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Frigoríficos vazios fechados à chave; poder ser da igreja que se quer

CAPÍTULO 3 NO QUINTAL DE DONA ROSA: APRESENTAÇÕES E O QUOTIDIANO

5.4. Ser são-tomense «da cidade» é não falar os crioulos: «não convém estares aqui a querer falar»

5.5.1. Frigoríficos vazios fechados à chave; poder ser da igreja que se quer

Em relação à geladeira: vários interlocutores referiram a importância de se ter uma, e na cidade haveria uma maior probabilidade de se ter acesso à eletricidade,255 podendo-se assim guardar os alimentos intactos, ou então projectar fazê-lo. Bebiana,256uma das minhas entrevistadas, vizinha da mãe de Maria, assinalou o ter uma geladeira enquanto um dos principais aspectos que caracterizaram a sua nova vida na cidade, bem como o poder frequentar a igreja que quisesse, ela e a mãe (já falecida), o que não acontecia na roça onde viviam anteriormente: «aqui tem muito por onde escolher», olhando a igreja como consumo, escolha e prática de lazer, onde se vai conviver – alargando o leque de socialidades – e ainda enquanto forma de ascensão e mobilidade. Contou que era da igreja «Maná há 7 anos […] para vencer doenças, fui, vi lá pessoas muito amáveis, fiquei. Tem muitas igrejas, muitas. Nosso apóstolo é de Portugal. É Jorge Tadeu. Vou 6ªfeira, vou domingo, vou quando quero. Tem muita atividade lá, tudo de bíblia, tudo! Minha mãe era católica. Depois na cidade foi para nova apostólica. Chefe deles é Alemanha. Na roça não tinha nada disso! Na roça era só católica, tempo de branco não tinha outra igreja aqui!». Assinalou também o poder ter outra ocupação laboral, à semelhança de outras pessoas protagonistas de percursos migratórios. Porém, Bebiana raramente usava a sua geladeira, uma vez que era com dificuldade que tinha o que guardar para comer de um dia para o outro, realidade comum a muita gente nas ilhas.

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Referia-se ao movimento diário de pessoas que saiem das roças para a cidade, para estudar ou vender no mercado, por exemplo, e voltam para a roça ao fim do dia.

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Porém em vários bairros periféricos da cidade capital, é comum não existir nem luz elétrica nem água canalizada, pelo menos não diariamente.

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Bebiana é cabo-verdiana. Veio para São Tomé em 1964, com os pais. Foi protagonista de um percurso migratório, com a mãe entretanto falecida, tendo construído casa num subúrbio da cidade. Tornou-se vendedora de peixe no mercado.

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Maria, por seu lado, podia dar uso à sua, o que muito a entusiasmava, como se verá. A posse de um frigorifico significa poder adquirir-se algo como um pacote de leite sem ser em pó,257 poder programar refeições e «congelar os restos, como faz Dona Rosa», ouvi Maria dizer. Ter uma geleira, contribui para modificar não só a rotina familiar como os próprios papéisatribuídos a cada um, as relações de género e inter-geracionais, as práticas de consumos, os tempos, as sociabilidades e o próprio estatuto social, de quem pode e de quem não pode tê-la e ao que esta representa. Recordo São João dos Angolares, onde também residi em 2012, em casa da mãe de Joana. Nesta sede de distrito, havia energia258uma vez ao dia, sendo que a partir de uma certa hora, a energia era cortada – à noite não havia. No centro da sala de Joana, estava um enorme frigorifico, sempre fechado à chave e com cadeado, apesar de vazio. Pensei em comprar comida, como leite, o que não foi possível pois os alimentos estragar-se-iam com o calor. Assim, em casa, não se faziam refeições. Ocasionalmente, Joana e os irmãos adolescentes, assavam fruta-pão ou comia-se algum peixe fumado ou salgado (raramente). A mãe estava quase sempre ausente, a trabalhar. Cada um comia por onde passava e como podia, durante o dia.259 Não deixa de ser muito significativa a imagem dos frigoríficos com chave e cadeado «como se fossem cofres, sendo a comida os tesouros», porém, muitas vezes vazios, conforme escrevi em Janeiro de 2014, no estúdio da cidade capital, onde também existia um mini frigorífico-cofre.

5.6. «Sair da humilhação»; «hoje já não há tanta vergonha nem o viver escondido»

José associou o facto de os cabo-verdianos e descendentes optarem por ter uma casa na cidade, enquanto recusa à associação ao trabalho de serviçal que os pais e avós desempenharam nas roças coloniais: « [os descendentes] dificilmente aceitam trabalhos na roça! Querem ir para a cidade, porque a gente lutou para sair da humilhação de nos dizerem que só devíamos trabalhar na roça. Houve monopólio durante muitos anos, raramente um cabo-verdiano conseguia sair». Falou da luta pela posse da terra, disputada entre «são-tomenses, sobretudo forros, e cabo- verdianos e descendentes, que começam a lutar pelos direitos, começam a adquirir mais terras, porquê? Porque eles arriscam! Até porque os são- tomenses criam obstáculos aos próprios são- tomenses! Na história de terra, tá a ver? E então os cabo-verdianos estão a lutar mais do que os forros, que os tongas, para conseguir. […] Sabes, hoje já não há tanta vergonha nem o viver escondido. Hoje os cabo-verdianos decidiram sair». O cônsul também se referiu à saída das

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O leite em pó é o mais comum e o consumido pelos mais pobres. O leite líquido só se vende nalguns locais, mais prestigiados, pois quem o compra tem onde o guardar.

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Nome local dado à eletricidade.

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Nos cafés do centro da cidade era também difícil encontrar comida fresca, devido à falta de eletricidade. Vendiam-se muitas bolachas Maria, simples ou em pacotes, bem como todo o género de doces.

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roças e ao seu significado: «A agricultura….já quase ninguém sobrevive, mas temos agricultura sim, para fins comerciais e agricultura de subsistência nas roças. E os descendentes já não querem agricultura até porque é uma própria recusa à condição de contratado! De ser explorado! […]. Os jovens não querem isso. Nós incentivamos os pais a porem os filhos na escola, educação! Mesmo apesar da independência, as pessoas não estão livres, enfim, grandes problemas nessas comunidades: o isolamento, as muitas doenças que encontramos […] a falta de condições básicas, luz, água, enfim. Não, essas pessoas não são livres».

Considero de extrema importância o facto de se utilizar correntemente a expressão «sair», revelando-se a necessidade de se deixar algo para trás, como o estigma de se ser cabo- verdiano «di tempo» e/ou de ascendência cabo-verdiana, ainda considerados gabões ou estangeiros. Esta expressão, que coexiste a par do igualmente usual «entrar no meio de»260 reflecte alguma mobilidade - geográfica, social e estatutária - e sobretudo a aspiração a essa mobilidade. São aspirações muitas das vezes projectadas nas gerações seguintes e/ou nos filhos mais novos, como pude observar. Como explicou José, ambicionar ter-se estudos, bons empregos, uma casa na cidade, acesso ao hospital, seria ambicionar ser-se são-tomense de plenos direitos; seria poder escolher não morrer a caminho do hospital, escolher estar-se «mais próximo do aeroporto» e deixar tudo para trás, escolher ter uma geladeira, que um dia talvez se consiga encher, o que na verdade é uma ambição de grande parte da população são-tomense, independentemente do estatuto étnico. Assim, as expressões «sair» e «entrar», relacionam-se com reivindicações de pertenças e acessos, no que respeita a um estatuto étnico mas também socioeconómico, muita das vezes transversais, como demonstrei.

5.6.1. «Cabo-verdiano hoje tem até certo ponto, voz!»

Esta saída far-se-ia através da prática de diferenciadas atividades ocupacionais, relacionadas, por exemplo, com a venda de produtos hortícolas não apenas na «comunidade da zona rural» mas que se trazem até à cidade,261 o que é entendido como demonstração de poder por parte dos cabo-verdianos e seus descendentes. Lembremos que estes não eram aceites no mercado da cidade até há bem pouco tempo e que ainda hoje aí continuam a ser alvo de discriminação. José explicou que os cabo-verdianos, hoje em dia: «vendem o que cultivavam lá, trazem para a cidade e familiarizam com os são-tomenses, através de venda e compra […]. Já não se

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É frequente ouvir-se: «meio di angolar», «estar aqui nesse meio [di roça]».

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Recorde-se a esposa do papá João, que ia e vinha diariamente, a quem Rosa comprava legumes pois dizia conhecer seu «modo de plantar».

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escondem tanto […].O forro queria cidade também, não queria roça. Cabo-verdiano não queria cidade porque se sentia inferiorizado, agora a ignorância vai diminuindo e a terra dá tudo, cabo- verdiano vende, também tem sempre um poder, não é? De poder vender o produto ao preço que quer e o forro é obrigado a comprar! [ri-se]». Sublinhou haver hoje «muitos são- tomenses a virarem-se para a terra. Agora mudou bastante. Nos últimos 3 anos, no máximo 5, há uma boa parte de são-tomenses a trabalhar na agricultura e na horticultura. Porque dantes […] a terra é vista como trabalho de cabo-verdianos, um são-tomense pensava num trabalho a nível de escritório, de burocracia e essa coisa toda. Cabo-verdiano hoje tem até certo ponto, voz! […].Um forro que tivesse curso nunca pensava viver na roça. Ao passo que hoje estão a comprar lotes, a fazer construções nas roças. Há algumas roças que com o coiso da privatização eles conseguiram, conseguem também comprar roça nalguns cabo-verdianos», disse orgulhoso.

5.6.2. «Já há familiarização»; o império no senso comum: «isto aqui era um jardim»

Este convívio entre pessoas de diferentes estatutos étnicos, através das atividades comerciais, de que falou José, sempre terá existido – tinha porém outros moldes - como demonstram autores como Eyzaguirre (ex. 1988), Seibert (ex.2001), Temudo (2008), Nascimento (ex.2002b). Em diferentes épocas históricas - como no presente - os mais excluídos, independentemente do estatuto étnico, aproximaram-se, nomeadamente através da atividade ocupacional e da zona de residência. O estatuto étnico «de origem» pôde e pode mesmo modificar-se – situacionalmente - como observei. Esta proximidade é inclusivamente notória através dos consumos alimentares. A este propósito, indique-se, por exemplo, como com o êxodo rural, os cabo-verdianos e descendentes passaram a plantar produtos como o milho, em torno da cidade, alimento que irá passar a fazer parte da dieta são-tomense «com a aproximação dos cabo-verdianos aos forros mais humildes» (cf. Tenreiro, 1961:186 in Nascimento 2007:59), o que aconteceu com outros práticas alimentares, como o uso da fuba ou a prática generalizada do consumo da cachupa. A par da proximidade entre forros e cabo- verdianos, também observei proximidades entre pessoas de estatuto forro e angolar, como entre pessoas de estatuto angolar e cabo-verdiano, o que também foi observado pelos autores acima citados, quer em

diferentes momentos históricos quer no presente.262 Relembro Bebiana, que não conseguiu um

lote de terra na roça onde vivia, apesar de aí ter trabalhado a vida toda enquanto contratada.263 B. migrou para a cidade, onde construiu uma humilde casa, onde habita com os seus filhos mais novos. Passou a fazer várias viagens ao Príncipe, onde aprendeu a salga de peixe com «as

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Temudo escreveu sobre o modo como na actualidade «forro tá a virar angolar, forro tá a virar cabo-verdiano», expressão ouvida aos seus interlocutores (2008:78-79).

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Não conseguiu lote pois «quando gente dividiu terra eu já era reformante,, não davam. E nós que veio com pai e mãe não pode tomar!» contou.

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angolares aí» migradas, produto que vendia no mercado da cidade de São Tomé, apesar de o salgar noutra ilha,264o que deixou de fazer na atualidade, encontrando-se numa situação de grande fragilidade. Afirmou que «agora»265estava ainda mais pobre que no passado, que já nem em convívios participava, já só tendo amigas de estatuto angolar, o que referenciou como indicador da sua situação de vulnerabilidade, reproduzindo o estereótipo negativo em relação às mesmas. Bebiana contou ainda que conseguiu estudar até à 3ª classe já em adulta, nas aulas à noite a que assistiu na sua roça, com a independência: «depois com o 25 de Abril é que abriu escola pública do Estado na roça, a minha irmã mais nova e esse meu irmão é que tem mais estudos». Também Bebiana, como outras pessoas de diferentes estatutos étnicos, socioeconómicos e percursos de vida, descreveu «o império no senso comum» (Peralta e Domingos, 2013:XX): «Quando eu trabalhava na roça gente trabalhava, Estado mandava comida para a roça, gente não tinha reclamar de nada. Agora já não sei contar vida de roça, desde que dividiram lote eu não tive lámais. Antigamente cidade era limpa, roça tinha tudo, gente vivia lá, comprava comida lá mesmo […]branco matavam porco ou vaca e dividiam para trabalhador, davam ração, roupa, sabão, dava comida. Azeite. Patrão dava. Maltratos era pessoa mais velha, quem vinha contratado de terra, havia maltratos de contrato, mas isso eu já não cresci a ver. Só ouvi contar. Que davam pessoa chicote. Criança chora não pode dar mama. Coisas assim. Tempo de castigo eu já não encontrei, em 1964, eu só ouvi […] Tempo dava para comprar muito mais que agora! Agora tudo é caro!». Se por um lado «nem mama se podia dar a certa hora», por outro, reclama-se da ausência de condições na atualidade, como já referido atrás. É importante dizer que as memórias do passado coincidem também com as memórias da juventude e da criancice, e isto é importante ao analisarmos tempos passados. Relembro aindaNascimento ao afirmar que os cabo-verdianos «dizem que não apanharam, asserção a que subjaz uma valorização da sua dignidade de segundos europeus»266de Cabo

Verde «uma terra diferente» próxima da europeidade, e «ainda uma apreciação da sua ética tendencialmente coincidente com a do colonizador», muito relacionada com a identidade de trabalhador e em especial de trabalhador agrícola (cf.2007:22).

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«Eu ia para o mercado todos os dias: comprava peixe no Príncipe, salgava, vendia em São Tomé. Eu gosto muito de trabalhar com peixe salgado. A gente guardava o peixe lá, num senhor, no armazém do mercado, pagava x por dia», contou.

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Agora que estava mais velha, com menos forças, com menos capacidade de trabalho. Bebiana deixou a certa altura de ir para o Príncipe salgar o peixe e trazer para a cidade de São Tomé, por ter perdido o filho mais novo num acidente de barco que liga as duas ilhas, acontecimento que a marcou profundamente. Dois dos seus filhos mais velhos, acabaram a viver no Príncipe, onde são pescadores. Tem também irmãs e um filho emigrados em Luanda e um sobrinho no Senegal. Uma das suas irmãs é candongueira entre São Tomé e Luanda «vai e vem, vai e vem». Disse ainda ter muitas amigas emigradas, em Portugal, Angola e Cabo Verde.

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Seriam cidadãos do império, portugueses, tal como os são-tomenses, o que os distinguiria dos «indígenas» do continente, os que «sujam a cidade».

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Ouvi muito a frase: «isto aqui era um jardim», dita por pessoas de diferentes estatutos étnicos e socioeconómicos, desde Rosa, cujo pai foi torturado, a Bebiana, cuja mãe trabalhou arduamente nas roças de cacau e café, a Rui, cujo pai foi torturado pelo colono ficando sem sola nos pés. Foi este último quem disse, referindo inclusivamente a diferença de tratamentos pelos portugueses, razão pela qual defendia a Independência não total, para se facilitarem os processos migratórios, criticando ainda a classe política do seu país: «Depois da independência perde o vínculo, por essa razão se nós hoje queremos ir a Portugal temos de pedir o visto! Se nós tomássemos a independência não total para irmos a Portugal, só comprávamos o bilhete. Eramos a colónia mas sem o vínculo da política. Se tivéssemos o aval, não me lembro do nome disso, já teríamos outro tratamento com os portugueses. […]. Mas é verdade que é passado e hoje estamos de parabéns, pois somos livres e independentes, escravos e maltratado pelos próprios nacionais, psicologicamente. Não estamos péssimo mas devíamos estar melhor. Aqui deveria ser um jardim! Nossos governantes, quando vem gente importante eles pintam parede, com cal, tinta branca, escolhem estrada que essa entidade pode passar, para não ver defeito da casa, que a casa esta rota, só falta cair! […].1975 nós tínhamos mais de 5 hospitais: Ayres Menezes, Agostinho Neto, Monte Café, Agua-Izé e do Príncipe que ainda existe. De 1991 para aqui desapareceu-se tudo! Só ficou o Ayres de Menezes para todo São Tomé». Rosa e Arlindo dirão o mesmo, referindo-se, tal como Rui, às estruturas espectaculares que eram as roças feitas pelos brancos «eles sabiam mesmo disso», e que agora estavam em ruínas, tal como o próprio povo, como referiram num passeio conjunto que fizemos ao sul: tudo os incomodava, as casas, as roupas das crianças. Quando chegámos à aldeia da Praia Pesqueira, saímos do carro e muitas crianças nos foram pedir doces. Rosa disse «ai coitadinhos, ai coitadinhos! tão a pedir doces, coitadinhos», dando-lhes bolachas muito incomodada, tal como Arlindo. Rosa disse ainda: «Arlindo, vê como está nosso povo! O nosso governo, povo tá a viver assim, ninguém faz nada. Olha as casas, cai chuva, Ai!». Entrámos no carro em direção à Praia Piscina, onde iríamos fazer um piquenique com comida que levávamos de casa. Rosa e Arlindo começam a recordar como «São Tomé e Príncipe já foi um jardim», como as roças eram «grandes infra-estruturas, tinha até bois! E caminho-de- ferro! Grandes casas! As estradas eram calcetadas, a entrada das roças! Não tá a ver como já era resistente? Durou até hoje! Tal como ainda há gradeados! Tem calçada que ainda tá boa!», ignorando-se os seus habitantes e como viviam, ontem como hoje. Arlindo contou que «Eu vi roça que tinha pomar bonito mesmo. Eu vim a conhecer flores na roça, tudo muito bonito, organizado. Era encantador». Domingos e Peralta explicam como essa estruturas das roças agora destruídas como que servem de esqueleto que segura uma ideia de império difundida no senso comum e que coexiste com discursos contraditórios, como

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observei. Segundo esses autores: «Através da construção do espaço ou de uma arquitetura monumental» - que podem ser as roças, os hospitais, os caminhos-de-ferro, o cinema, as estradas, o liceu nacional, a sé catedral, as estátuas junto ao museu, o museu - «o império adquiriu uma feição material no quotidiano urbano, permeando o imaginário coletivo nacional e sustentando as acepções do senso comum sobre o passado imperial português, até aos dias de hoje», quer seja em Portugal como nas antigas colónias (2013:XXVII). Tudo isto, argumentam, pode ser encontrado em contexto pós-colonial «quer na cultura pública, quer em lugares inesperados do quotidiano e na esfera do mundano, mostrando que os entendimentos comuns em relação ao Império, no período pós-descolonizações, se articulam com uma variedade de canais e instituições», pois a «nostalgia em relação ao que foi o Imperio, expressa nomeadamente em património que está agora decadente ou em ruína e mesmo em coisas como os hábitos alimentares» (ibid:XXXII-XXXIII). Vale de Almeida chama-lhe o «luso- tropicalismo do senso comum», referindo-se a este tipo de afirmações de grandiosidade acrítica conforme o que observou no contexto brasileiro (2000:161). Recordo como Rosa falava do tempo do chicote267 na escola primária onde andou, o que criticava e o que elogiava em simultâneo, por achar simbolizar «a ordem e a organização» pois «eramos muito obedientes. Desobediência? Antigamente não havia! Bem uniformizados mesmo», referiu reproduzindo um discurso que se ainda se ouve tanto em Lisboa, como em São Tomé.

Voltando à atividade ocupacional ligada ao estatuto angolar. Como referi atrás entrevistei e convivi em 2012 e em 2014, bem como em 2004 (Feio, 2008), com uma série de forros que desempenhavam a atividade de pescadores, por exemplo na Praia Gamboa, localidade perto da cidade e do aeroporto, que não conhecia anteriormente. Conforme o que observei, os forros de Praia Gamboa268nunca adquiriam estatuto de angolares, ao contrário do que observei noutras localidades e entre pescadores de outros estatutos socioeconómicos e étnicos «de origem»,269como numa praia perto de Neves, análise comparativa que desenvolverei noutro lugar. Relembro ainda a realidade das pessoas que têm diversos estatutos étnicos, como Arlindo e como o deputado cabo-verdiano que se identificou com angolar, para ser considerado são- tomense.270 Os próprios José e Maria, ora se identificam enquanto cabo-verdianos e ou

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Relembro o uso do chicote com que humilhava o seu sobrinho.

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Onde Gustavo e Arlindo têm familiares. Bebiana contou que no Príncipe «gostam muito de falar crioulo, gente expressa em crioulo. Quando fui para Cabo Verde também falava crioulo só».

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No que diz respeito aos ascendentes.

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Foi a sobrinha de Maria quem me falou desse deputado, descendente de cabo-verdianos e diretor de uma conhecida empresa de cervejas. Joana conheceu-o na campanha pelo MLSTP. A. cresceu numa roça, a sul, tendo estudado em São João dos Angolares. Foi auxiliar de feitor «um cabo-verdiano, era analfabeto». A.designava-se são-tomense, «nacional», através da angolaridade: «cresci com eles, estudei com eles, gosto muito dessa gente, eu também me considero angolar». Contou que os pais «vieram escravos», e que não tiveram direito a lote de terra

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