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III.5.1 – Imagem e som: a «mobilidade perceptiva» do cinema

A partir do surgimento do som no cinema viria a ter-se em conta a representação virtual de fenómenos psico-acústicos. Ou seja, um dos objectivos do cinema passou pela procura em “projectar” ambientes reais e credíveis no espectador, procura que teve em conta a diversidade dos espectadores (Altman, 1992), a par de uma nova premissa: a necessidade em se enveredar por uma abordagem de teor sociológico (nesse sentido, o som sincronizado com a imagem visou não só a construção de “cenas” com o intuito de as tornar limpas e claras, do ponto de vista técnico, mas também aligeirar a interpretação do que se via e do que se ouvia).

Os estudos efectuados por Gaudreault e Jost (1995) deram-nos a conhecer de um modo mais aprofundado as questões que se põem, do ponto de vista físico, por exemplo, o que está em causa na construção de uma personagem em termos auditivos. Isto é, com excepção dos contemporâneos sistemas surround, o som dos filmes não tem dimensão espacial, e no início do sonoro esta era a situação prevalecente: um tipo de recepção que os autores designam por “acusmática” – ouve-se sem se saber qual a origem do som. Foi com a introdução dos diálogos que se conseguiram criar padrões de desnivelamento sonoro, nomeadamente estabelecer graus de clareza entre primeiros e segundos planos na própria imagem. Por exemplo, diálogos efectuados entre personagens que estão em primeiro plano, remetendo todos os outros ruídos para segundo plano, ajudaram a desenvolver uma “perspectiva sonora” no cinema (Gaudreault e Jost, 1995). Deste modo, com a perspectiva sonora, passou a ser possível delinear de uma forma mais nítida, uma relação entre a

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Uma das consequências da introdução do som sincronizado no cinema foi, desde logo, o aparecimento de géneros distintos dentro da mesma arte cinematográfica, que envolviam o apreço directo dos espectadores, mas, sobretudo o seu sucesso económico, relegando, desta forma, o drama e o melodrama (géneros sobreviventes do mudo) para contextos secundários. Essencialmente, encontramos o drama e o melodrama que prevaleciam na maior parte do cinema produzido nos E. U. A., em detrimento, por exemplo, de filmes de cariz épico ou evocativos de grandes eventos, oriundos essencialmente da Europa, sendo a maior deles realizados na Alemanha. Der Golem (1920), de Paul Wegener (1874-1948), Der student von Prag (1926), de Paul Wegener e Henrik Galeen (1881-1949), Der Stolz der Firma (1914), de Carl Wilhelm (1885-?),

Schuhpalast Pinkus (1916), de Ernest Lubitsch (1892-1947). 267

O género Comédia Musical ou Musical desenvolveu-se em torno de números musicais coreografados. Busby Berkeley (1895-1946) ou Vincent Minelli (1903-1986), foram os grandes nomes do período áureo do Musical – Singing in the Rain (1952), Oklahoma!, South Pacific (1949), The King and I (1956), Funny Face (1957), Gigi (1958), The Sound of Music (1959), West Side Story (1961), Mary Poppins (1964), My Fair

personagem e a fonte de som, genericamente em termos de espaço visual e sonoro.

O som no cinema tornar-se-ia, como metáfora, uma autêntica “parede de fundo”, um ruído que nunca mais se desligaria da sua imagem visual, estando na origem de alguns conceitos que marcariam definitivamente a identificação do próprio dispositivo do cinema. Desde logo, a construção da ideia de banda sonora, muitas vezes designada por “cortina sonora”, cujo objectivo foi usar a música (o som) de acordo como os enredos em curso, proporcionando um profícuo conforto audiovisual aos espectadores. A banda sonora incorpora todo o som que é perceptível no filme: os sons que são reconhecíveis, a música composta especificamente para o filme ou mesmo os ruídos não identificáveis que se vão ouvindo na obra.

Já com os diálogos, por exemplo, pretendia-se que as personagens se expressassem oralmente da mesma forma que os espectadores. E nesta questão dos diálogos entre as personagens deve-se ter em conta que, no contexto do cinema, nunca se pretendeu recorrer a uma tradução mecânica dos processos que provinham do teatro ou da literatura, por exemplo. As falas das personagens passaram a ser entendidas, elaboradas como pura representação, um acto artístico e, dessa forma, rejeitando a redução à mera gravação de um texto. Com efeito, os diálogos foram construídos tendo em conta a interpretação individual percepcionada por cada espectador, na qual os elementos físicos do dispositivo apresentam grande importância, a saber: sala de projecção, posição do corpo, altura do ecrã. De acordo com as regras de sobrevivência, tendemos a associar de forma automática o sistema auditivo ao sistema visual (Chion, 1994), numa lógica de concordância entre o que se vê e o que se ouve. Exactamente como acontece numa sala de cinema, o que está em jogo é a transposição directa duma acção (e a recriação artificial deste princípio de percepção), mas a partir do ponto de vista do espectador, tomando em conta a fisiologia do seu corpo, em particular a forma como operam os seus sistemas auditivo e visual (Manzano, 2003). O emprego do som autonomizou-se de forma progressiva, tornando-se parte indissociável do funcionamento dos filmes: o cinema alcançou aquilo que Bergson (1907) designava por uma “efectiva mobilidade perceptiva”.

Por outro lado, a invenção e utilização de efeitos especiais sonoros construídos especialmente para os filmes, uma absoluta novidade do início dos anos 30 do Séc. XX, foi rapidamente assumida com grande interesse por parte dos espectadores. Os grandes géneros como os Westerns, por exemplo, tiraram partido das novas capacidades técnicas em criar efeitos sonoros, e, nesse sentido, parte do seu êxito deveu-se justamente à

capacidade em simular, na perfeição, o galope de um cavalo numa cena de perseguição ou os tiros graves e compactos de um revólver, que ecoavam pela sala de cinema.

Nesta breve incursão pelos momentos iniciais da introdução dos efeitos sonoros no cinema, deve-se ter em conta três linhas de força, três direcções indissociáveis e presentes na feitura dos filmes. A primeira podemos associar directamente ao uso objectivo do som: os seus diálogos, os ruídos e os barulhos provenientes de objectos, de animais ou simplesmente não reconhecíveis – o som no ecrã, em termos técnicos, passou a ser designado “som in”. No primeiro filme sonoro The Jazz Singer (1927), Al Jolsoncantava e o som que os espectadores ouviam era visivelmente “desenhado” pelos seus lábios, criando uma atmosfera singular, pois o que ouviam as personagens no filme era o que se ouvia na plateia, entre os espectadores. Mas os sons também podiam ser perceptíveis a partir de situações que se passavam fora do enquadramento visual, esta noção denominada de “som fora-de-campo” ou “som out” destinava-se a incorporar um largo espectro da componente sonora do filme. Numa segunda linha, deparamo-nos com a importância das sonoridades ditas subjectivas, aquelas que não são perceptíveis pelas personagens da cena, mas apenas pelos espectadores. Esta linha foi ganhando relevo na importância da interpretação das cenas no contexto do cinema, durante toda a metade do séc. XX, visível, em particular, com a ascensão do melodrama sonoro, onde se procurou a busca de novos conteúdos e também de novas formas de narração. As sonoridades subjectivas traduziram-se rapidamente em voz de narrador, música de fundo ou em meros efeitos sonoros (especiais), muitas vezes percepcionados de forma quase subliminar, o que no caso, nem se trata de “som in” e “som out”. O célebre início do filme Touch of Evil (1958) da autoria de Orson Welles é o exemplo máximo do que acabamos de afirmar. Por fim, e ainda dentro das sonoridades subjectivas, podemos encontrar uma terceira linha, presente na utilização do som no cinema com a deliberada função de traduzir o estado de espírito de uma personagem em particular, e também como pano de fundo poético de uma determinada cena, ou ainda apenas como uma “melodia” subjacente ao enredo que está em curso, por exemplo, a forma como Charlie Chaplin utilizou este tipo de sonoridade no filme Luzes da

Ribalta, onde a personagem principal é sempre identificada com o “tom” melódico que lhe

confere um estado de alma, que lhe revela os sentimentos.

Percebe-se, pois, a importância do som no mundo da imagem do cinema, nomeadamente na sua capacidade em reorganizar sensorialmente o ecrã face ao espectador, expandindo, desse modo, infinitamente as suas potencialidades expressivas. Ao

espectador permite percepcionar todos os elementos visuais no ecrã, tendo em conta aquilo que acontecia na realidade, e, dessa forma, permitindo-lhe adaptar-se individualmente aos sons dos filmes que, consoante a sua cultura, conhecimento e experiência, determinam uma influência directa na interpretação dos mesmos (Julien, 2003) como acontece com a imagem visual.

Fig. (37) Charlie Caplin Luzes da Ribalta, 1958

Podemos, desta forma, analisar a contribuição que os elementos sonoros trouxeram à imagem em movimento, no contexto do cinema, do ponto de vista da existência de um discurso sonoro que passou a estar presente nas imagens cinematográficas, ou seja, entendidas como forma de expressão, assumindo-se como um dos factores mais importantes no impacto total dos acontecimentos fílmicos face aos espectadores.

Um dos cineastas que mais aprofundou a relação entre a imagem visual e a imagem sonora foi, sem dúvida, Jacques Tati. Em Les Vacances de Monsieur Hulot (1953), Tati descreve-nos um conjunto de situações que envolvem directamente personagens que se encontram em férias. O som pauta todo o desenrolar das múltiplas peripécias que nos são dadas a ver: o som incomodativo de um carro ruidoso conduzido pelo senhor Hulot (Tati) é o ponto de partida. Inadvertidamente, Hulot irá provocar toda a espécie de desordens que vão desfilando em constantes e sucessivas “desgraças” que são sempre ampliadas pelo factor sonoro – correntes de ar, barcos de recreio destruídos e jogos de verão irão gerar um clima de completo desassossego. Os seus filmes, ricos em detalhes e com poucos diálogos, produzem um particular tipo de humor que tem no som, em especial na produção de efeitos especiais sonoros, a sua grande estratégia, como escreve Michel Chion: «As suas ideias audaciosas acerca da possibilidade de regular o som durante a projecção do filme, que se aproximam de determinadas práticas efectivas da música concreta, mostram que, para ele, o filme era, para empregar uma palavra do jargão actual,

um objecto “interactivo”».268

Fig.(38) Jacques Tati Playtime, 1967

Já em Playtime (1967), encontramos engenhosamente na crítica à sociedade tecnológica moderna, um conjunto de soluções na utilização de ambientes sonoros – os sons dos elevadores, dos botões de inúmeros mecanismos, ou subtis sons que emanam dos “toques” em diversos materiais que, em conjunto com a escassez de diálogos (que se ouvem ao longe, frases inacabadas ou incompletas, fragmentos de discursos que Tati filtrou, tornando-os difusos), parecem resultar num filme que, mais do que ser visto, pretende fundamentalmente ser ouvido. Playtime é, sobretudo, um filme feito de eliminações, como refere Michel Chion «(...) eliminação do supérfluo: décor nu, liso, colossal. Da família de Hulot já não existe nem irmã, nem cunhado, nem sobrinho, nem casa (….) Os ruídos dos animais, generosos no Jour de fête e mais tarde em trafic são totalmente eliminados».269

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