido de se poder criar uma imagem “viva”, em movimento.

O trabalho de Newton iria ter repercussões importantes no desenvolvimento da teoria da persistência da visão, a partir dos estudos dos cientistas Peter Mark Roget (1779- 1869) e Joseph Plateau (1801-1883), decisivos para o entendimento do fenómeno da suspensão da imagem na retina (a teoria da persistência da visão), a base do surgimento da imagem em movimento.

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