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1 – O primeiro impulso: Émile Reynaud e Eadweard

Parte III – A Ideia de Cinema

III. 1 – O primeiro impulso: Émile Reynaud e Eadweard

Muybridge

São complexas as questões que se prendem com o estatuto que a imagem em movimento adquiriu, tendo em conta, nomeadamente, o rumo que viria a tomar após a invenção do cinema. Nesse sentido, interessa perceber a forma como a imagem em movimento se constituiu enquanto paradigma face ao próprio aparecimento do cinema, incluindo nesse debate a problematização de um significativo conjunto de questões relacionadas com a noção de motion, quer por concordância, quer por dissonância, onde não pode deixar de se incluir as especificidades que são próprias da imagem em movimento quando inserida em contextos diferentes, e trabalhada a partir de interesses diversos.

O esforço aponta no sentido da clarificação entre aquilo que é, ou parece ser, o preciso campo de acção da imagem do cinema (a designada imagem fílmica ou cinematográfica), os seus procedimentos ordinários, a sua filiação e militância, inseridas, muitas vezes, num vasto âmbito de expressões artísticas,178 em confronto ou em conformidade com o próprio e específico âmbito cinemático, a par do estratégico problema suscitado ao nível da recepção – o do papel do espectador.

Deste modo, e apesar da diversidade dos media que a utilizam de forma particular, a imagem em movimento não deixa, no entanto, de divergir na sua estrita relação com o destino que os caracteriza, transformando-se num extraordinário “palco”, acima de tudo, edificadora de uma ideia globalizante de cinema (Bazin, 2008).

Numa primeira abordagem às origens do cinema, tal como o conhecemos, deparamo-nos com uma imensidão de materiais de diversas proveniências que contribuíram decisivamente para o seu aparecimento. A literatura, o teatro, a pintura ou a arquitectura179 aparecem, genericamente, como a génese e base das motivações que

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Designadamente as acções que podemos aferir como híbridas e que se diluem em categorias e subcategorias relativas tanto aos domínios do cinema como a outros, onde se incluem, de forma particular, aquelas que fazem parte do específico campo das artes plásticas.

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Na perspectiva crítica de autores como Alain Badiou (2004, 2010) ou Guy Debord (1978), por exemplo, o cinema é considerado, acima de tudo, como uma arte “impura”, uma arte vampírica que se fundou e alimentou a partir de outras artes: a literatura, o teatro, a pintura... .

manifestamente estiveram ligadas ao aparecimento (e caracterização) do próprio dispositivo do cinema, que supõe, desde logo, a construção de um espaço físico específico: escurecido e habitado por filas de cadeiras apontadas para um palco dominado por um ecrã branco de grandes dimensões, geralmente colocado um pouco acima do chão e em frente aos espectadores.180 Construção que aponta, no seu conjunto, no sentido da criação de uma atmosfera singular (fruto de múltiplas influências) que envolve o próprio dispositivo numa relação particular com o (seu) espectador (Metz, 1980). O clímax desenvolve-se, pois, à volta da dispersão de um cone de luz que é projectado integralmente no plano (ecrã), capaz de produzir, deste modo, espanto retiniano quanto baste (Cordeiro, 2004). Parte do fascínio que o cinema exerce resulta, portanto, da sua dimensão técnica complexa, assente em “proezas” tecnológicas, a par de diversos atributos de ordem socioeconómico e cultural presentes desde o seu aparecimento.181

Fig. (30) Emile Reynaud O Teatro Óptico, 1882

O surgimento do Teatro Óptico Visual (1882),182 de Émile Reynaud serve de ponto de partida para se poder elaborar uma pequena viagem sui generis às origens do cinema. O Teatro Óptico Visual foi concebido através de um conjunto de soluções engenhosas, capaz de projectar “figuras pintadas” num pano de linho semi-transparente (desenhos

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O dispositivo cinematográfico convencional integra a sala, a cabina de projecção e o ecrã. A escuridão da sala e a imobilidade dos espectadores ajudaram à produção de uma “impressão” de realidade que é sustentada pela ilusão de movimento das imagens presentes no ecrã.

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A primeira representação pública ocorreu a 22 de Março de 1895, em Paris, diante da Sociedade de Encorajamento à Indústria Nacional, presidida pelo astrónomo Mascart, presidente da Academia de Ciências. Se as artes estão tradicionalmente associadas aos príncipes, papas e reis que as promoveram, o cinema nasceu do apoio de um público alargado, mas não deixou de estar, logo de início, também ligado a interesses industriais e científicos. Esta apresentação antecede em poucos meses a histórica sessão dos Irmãos Lumière, em que se o público se constituí como assistência.

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Émile Reynaud (1844-1918), produziu as primeiras “histórias animadas” tendo a preme intenção de alcançar, essencialmente, a um público mais jovem. O seu fascínio pela Lanterna Mágica esteve ligado a eventos públicos de leituras de poesia, onde usou diapositivos de vidro com fotografias e desenhos pintados.

combinados com fotografias). O Praxinoscópio,183 uma espantosa invenção que era o coração deste imenso dispositivo (genericamente, constituído por um cilindro com uma banda de imagens coloridas no interior), conseguia projectar imagens, em qualquer lugar, mediante o emprego de tecnologias associadas às propriedades de reflexão dos espelhos. Da combinação entre o Praxinoscópio e os conhecimentos oriundos das lanternas mágicas,184 Reynaud conseguiu construir um dispositivo capaz de projectar imagens em movimento visionadas por vários espectadores ao mesmo tempo. Esta proeza técnica do Teatro Óptico Visual só foi possível graças à projecção de imagens obtidas a partir do emprego de duas lentes que desempenhavam duas funções particulares: a primeira lente projectava motivos visuais ligados à cenografia, enquanto que a segunda projectava o movimento das figuras. Os espectáculos de Reynaud obtiveram, desse modo, uma grande adesão popular, à qual não foi alheia a excelente qualidade da imagem produzida. De facto, já não era só de técnica que tratavam as suas projecções de imagens em movimento, mas, sobretudo, da construção de um discurso visual, onde, de alguma forma, já tinha lugar a inclusão de pequenos argumentos que contavam pequenas histórias, pequenos acontecimentos. As projecções do Teatro Óptico Visual já eram acompanhadas de som, mais concretamente de pequenas composições musicais (e sincronizadas) produzidas pelo próprio Émile Reynaud.185 Em última análise, o trabalho de Reynaud esteve, na sua génese, ligado à criação de um sistema audiovisual embrionário que permitiu, de certa forma, a antevisão do que viria a ser o dispositivo cinematográfico, tal como o conhecemos.

O período inicial dos pioneiros da imagem em movimento tem na figura e no

183 O Praxinoscópio de Reynaud foi na realidade um aperfeiçoamento do Fenaquistiscópio e do Zootrópio.

Reynaud “cruzou” os conhecimentos químicos provenientes da fotografia com as tradicionais técnicas ligadas às lanternas mágicas, desenvolvendo, desse modo, um dispositivo já muito próximo daquilo que hoje é o próprio dispositivo cinematográfico. Ao combinar pequenos espelhos colocados no interior do “tambor” do Praxisnoscópio, agora sem as fendas típicas do Fenaquistiscópio, permitiu conceber, de forma engenhosa, um efeito de movimento das figuras muito mais suave e “natural”. Ainda antes do Teatro Óptico, Reynaud inventou o Teatro Praxinoscópio que permitia apenas a visualização de um único espectador.

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Através desta máquina portátil era possível realizar pequenos espectáculos vocacionados para o entretenimento popular, inspirados no longínquo trabalho de Athanasius Kircher e das suas Lanternas Mágicas, e criar, desse modo, uma atmosfera visual muito semelhante àquilo que viria, mais tarde, coo dissemos, a constituir-se como própria do cinema. Athanasius Kircher desenvolveu o seu trabalho a partir da projecção de luzes e sombras em pequenos teatros semi-circulares, construídos para o efeito. A estes dispositivos era dado o nome de Lanterna Mágica. A ideia de “aparição” ou de “fantasmagoria”, presente no trabalho de Kircher, foi “inspirada” nos antigos espectáculos de sombras persas (séculos X-XI) que ilustravam pequenas narrativas e, obviamente, nos tradicionais jogos de sombras chinesas muito pouco conhecidas, na altura, no Ocidente. Kircher passou uma longa temporada na China, onde tomou contacto com estas técnicas.

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Sobreviveram alguns “filmes” exibidos nos primeiros tempos do Teatro Óptico de Reynaud, nomeadamente as bandas em celulóide Clown et ses chiens (1892), Autour d´une cabine (1895).

trabalho de Eadweard Muybridge outro momento determinante. Em 1872, em Palo Alto (Califórnia), Muybridge fotografou um cavalo em movimento (The Horse in Motion, as

Reproduced in La Nature). Este trabalho, motivado por uma aposta feita entre o

governador da Califórnia e um popular, dividia-se em duas fases: a primeira mostrava um cavalo e o seu joker em movimento; a segunda retratava o cavalo a puxar uma carroça com o seu joker. Este acontecimento implicou a construção de uma pista com cerca de 1000 metros e de um corredor paralelo que continha doze câmaras fotográficas lado a lado. Era o próprio galope do cavalo que accionava o disparo das câmaras, obtendo-se assim doze fotografias das diferentes fases desse movimento. Ao “texturar” os celulóides, na própria revelação, Muybridge conseguiu obter fotografias com luz muito semelhante. As fotos postas em sequência “geravam” a “sensação” de que se estava a ver uma imagem em movimento, sequência a sequência, como acontecia com as figuras dos discos de Plateau. A colagem das fotografias impressas de forma sequencial e projectadas num ecrã através de outra invenção, o Zoopraxinoscópio (desenvolvido por Muybridge a partir do Zootrópico),186 produzia, de forma eficaz, o efeito ilusório de movimento na imagem.

Fig.(31) Eadweard Muybrigde The Horse in Motion, as Reproduced in La Nature, 1872

O trabalho desenvolvido por Muybridge, permitindo isolar uma imagem de uma sequência de imagens,187 viria a enriquecer a própria percepção da imagem pois, se é certo que numa primeira instância remetia para uma visão “anti-natural”, num segundo momento, permitia ao espectador a análise sistematizada do movimento a partir das várias imagens colocadas em sequência, nomeadamente a suspensão do tempo de uma determinada acção.

É justamente no contexto da percepção do movimento que surge a importância do

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Também inventor do Flying Studio, o estúdio portátil, de grande sucesso comercial, que permitia a revelação de fotografias, em qualquer lugar.

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Neste período, muitos foram os inventos que apareceram ligados à temática da exploração do movimento. Realçamos os esforços de Georges Demeny (1880-1894) e Étienne-Jules Marey no contexto da análise do movimento do corpo humano.

legado desenvolvido por Ernst Mach (1838-1916)188 que, por volta de 1880, conseguiu fotografar uma bala disparada por uma arma de fogo cuja velocidade era superior à velocidade do som. Este dado, do ponto de vista técnico, foi extremamente útil para o entendimento da percepção da imagem em movimento. Mach, ao conceber uma máquina capaz de acompanhar e fotografar, passo a passo, a velocidade do projéctil, possibilitou a visualização das ondas de choque que o projéctil produzia, em forma de ondas radiais, durante a perfuração de uma chapa de metal. Assim, através de imagens em sequência, momento a momento, o espectador tinha acesso, de forma pormenorizada, não só à totalidade do movimento de um determinado acontecimento, mas também àquilo que não era perceptível no quotidiano. As suas máquinas fotográficas foram desta forma responsáveis por uma “nova” janela na convencional forma de recepção das imagens cognitivas: o movimento aparecia-nos totalmente afastado da aparente naturalidade que envolvia a visualização da realidade, algo que resultava de um processo de decomposição do tempo em fotogramas, realidades técnicas que Martin Jay (1993) aponta como as causas que iriam conduzir a uma suspeição ocular presente em toda a actividade artística no séc. XX, nomeadamente a “fé modernista” na conciliação da visualidade e da racionalidade que viria a ser rejeitada. O que é percebido pelos sentidos e o que faz sentido é desligado e separado da realidade.

Tanto as experiências de Eadweard Muybridge como as de Ernst Mach não devem ser entendidas apenas como meras rupturas no campo perceptivo, mas, sobretudo, como precursoras das novas formas de conceber o “apagamento do espaço”, ou seja, de colocarem em causa a instantaneidade da visão – um princípio caro ao cinema.

Todo o séc. XX foi fruto de imenso labor na procura afincada de ilusão do movimento, proporcionando um frutuoso cruzamento entre os conhecimentos relacionados com a especularidade dos efeitos gerados pelas imagens em movimento projectadas e outras técnicas, com o intuito de criar uma ilusão credível. É no contexto destes acontecimentos que se desenvolve o conhecimento técnico necessário à construção de uma máquina capaz de fotografar em continuidade a realidade. Thomas Edison189 (1847-1931)

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Ernst Mach, filósofo, inventor e cientista, desenvolveu imensas patentes e protótipos ligados a processos fotomecânicos, especialmente desenhados para o exército norte-americano.

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Na realidade, Edison, e um pouco mais tarde, os irmãos Lumière, trataram de combinar a recente invenção da fotografia com as técnicas de projecção de luz, muito mais antigas e conhecidas, fruto do trabalho de pesquisa realizado por Athanasius Kircher. Em pleno século XIX, as técnicas afectas à projecção de luz já se tinham sofisticado espantosamente. Este princípio que partia da simples premissa de colocar um foco de luz à frente de um objecto e obter de seguida a sua imagem projectada, num plano vertical, é parte do encanto que a tudo preside. As primeiras máquinas variavam entre o uso vacilante da luz das velas, por vezes sob a forma

entusiasta do trabalho iniciado por Muybridge, irá disputar com os irmãos Lumière (Auguste Marie Louis Nicholas Lumière (1862-1954) e Louis Jean Lumière, (1864-1948)), a autoria do aparecimento da primeira máquina de filmar,190 polémica que ainda hoje se mantém.

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