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Caleidoscópio

II. 4 – Movimento e cinetismo

Sabemos à partida que qualquer objecto detectado no nosso campo visual está em movimento. Assim, um objecto imóvel no espaço real, em determinadas condições, dará lugar a uma “aparente” percepção de movimento. Quando assim é, ou seja, quando o movimento é de natureza aparente, estão presentes inúmeros factores que contribuem para que esse efeito se manifeste: a morfologia dos objectos, as suas condições particulares de iluminação (constância e duração da luz), a sua posição no campo visual face a outros objectos (a própria localização do espectador). Neste sentido, a percepção de movimento real ou aparente, pode ter origem, como vimos, no espaço real, mas também pode ser simulado (“produzido”), nomeadamente no espaço da representação, pela forma como distribuímos e dispomos os elementos visuais bidimensionais no espaço.

Ao referirmo-nos a percepção do movimento estamos a reporta-nos a um fenómeno que resulta dos diferentes estímulos visuais que, ao nível da recepção, se apresentam em diferentes intervalos de tempo e de espaço, possibilitando, desse modo, diferentes sensações de movimento. Por exemplo, a imagem cinematográfica é, em termos técnicos, o resultado de um estímulo luminoso descontínuo regulado em termos de espaço e tempo e produzido pelo movimento mecânico da película (a partir da utilização de imagens fixas em cadência regular, na passagem de um fotograma ao outro).

Foi de facto a partir do advento da fotografia que se iniciaram as pesquisas que iriam conduzir aos primeiros estudos baseados na percepção do movimento na natureza, com implicações no aparecimento da imagem em movimento, mas também importantes para o desenvolvimento de uma arte cinética que procurou incorporar as teorias da percepção do movimento na sua própria lógica operativa e discursiva.

Em 1848, Oliver Holmes (1809-1894), médico ortopedista, tendo como base um conjunto de fotografias de militares em marcha, desenvolveu “mapas visuais” que associavam imagens em sequência de corpos em movimento, tendo em vista o entendimento da locomoção humana (com o intuito de conceber próteses para soldados feridos em cenários de guerra). O trabalho de Holmes foi inovador, pois na época os

processos que existiam associados à fotografia ainda não permitiam o registo de uma acção passo a passo.

É a partir de 1877, com Étienne-Jules Marey (1830-1904), fisiologista e Eadweard Muybridge (1830-1904), paisagista, que verdadeiramente se irão dar os passos decisivos na obtenção de imagens fotográficas em sequência de um determinado acontecimento, em particular, relacionado à locomoção animal e humana. Entre 1872 e 1877, Muybridge desenvolveu experiências que possibilitaram obter uma série de fotografias de um cavalo a galope, registadas a partir da utilização de 12 dispositivos, equipados com obturadores electricamente accionados pela acção da passagem dos cascos do cavalo (1/2000 de segundo).

Fig.(23) Theodore Géricault The Epsom Derby, 1821 Fig.(24) Eadweard Muybridge The Horse in motin, 1878

Trabalho que serviu para demonstrar que durante o galope, o cavalo recolhe ambas as patas (traseiras e dianteiras) na direcção do ventre sem contacto com o solo. Na representação pictórica, os cavalos apareciam, genericamente, sempre com uma pata junto ao solo, ou então como é patente na pintura de Theodore Géricault, The Epsom Derby (1821), um célebre study case do fenómeno, com as patas acima do solo mas em extensão. Muybridge, provou que a teoria de Étienne-Jules Marey expressa no texto La Machine

Animale (1873), onde afirma que a determinada altura, o cavalo em galope tem as 4 patas

afastadas do solo, estava correcta. Marey não usou nenhum dispositivo óptico, mas maquetes de cavalos nas quais simulou o seu movimento.

É, justamente Marey que, após ter tomado conhecimento do trabalho efectuado por Muybridge, desenvolve a sua grande invenção – o fuzil fotográfico, dispositivo que construiu, em 1882, capaz de fotografar 12 imagens consecutivas (frames)170 por segundo, abrindo assim a era das imagens cronofotográficas (a capacidade de num curto espaço de tempo registar o maior número possível de acontecimentos relativos a uma acção sequencial de um objecto), que seria de enorme importância para o aparecimento do cinema.

Entre 1884 e 1885, Muybridge e Marey produzem mais de 20000 placas fotográficas, registando o movimento, e sua decomposição, de pessoas, animais e objectos. Em 1885, Muybridge edita sob o título Animal Locomotion uma quantidade exaustiva de diversos conjuntos de fotografias com registo de diferentes etapas de movimento obtidas a partir de diversos contextos. Foi com a introdução do Zootrópio, dispositivo com que Muybridge consegue fazer “desfilar” as imagens sequencialmente. O sistema era muito simples, pois consistia na colagem de fotografias umas a seguir às outras, em sequência, e de acordo com o movimento, passo a passo, das acções registadas – as fotografias eram colocadas num cilindro de metal. Ao girar o corpo do cilindro, obtinha-se uma ilusão credível de movimento. Ao qual se seguiu o Zoopraxisnocópio (onde Muybridge melhorou a performance do Zootrópio), mais complexo, pois permitia a projecção das imagens mediante a utilização de um disco de vidro. Os passos dados por Muybridge e Marey foram determinantes para a ciência e também para o surgimento da imagem em movimento e, naturalmente do próprio cinema.

Mas não foi só no cinema que se procurou imitar o movimento do mundo real. A pintura e a escultura também se dedicaram à representação do movimento: movimento do corpo e movimentos oculares. E, neste sentido, os artistas construíram múltiplas estratégias que visaram a produção de movimento, muito apoiados nos mecanismos fisiológicos da percepção. A criação de uma arte tida como cinética pode considerar-se como um laboratório que se fundou essencialmente nas experiências e desenvolvimentos que ocorreram a partir das novas disciplinas que apareceram no séc. XIX, da Fisiologia à Motricidade Humana, experiências que, nas artes visuais, procuraram abarcar a

170 Um dos factores mais interessantes do trabalho de Marey, teve a ver com o facto da sua máquina

“imprimir” todos os frames numa única superfície, o que permitia, de forma fácil, ter acesso a todo o movimento captado disponível numa única “folha”. Marey estudou também a locomoção humana, publicando o livro Le Mouvement, em 1894.

representação do movimento nos espaços bidimensionais próprios do desenho, da pintura ou da fotografia e também de espaços tridimensionais (da escultura, da instalação, da vídeo-instalação).171

No princípio do séc. XX, artistas como Moholy-Nagy ou Alexander Rodchenko, por exemplo, já equacionavam a existência de uma arte cinética172 (Popper, 1967), onde o movimento deveria constituir-se como o princípio ordenador de toda a estrutura da obra. No entanto, foi só a partir dos anos 60 que se assistiu à produção de uma arte que se baseasse exclusivamente na questão do movimento explícito, ou seja, que o movimento fosse proporcionado pela estrutura física da obra, ou pela sensação de movimento obtido através de efeitos ópticos de imagens bidimensionais.

Fig.(26) Rafael Jesus Soto Points balncs sur points

noirs, 1954

Fig.(27) Victor Vasalery Feny, 1950

A Arte Cinética foi, justamente, um movimento artístico173 que inseriu na sua dinâmica os interesses do espectador, no sentido em que parte do seu objecto de estudo se baseou, por isso, na existência de relações de “movimento” promovidas por “partes” das próprias obras artísticas e seus efeitos no espectador. Muitas vezes, a simulação de

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Autores como Diehl (1973), Lancaster (1973) ou Werner (1969), operaram uma subtil diferença entre as designações Op Art e Arte Cinética, considerando-as não tanto um movimento mas um sintoma disseminado por muitas linhas artísticas, com especial ênfase a partir dos finais do séc. XIX. As investigações dos impressionistas, a pintura de Juan Gris (1887-1927) e de Piet Mondrian (1872-1944), o próprio construtivismo a par da escola da Bauhaus são prova disso. E também como uma variante da Arte Cinética. Se é que se pode, de facto, enunciar diferenças que sejam basilares entre as duas designações, podemos ficar- nos apenas pelo plano formal. Na Arte Cinética os processos ópticos utilizados baseiam-se na percepção do movimento real, enquanto que na Op Art aquilo que é preponderante reporta-se, em particular, aos movimentos virtuais, a partir de pinturas planas, com recurso a formas geométricas, a padrões e às propriedades das cores. O limite entre as designações é, por isso, ténue e gera alguma confusão.

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O início oficial da Arte Cinética coincide com a exposição Nova Tendência, organizada em Zagreb, em 1961.

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O artista Victor Vasarely (1908) é um dos expoentes máximos do movimento da Op Art. Em finaos da década de 30, Vasarely inicia-se numa aventura: explorar os diversos efeitos ópticos que a pintura possibilitava. Em 1947-48, tendo como base o trabalho de Georges Seurat e de Kazimir Malevich, Vasarely decide-se pela abstração geométrica, onde desenvolve o conceito Forma-cor, que o autor designa de grau zero, o antes e o depois, uma gramática de possibilidades plásticas entre formas e cores.

movimento das obras só é possível se o espectador interage com a obra gerando “movimento real ou induzido”. As obras de Jesus Raphael Soto são prova disso. Por exemplo, Cubo de Nylon (1960-1983), apresenta um cubo formado a partir de finos fios de

nylon pintados de branco, azul e preto. O cubo oferece uma sensação de profundidade e de

planaridade, e conforme a vista que se tem, produz-se a sensação de que está em contínuo movimento, sofrendo, deste modo, uma inevitável ilusão óptica. Este efeito também está presente na obra Points blancs sur points noirs (1954).

A Arte Cinética, no âmbito da sua criação, estabelece experiências muito próximas com o mundo real, desmistificando e copiando a natureza da percepção do movimento. Deste modo, não se pode, pois, dissociar a Arte Cinética das propriedades dinâmicas dos próprios materiais usados para construir as obras e também as “ilusões” ópticas que sugerem ou induzem movimento, tendo em conta também a informação e reconhecimento associados à interpretação individual de cada espectador.

Duas importantes exposições devem ser evocadas: a primeira está relacionado com a exposição Le Mouvement (1955), na galeria Denise René, em Paris.174 Esta exposição tinha como objectivo romper de forma radical com a condição estática da pintura e da escultura. Procurava-se, deste modo, um “objecto” que representasse o estado de movimento, encontrando-se ele próprio em movimento. Ficariam para sempre obras que representaram na íntegra estes pressupostos: os mobiles de Calder, as esculturas mecânicas auto-destrutivas de Tinguely ou mesmo os corredores forrados a fitas de cores vibrantes de Soto. O espectador ficava sujeito ao movimento real das obras ou induzia movimento através da deslocação do seu corpo em volta das obras. Obras que sugeriam também a ideia de movimento por meio de efeitos ópticos obtidos de várias formas, e nas quais estavam presentes associações cromáticas e formais que se combinavam entre si no plano formal, traduzindo-se em trabalhos ora com “reentrâncias” e “saliências” físicas, ora com “ondulações fluidas e hipnóticas”, dependentes muitas vezes da localização assumida pelo espectador. A segunda exposição The Responsive Eye ocorreu em 1965, no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. Alguns dos participantes ligados ao acontecimento Le

Mouvement estiveram presentes, como Vasarely e Soto, e um conjunto de novos autores

como Bridget Riley (1931), Ad Reinhardt (1913-1967) ou Larry Poons (1937). Assim, em finais da década de 60, a designação Op Art já fazia parte plenamente do vocabulário da

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Evento que contou com a participação de artistas importantes, Victor Vasarely (1908), Alexander Calder (1898-1976), Marcel Duchamp (1887-1968), Yaacov Agam (1928), Jean Tinguely (1925), entre os mais significativos.

Arte Cinética, um lugar onde podia coabitar todo o tipo de investigações ligadas ao movimento real e óptico nas artes visuais.

A Op Art expandir-se-ia em muitas regiões do mundo, destacando-se artistas como Luis Tomasello (1935), Carlos Cruz-Diez (1923) e diversos colectivos: o Groupe de Recherche d´Art Visuel (Grav, 1960-1968), com especial destaque para Jesus Raphael Soto, o Grupo T, de Milão (1959-1964), o Grupo N, de Pádua (1960) e os alemães Grupo Zero (1958). Não obstante a curiosidade gerada em torno das suas opções estéticas, o movimento não adquiriu grande visibilidade pública.

A Arte Cinética foi muito importante para o desenvolvimento, na representação, de procedimentos de grande utilidade para a percepção do espectador, nomeadamente de parâmetros físicos na própria percepção visual, ou seja, na exploração de recursos capazes e induzirem experiências perceptivas nos espectadores. A vídeo-instalação irá incorporar estas questões na lógica da sua estratégia expressiva, onde está presente o problema da percepção do movimento, enquadrando-o como uma das ferramentas que permite a percepção multi-sensorial do espectador.

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