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Ao almoço, quem morre: necrologia; o nome de saída enquanto o mais íntimo, a proteger

CAPÍTULO 3 NO QUINTAL DE DONA ROSA: APRESENTAÇÕES E O QUOTIDIANO

3.9. Ao almoço, quem morre: necrologia; o nome de saída enquanto o mais íntimo, a proteger

Em casa de Rosa, enquanto esta prepara o almoço no forno, é habitual ir-se escutando, pelo rádio, quem morreu. Num desses almoços gravei o que de seguida transcrevo. Repare-se, por exemplo, como Alberto continua irmão de Timóteo, apesar de já falecido, e como alguém é filho, mas também é irmão e tio - sublinhando-se a importância da família extensa – ou como o

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Note-se que também eu conheci Rosa e a família por intermédio de Maria, que por sua vez me foi indicada a partir de Lisboa por uma amiga portuguesa, devido à sua profissão na área da intervenção social.

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O aparelho que estava ocasionalmente no quintal tinha lugar fixo na cozinha da casa principal, sendo que o outro televisor estava habitualmente na sala.

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morto é pai, irmão, sobrinho, tio, sendo inclusive anunciado como irmão de outras pessoas já falecidas. Através destes excertos, também podemos observar a diferença entre o nome de casa ou vulgo, e o nome de rua. Esta é uma prática de nomeação comum e transversal: cada sujeito tem sempre mais do que um nome, o nome de registo e de «escola», e o nome de casa, pelo qual se é tratado pela maioria das pessoas. Esta prática servirá de certo modo como proteção face aos maus-olhados e outras tentativas de aniquilação do sujeito, uma vez que os atos de feitiçaria se fazem precisamente através do conhecimento do nome «verdadeiro» ou de registo, que se tenta, por isto, ocultar. Não será por acaso que as pessoas que têm acesso ao nome de registo, como professores, padres, enfermeiros, médicos (já por si só cargos públicos de poder), mas também pais ou avós, são vistos enquanto sujeitos de enorme poder, em última instância vital, o que aprofundo no capítulo dedicado ao tema. Valverde explicou de forma exemplar esta diferença de nomeação, bem como os riscos de vida a estas associadas, alertando-nos ainda para o que entende ser «uma conceção de pessoa» em São Tomé: «Sob a superfície mais ou menos benigna das palavras e dos gestos visíveis, podem ocultar-se projetos duvidosos e, em alguns casos, perigosos e mesmo letais para a pessoa ingénua e desprevenida. Por isso, cada um, a seu modo, precisa de ser um mestre no jogo das aparências, saber o que deve revelar ou dissimular conforme as circunstâncias. […] no Tchiloli, e na sociedade são-tomense, a pessoa humana é concebida como um “tesouro de informações” que deve ser gerido meticulosamente (cf. Brandes 1980 in 2000:36).[…] o modo como muitos são-tomenses concebem a pessoa humana se baseia, em parte, numa tensão fundamental entre um eu íntimo, privado, e um eu representacional, público […]. O segundo opera como uma proteção existencial e, em alguns casos, metafísica do primeiro que é aquele que, na lógica desta conceção de pessoa, mais fielmente traduz a identidade do eu. Por exemplo, quase todos os são-tomenses possuem dois nomes: um “nome de casa”, que é o nome público mais utilizado e um “nome de batismo”, “de saída”, ou “de escola”, que só é acessível a um número mais ou menos restrito de pessoas, e é o que está ligado – para os que acreditam – aos espíritos da pessoa, podendo em caso de utilização indevida, sobretudo por feiticeiros, levar à destruição do indivíduo» (ibid). Ou seja, o nome mais íntimo é precisamente aquele que, noutros contextos, se consideraria público (de batismo, de escola, de saída): o «nome de saída» é o nome a proteger.

Voltando aos excertos que ainda não mostrei. Escrevi o seguinte nos diários de campo: «Noto como aqui a morte está sempre tão presente: a morte é grande parte da vida. Apercebemo-nos da importância da morte no quotidiano, cuja ´celebração` é feita em diversas ocasiões (funeral, velório, nojo, missa do sétimo dia, missa do primeiro mês, entre outras) que servem para unir e

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reunir várias pessoas, familiares, vizinhos, amigos. Apercebemo-nos também, pelo que oiço na rádio, da importância dos percursos migratórios no arquipélago». Seguem-se finalmente os excertos que gravei e transcrevi, preservando a ficcionalidade95 dos nomes.

«Faleceu pelas 3 horas e 50 minutos da madrugada de hoje, dia 5, no Hospital Dr. Ayres de Menezes, Eliseu Zynter, que residia em São Marçal, pai de Marina Dias Zynter, Joyce Dias Zynter e Baltazar Dias Zynter, irmão de José Domingos, Eugénia Elsa Zynter, Alice Madalena Zynter, Olívia Lopes, Josefa, e Renato Mafeu, Tio de Alexandrino Santos Silva, Geraldina Zynter, sobrinha de Eliseu, Eunice, Fernanda e outros. O seu funeral será realizado às 9 horas de amanhã, dia 6, no cemitério de Gongá. Faleceu em Angola, vítima de doença prolongada, Augusto de Sampaio, filho de Alberto de Sampaio, irmão de Timóteo já falecido, Júlio, Adérito Graça Lopes, Isabelinha, Ivone, Luz Guilhermina de Sampaio. Sobrinho de Severa Lima de Sampaio, tio de Amílcar, Martinho, Mateus, Sílvia, Guadalupe, Teresa, Lourenço, Beatriz, Constança, e outros. Avisa-se que a missa do 7º dia será celebrada por sua alma no sábado dia 10 na igreja de Guadalupe, às 7 horas. A concentração familiar será na 6ª feira na residência do Sr. Sampaio […]; António Furtado, mais conhecido por Romeu, residente em Portugal, filho de Icário Furtado, já falecido, irmão de Dionísio Furtado residente em Angola, irmão de Timóteo Santos, residente em Luanda, e de Angelina Maria Furtado, residente em São Tomé e Príncipe […]. A concentração da família será às 9 horas em Almas; Família e amigos de Jerónimo Ambrósio que foi mais conhecido por Nuno, avisam que será celebrada a missa por sua alma, na 5ª feira dia 9 pelas 10 horas, na Igreja de Bombom. A concentração familiar é feita amanhã na residência da sua mãe, em Pantufo. […] Joana Inês Silva, que foi mais conhecida por Eugénia […] missa do 3º mês sufragando a sua alma na 5ªfeira, dia 9 na igreja de Bombom e o nojo será na véspera na sua antiga residência […]» (12h00, 26 Fevereiro de 2012).

3.10. Programa de rádio «o amor verdadeiro»: discos pedidos por todo o São Tomé; 100% crioula, 100% buga tem mistura

Em 2014, vivia sozinha e tinha já o meu próprio rádio – aquisição muito significativa para Rosa e Rui, como descrevo à frente – aparelho que ligava, tal como Rosa, antes de adormecer. Já de madrugada passava na rádio nacional o «programa dedicado à música romântica, ao amor verdadeiro», dizia o locutor, no qual se aceitavam «discos pedidos». Ligava gente de todo o São Tomé a pedir músicas, inclusive das localidades mais isoladas, como certas roças e mesmo

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a altas horas da noite. Durante quanto tempo teriam estado a juntar dinheiro para comprar o saldo? era o que pensava. Quem «pedia os discos» identificava-se regra geral pelo nome (vulgo), pela localidade de residência, e às vezes referiam o que faziam profissionalmente. Pediam depois determinada música que dedicavam comummente à família e aos amigos, cujos nomes se costumavam mencionar (também o vulgo). Fiquei muito impressionada com o poder mobilizador do rádio, como podia unir pessoas tão distintas e tão distantes, da vivenda de luxo da capital às casas-comboio de uma roça acima das nuvens. Não fiz uma lista exaustiva dos pedidos, até porque o meu objetivo era, como já foi dito, adormecer. Registei porém que «ouvi rap, quizomba, muita música brasileira, como por exemplo, do Roberto Carlos. O romantismo está muito na moda», escrevi no diário. Anotei ainda ter ouvido, repetidas vezes o mesmo anúncio referente a um sumo de frutas e que era algo como: «100% crioula, 100% buga tem mistura, 100% crioula, tem mistura», cantada em crioulo de Cabo Verde, o que achei muito interessante e que relacionei com o recente elogio da cabo-verdianidade nas ilhas, tema a que já fiz referência e ao qual voltarei. Afinal, «ter mistura» também pode ser algo positivo, ao contrário do que disse Rosa sobre os forros do Riboque, o que aprofundo no capítulo seguinte.

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