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CAPÍTULO 3 NO QUINTAL DE DONA ROSA: APRESENTAÇÕES E O QUOTIDIANO

3.1. Entreajuda e capital social; ser ou não ser a pessoas «certa»

As pessoas que se encontram assiduamente no quintal de Rosa, as visitas,69cultivam intensas relações de entreajuda, que podem ser entendidas como processos de ativação dos capitais social, cultural e económico de cada um, processos ainda mais necessários por se tratar de um país no qual o acesso a certos serviços é frequentemente dificultado como, por exemplo, aos hospitais, aos empregos, aos tribunais, à posse da terra. No quintal desta primeira casa onde residi - uma vivenda grande e térrea - registam-se assim momentos de convívio entre pessoas com o mesmo estatuto e entre pessoas de diferentes estatutos étnicos e socioeconómicos, que partilham refeições. Aí se janta, almoça e convive, aí se partilham estórias e afetos, pelo que neste espaço - e à mesa – se valorizam as várias dimensões da identidade social além da étnica,

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Em percurso de ascensão, não linear porém, como demonstrarei em pormenor.

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Estes não são tios «de sangue», sendo muito comum este tipo de tratamento, como de resto acontece noutros contextos. Também Arlindo tratou Rosa por tia, apenas um dia, sendo que no resto do tempo a tratou por Dona, tal como faz toda a gente. Rui, um «forro humilde», que é meu amigo e «guia de campo» desde 2004, à medida que se ia sentindo confiante tratava-me por «minha irmã». Um dia tratou-me por «minha filha», tendo ficado muito atrapalhado e chegou mesmo a pedir desculpa.

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mas também a étnica, uma vez que as identidades coexistem e se inter-relacionam, como demonstrarei. Os capitais sociais e culturais, bem como os percursos de ascensão protagonizados por José, Maria e Arlindo, aproximam-nos de Rosa e da sua família e distanciam-nos das «pessoas de rua ou de roça», normalmente associadas a pessoas de um estatuto étnico menos valorizado, como os antigos contratados e seus descendentes, e os angolares. Há uma forte desconfiança face aos outros, pessoas que não se conhecem bem: «A gente não sabe quem é essa gente, pode ser bandido! Joana, faz atenção!», dizem-me Rosa e Arlindo inúmeras vezes, referindo-se a «gentes das roças» ou pessoas «como os nigerianos […]. Essa gente tem hábitos muito diferentes», os considerados não autóctones, o que revela uma forte hierarquização social que se reflete, também por vezes, em linhas étnicas.

Demonstro como convivem pessoas de diferentes estatutos, pessoas estas que não se constituem enquanto grupos nem têm de partilhar interesses coletivos em continuidade, nem do ponto de vista étnico (cf. Brubaker, 2004), como é o caso de Maria e José, por exemplo, nem do ponto de vista das diferenciações de classe/estatuto (Weber, 1968;Ortner,2006), conceitos desenvolvidos no capítulo introdutório. É importante para a análise, entender que Rosa também foi protagonista de um percurso de ascensão, como descreverei no capítulo seguinte. A noção de capitais sociais, culturais, económicos, simbólicos, surgem aqui herdadas de Bourdieu (1979; veja-se o capítulo introdutório) e dizem portanto respeito a significâncias que se alteram no tempo e conforme o contexto, o que permite analisar trajetórias, mobilidades e re- significações de práticas (Bourdieu in Curto, Domingos, Jerónimo,2010: [1979]:XXVII, XXIX). A noção de capital social, ainda herdada de Bourdieu, seria também a «habilidad para adquirir recursos gracias a la pertenencia a redes […]» (cf. Portes, 2004:151), não se devendo confundir a capacidade para adquirir recursos – precisamente através das redes - com os recursos em si mesmos (ibid).

Rosa exerce controlo social apertado como, de resto terão feito com ela, evocando uma serie de exigências e exercendo escrutínio apertado face a várias pessoas como Maria ou familiars «mais pobres» e «descuidados», que não convida a sentarem-se consigo à mesa. A este respeito, Portes e Sensenbrenner alertam-nos para o facto de que a aquisição de capital social pode contribuir também para gerar um conjunto de consequências negativas para os «outros», tais como: «la exclusión de los extraños; el exceso de exigencias a los miembros del grupo, las restricciones a la libertad individual y las normas de nivelación por lo bajo» (Portes e Sensenbrenner 1993 in Portes, 2004:153), como verifiquei. Lembre-se o sobrinho materno de Rosa, um menino pequeno, cuja visita descrevo em pormenor no capítulo seguinte, cuja presença diária – quase velada, quase escondida - traz consigo um mundo referencial do qual

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Rosa quer distância: o menino nunca poderá pertencer. Lembremos também a rejeição de Rosa face a quem considera ser uma «pessoa de rua», prática e discurso de algum modo mimetizado por Maria, descendente de cabo-verdianos, que por diversas vezes excluiu José do seu convívio – não o convidou, por exemplo, para a inauguração da sua casa: «nós vimos da roça, ela não quer lembrar isso», assim explicou José o não-convite. Rosa e Maria excluíram também Benny, motoqueiro com quem trabalhei,70descendente de cabo-verdianos, que foi automaticamente classificado de não ser nem «pessoa certa» nem «de confiança»: «é da rua!», disseram Rosa e Maria. Ambas apontaram o facto de este «usar assim o cabelo»71 e de usar também «boné de malandro [pois] quem usa gorro assim é bandido, Joana não vê nos filmes?! É quem está a esconder algo! Está a esconder o quê?! Ah, aí é que tá!» - comentaram. Referiam-se a um tipo de cabelo considerado mais «afro», comprido e «não alisado» [palavras suas].

Há uma constante associação entre o que classificam de «mais africano», que remetem para o que consideram popular e/ou da rua ou da roça, que opõem ao que classificam de «mais europeizado», «da cidade» ou mais «chique», representações que descrevo e analiso em continuidade. Esta oposição não é porém nem linear nem simplista, como poderá parecer numa primeira camada da análise. Antes de aprofundar este e outros temas, passemos às apresentações detalhadas.

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