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Proximidade e distância entre pessoas com o mesmo estatuto: quem pode ser um cabo-verdiano de óculos

CAPÍTULO 3 NO QUINTAL DE DONA ROSA: APRESENTAÇÕES E O QUOTIDIANO

5.10. Ir a Cabo Verde mas voltar a São Tomé: «este país não é para velhos»

5.11.2 Proximidade e distância entre pessoas com o mesmo estatuto: quem pode ser um cabo-verdiano de óculos

A par do discurso da mistura, existe o afastamento entre pessoas pensadas enquanto«perigosamente próximas», como também já referi em relação a Maria e José. A este

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Link da notícia: http://www.stpmais.com/andimtv/index.php/player/stpmais/feirantes-manisfestam-em-frente- da-camara-distrital-de-grande

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Em crioulo forro, que traduziria por «Então?» ou «o quê isto?! Que abuso é este?!».

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propósito, recordo uma noite, em casa de Rosa, todos juntos ao jantar. Maria ao ver chegar José,

com os óculos novos colocados,292 referiu em tom de gozo: «Um cabo-verdiano de óculos?! É

um cabo-verdiano esperto!», comentário que provocou a risada geral. Como nos relembra Eriksen, muitas das vezes os estigmas étnicos podem ser explicitados por vezes em modo de «joking relationships» (1993:22). Um cabo-verdiano de óculos iria contra a versão hegemónica, incorporada pelos próprios «catalogados», de que o cabo-verdiano seria suposto trabalhar na terra, um trabalho manual. O trabalho que exige óculos, seria um trabalho de leitura, de escritório, não de agricultura, portanto um cabo-verdiano não usaria óculos. Os óculos não graduados – por vezes vendia-se apenas a haste - eram vendidos no mercado da cidade e por vendedores ambulantes. Julgo que esta moda, cada vez mais comum em STP, tem muito significado e prende-se com a reivindicação de novas oportunidades e identificações: um cabo- verdiano pode sim fazer trabalho de escritório e numa repartição pública da cidade. A este propósito, chamo a atenção para o trabalho do artista queniano Cyrus Karibu, que elabora objectos híbridos, óculos que se misturam com máscaras, a partir de material eletrónico deitado no lixo. Este jovem artista visual, como se define, conta que sempre quis usar «real glasses», mas que o pai nunca o deixou, tendo sido esta a motivação para começar a criar os seus modelos alternativos de óculos, reunidos em portefólio online.293

5.11.3. «Mas não são os produtos do mercado!»; «Comprar na mão de ´quem`»

Relembro as afirmações de um membro da elite política que categorizou, em entrevista«diferentes camadas e níveis» da sociedade são-tomense, tendo em conta as atividades socioeconómicas praticadas, dos políticos aos vendedores, também hierarquizados consoante o tipo de produto vendido. Para este, como para muitos, certo tipo de produtos seriam típicos do mercado da cidade, vendidos por «forros genuínos», enquanto outros produtos, trazidos para a cidade por «outro tipo de gente», teriam o estatuto de produtos pouco recomendáveis - e até falsos – que revelariam «a natureza» e o estatuto de quem os vendia. Recordo o episódio do rádio onde ouvirei conjunto, o qual não poderia comprar nas mãos «dos nigerianos do mercado», pessoas de ´ascendência duvidosa`. Estes poderiam como que contaminar o produto que vendiam, quem sabe até distorcer a música ouvida através do aparelho, a essência do próprio conjunto, música de forro genuíno e di tempo. O rádio, como muitos outros objectos e como certos produtos alimentares, se vendidos pelas mãos ´erradas`, passaria a ter o estatuto de cópia falsa e contaminadora.O rádio onde se ouve conjunto, terá de ser vendido pelas mãos de pessoas de estatuto forro, «verdadeiros» são-tomenses.Assim, certos produtos são considerados de loja, e

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Nunca mais o vi de óculos.

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só aí poderão ser adquiridos, por oposição aos produtos que só poderão ser adquiridos no mercado, como plantas medicinais, como explicou Rosa, sendo a divisão muito clara. Esta era muito rigorosa na selecção dos locais onde fazia as suas compras, como se verá.

A cada lugar equivaleria a um tipo de produto, dando-se muita importância aos lugares de venda, à ascendência de quem vende o quê, como se estes critérios validassem a qualidade, a genuinidad e a pureza do produto, o que nos remete para a íntima relação entre categorias/estatutos e fronteiras sociais e corporais, como tenho vindo a exemplificar (cf. Douglas 1966 in Harrison, 2007:93).294

«E depois agora surgiu um grupo de gente que vende no mercado mas não são os produtos do mercado! Que em termos normais se encontra nas lojas! O arroz, feijão, óleo, pão, um pouco de tudo fazem agora essa venda, normalmente homens. É recente é!» e pouco aceitável, como também referiu Hélio (capitulo 4), sobre os homens que agora vendem no mercado «de calção». Outra entrevistada da elite política dirá o mesmo: «O que não se adequa à nossa forma de estar! Por exemplo eu vejo nos mercados, a venda de medicamentos na rua, nunca fizemos e sempre rejeitámos, é na farmácia que sempre fomos comprar. Dizer palavrões na rua, urinar na rua! Isso nunca fez parte de nós! […]», referiu.

Um dia, depois de uma tarde de entrevistas numa roça perto da Trindade, disse a Rui, com quem estava, que precisava de comprar legumes para fazer uma sopa. Assim, quando passámos à beira de uma banca de estrada, pedi-lhe que parasse o carro, para eu poder comprar os legumes antes de voltar para a cidade. Rui fingiu não me ouvir, pelo que repeti, obtendo a mesma reacção. Rui só voltou a ´adquirir a capacidade de audição` quando já estávamos muito distantes dessa banca. Voltei ao assunto: «pedi-te para parar […] ali atrás está uma vendedora, os produtos têm bom aspecto», ao que este respondeu não ter ouvido por estar «a pensar noutra coisa». Acrescentou que sabia de uma outra pessoa que vendia legumes, também na Trindade. Perguntei-lhe se poderíamos voltar atrás, à outra banca, pelo que voltou a não ouvir e nunca me quis explicar o sucedido. Acabei por comprar os legumes na banca da senhora à qual me levou. Sem perceber o que se passou, coloquei a hipótese de esta última ser sua conhecida, da sua confiança e relações, ao contrário da outra, talvez alguém que considerava «cabo-verdiana di roça», como tantas vezes o ouvi dizer em tom depreciativo. O que é facto, é que acabei por

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Douglas, autora do clássico Purity and Danger (1966) estudou precisamente as significações da categoria «sujo» em diferentes contextos, analisando os rituais de pureza e poluição, do que falarei melhor no capítulo seguinte sobre práticas alimentares e outros consumos, nomeadamente em casa de Maria, mas também protagonizados por Rosa, Rui, entre outros.

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comprar «na mão de pessoa» que ele quis.295

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