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Dos contratos ou das estórias de amor interrompidas;não saber viver «fora da roça»

CAPÍTULO 3 NO QUINTAL DE DONA ROSA: APRESENTAÇÕES E O QUOTIDIANO

5.10. Ir a Cabo Verde mas voltar a São Tomé: «este país não é para velhos»

5.10.1. Dos contratos ou das estórias de amor interrompidas;não saber viver «fora da roça»

Sousa chegou a São Tomé nos anos 60, vindo da ilha do Fogo. É dono de uma pequena loja de roça, onde também vive.282 Construiu um andar subterrâneo, onde aluga quartos a quem precisar, para «entrar mais algum». Na loja, vendia pão com manteiga, entre outras coisas. Fiz- lhe muito poucas perguntas, ou quase nenhumas, pois Sousa contou a sua história de enfiada, sempre em crioulo de Cabo Verde. Exaltou-se, levantou-se da cadeira onde estava sentado e aumentou o tom de voz, ao falar de Amílcar Cabral e da sua mensagem, que muito louvava. Também me falou da guerra de Biafra. Disse muitas vezes isto: que veio como escravo, subindo de novo o tom de voz. Contou, chorando, como deixou para trás a mulher e os três filhos, um deles ainda por nascer. Ele e a esposa tinham casado há 3 meses. Veio para São Tomé para ganhar algum, pois a fome apertava, tendo planeado regressar, depois do contrato, o que nunca aconteceu: o avião não chegou, nem o dinheiro para a passagem. Contou ainda que em São Tomé não voltou a ter filhos. Há uns anos atrás, um repórter da RTP-África que o ouviu, conseguiu localizar a sua família de origem. Viviam todos em Boston, nos Estados Unidos: a esposa, os filhos, os netos e os bisnetos. Contou que os jornalistas lhe pagaram a passagem para os EUA, há um ano atrás, que tinha tido poucos dias para se preparar: apressado foi à cidade onde mandou fazer um fato à medida, pois não queria reencontrar a esposa de qualquer maneira. No mercado da cidade, comprou um chapéu e uns óculos escuros, tendo tirado o retrato num estúdio da capital, antes da partida. Viveu em Boston 6 meses, repartindo a estadia pela casa dos 3 filhos, porém nunca conseguiu ver a esposa, uma vez que esta se escondeu sempre dele,283 com o peso da vergonha de ter voltado a casar, por o ter

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Dantes vivia noutro local, fora da roça e tinha uns campos que vendeu. Explicitou alguma raiva face aos forros.

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julgado morto. Era também já viúva do segundo marido, de quem teve mais 2 filhos. Contou extremamente emocionado, uma lágrima atrás da outra, que isso não tinha importância alguma, que era normal, que a percebia e a perdoava, que só a queria rever e dizer-lhe que estava tudo bem, palavras que lhe deixou numa carta que entregou aos filhos, tendo voltado para São Tomé. Mostrou-me a sua casa e um dossier bem cuidado, onde guardava a certidão do seu casamento e as fotografias dos filhos, dos netos e bisnetos, soletrando os seus nomes de cor, muito orgulhoso. Espantei-me por ter deixado Boston. Contou que não se habitou a estar fechado num apartamento, que se sentia preso,todo o dia à espera que os filhos regressassem do trabalho. Disse que voltou para São Tomé porque já não sabia viver fora da roça, por estar acostumado a «ambiente aberto».

5.11. «Eu já trabalhei na roça já! Agora eu também vou vender peixe»;da mistura

A presença dos cabo-verdianos e dos seus descendentes na cidade (bem como dos angolares), e inclusivamente a sua atividade de venda de produtos no mercado da capital, são sentidas enquanto uma ameaça contagiosa, devido ao que seriam os seus hábitos «de roça». Bebiana contou que quando vendia peixe salgado: «pessoa ignorante, no mercado, lá no meio mesmo, fica a chamar pessoa! Chama a gente de Cabo Verde! forro, angolar, diziam cabo-verdiano é para ir para a roça trabalhar!», ao que esta respondia: «eu já trabalhei na roça já! Terra que tá lá agora é de vocês! Vão trabalhar lá também! Agora eu também vou vender peixe aqui com vocês, que a minha parte de roça eu já trabalhei!». Reforçou porém que «nem toda a pessoa, só os ignorantes fala essa coisa. Hoje em dia é tudo colega», referindo-se à proximidade de estatutos. O mesmo nome «Cabo Verde!», gritavam aos pais de Alberta, que respondiam deste modo: «Cabo Verde é uma terra! Não é nome de gente!» contaram, insistindo na ignorância de quem profere estas ofensivas.

Bebiana apontou uma maior abertura caracterizadora do presente, tal como fez José, Arlindo e tantos outros: «Tempo quem era de roça, era de roça mesmo, vinha para a cidade fazer compra ia embora, hoje já não é assim. Tempo gente de roça não vinha vender no mercado! Gente de cidade ia à roça comprar coisa na roça e vender mercado! Ninguém de roça, tempo branco, vinha para o mercado vender!». Sublinhou também a «maior mistura» existente nas roças, nas vilas, na cidade, nos subúrbios da cidade, partilhando-se um modo de vida«desenrascado»: «São Tomé é um país que tá em desenvolvimento…vivemos desenrascado! Cabo-verdianos em São Tomé e Príncipe é uma raça que trabalha muito mas ganha mais pouco […] agora já tá

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tudo misturado, já tem cabo-verdiano na cidade, dividiram lote, cada um tá trabalhando seu lote à rasca, à rasca, os que tem lote». Também hoje na sua roça, uma antiga sede «tem grande mistura. Toda a raça que vivia em São Tomé vivia lá. Do outro lado era só angolares, tem forro, tem tonga, tá tudo misturado», referindo-se à sua roça depois da independência. Acrescentou que «Depois do 25 Abril a gente jogava à bola junto, íamos ao teatro junto, não tinha distinção não! Os únicos que ficavam mais afastado eram filho daqueles mais pretos, que trabalhavam oficina, forro, que filho ficava mais lá para chalé! Não vinham para a sanzala! Esses encarregados de secador e isso, de oficina, tinham separação, não iam sanzala. Sanzala era todo os trabalhadores do mato. Mas mesmo assim esses filhos de forro que não vinham brincar nós eramos amigo, se eles me virem na estrada ate hoje eles me chamam, chama e cumprimenta, até hoje». No que toca à afirmação de «maior mistura», apesar da distanciação e diferenciação de estatuto, que também reconheceu, salientou-a em relação à salga de peixe no Príncipe e consequente venda no mercado, onde se encontravam pessoas de todos os estatutos étnicos. Elogiou o bairro onde habita, por considerá-lo «ainda calmo, distante da estrada», repetindo que «aqui tem toda a raça, angolar, forro, cabo- verdiano, tonga», ao contrário do que aconteceria no passado. «Aqui dantes era mais só cabo- verdiano e tonga. Mas depois misturou tudo. Praticamente toda a zona de São Tomé tá misturado. Dantes havia zona que era só tonga mesmo, outra que era só cabo-verdiano memo, mas com o descer de roça, começou a aproximar, a comprar terreno [na] mão de pessoa. Angolar também saiu de praia para vir comprar coisa. Porque aqui tinha campo e cabo- verdiano gostava e eles vinha fazia casa e começa a fazer campo. Depois começou a encher de casa. Depois uns começou a ir embora, a vender casa, forro começou a entrar meio de cabo- verdianos que agora quase não tem cabo- verdiano mais! beira de cidade284 era mais cabo- verdiano, tonga, alguns forro mas muito raro. Cidade próprio era mais branco, casas de branco, loja de branco. Forro vivia em Trindade, Batepá, Madalena, Ótótó, Almeirim, Caixão grande, Bombom»,285referiu salientando algum sentimento de disputa por territórios e ocupações bem como uma proximidade estatutária ao nível étnico e socioeconómico. Recordo que as irmãs mais velhas de Bebiana não migraram e continuam a viver na roça, onde esta tem muitos outros familiares e «muitos amigos, tenho lá comadre, tenho lá compadre», como indicou. Em relação ao recorrente discurso da mistura, interpreto-o enquanto uma reivindicação de proximidade de estatutos e acessos, como tendo vindo a demonstrar, tendo no entanto diferentes significados. Lembremos como para Rosa essa mistura é vista como algo negativo e a evitar e que denotaria uma mobilidade descendente.

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Beira da cidade, por oposição a «dentro» da cidade, ao «estar na cidade mesmo».

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Alberta também se referiu à proximidade através de práticas de união, comidas e práticas linguísticas: «já não há diferenças, todos iguais, tudo misturado! Tempo era diferente, agora não. Não tem mais diferença. Tempo? Angolar não gostava de cabo-verdiana, forro não gostava de cabo- verdiana. Angolar não gostava de tonga! Forro não gostava! Agora já tudo misturado. Hoje forro toma cabo-verdiana. Hoje tudo é igual. Nós cabo-verdianos temos nossa cachupa,286que é muito diferente da cachupa dos forros. Mas muitos forros gostam de nossa cachupa! O calulu, nós cabo-verdianos também sabemos preparar. Peixe com banana,

cabo-verdianos podemos preparar. Molho no fogo também. Azágua287também. Tudo nós

sabemos preparar. […]. É como músicas, eu gosto, eles também gostam. É igual. Tá normal. Hoje há são-tomenses que até percebem o cabo-verdiano». Os seus pais, presentes durante a entrevista, concordaram.

5.11.1. «Não há diferença não!», dos «desabituados da vida citadina» que vêm sujar o mercado

O discurso do «tá tudo misturado» equivale, no meu entender, a uma das frases mais ouvidas em contexto de entrevista: «não há diferença não!», proferida sobretudo entre pessoas inseridas nas categorias mais desprestigiadas, mas não exclusivamente. Seriam afirmações de «semelhança», de reivindicação de estatutos similares e de acessos e posições de maior poder, que equivalem muitas das vezes a estratégias de desetnicização entre as camadas mais populares, de modo a fazer-se face à discriminação de que foram e são alvo.

Bebiana referiu, no seguimento de José e de tantos outros, que as pessoas têm de vir viver para a cidade, pois «no interior não há trabalho, gente tem de fazer negócio, para estar lá a viver, gasta tudo em transporte!». Reproduziu porém a afirmação de que a «cidade tem gente a mais», um discurso hegemónico incorporado, proferido inclusivamente pelos responsáveis da Câmara Distrital de Água Grande, bem como nos meios de comunicação social. A Câmara Distrital de Água Grande, em Dezembro de 2015, quis obrigar [algumas] das vendedoras do mercado da capital a pagarem um imposto,288 apesar de estas já terem o seu lugar de venda reservado, enquanto forma de as demover de «vir vender na cidade». Em resposta, registou-se uma manifestação por parte das vendedoras, recém chegadas das roças, de madrugada, o que faziam

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Prato associado à cabo-verdianidade. Note-se que Rosa também faz cachupa.

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Prato, tal como o calulu, associado à forrosidade.

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O imposto remete-me para um ideário quase neocolonial, remetendo-me para a realidade colonial do imposto exigido para se «entrar na cidade […] tinha de vir com sapatos, tinha de pedir autorização para entrar na cidade, não é qualquer um não!» recordaram Rosa e Arlindo.

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diariamente. Acompanhei esta notícia através dos jornais online:289os membros da Câmara, alegaram que essa medida foi tomada «por razões de estética» e em favor «da higienização» da cidade, com o objectivo de tornar a zona em torno do mercado, mais apetecível para os turistas. Este é um discurso comum: «vêm da roça, ficam lá no mercado, tudo sujo, que imagem damos do país? Que imagem passamos para os turistas?», referiu, por exemplo, Gustavo. Acrescentou que «essas pessoas são desabituados na vida citadina […] arrastam consigo os maus hábitos e sujidade nas ruas», referindo-se aos restos de comida nos passeios do mercado, o que por sua vez atrairia inúmeros cães vadios. Não resisto a comentar que a solução poderia passar, no meu entender, por se criarem mais lugares de revenda, mais hipóteses de escoamento dos produtos agrícolas, bem como apostar-se na manutenção de limpeza do mercado diariamente ao fim do dia e nunca impedir o acesso às «vendedoras das roças» com base em argumentos discriminatórios. Ainda a este propósito, recordo o discurso de Beatriz, uma forra de classe média, que considerava, como muitas outras pessoas (ex. Rosa), a cidade enquanto «lugar de pessoa de certo nível». Beatriz falou-me de um episódio no mercado, a que assistira há bastante tempo atrás: «uma vez fui ao mercado, há muitooos anos, lá onde estão aquelas mulheres todas, que vêm das roças. Uma cabo-verdiana pôs a carga dela à frente de outra, são-tomense. Esta disse ´kê kuá?!!`,290ou seja cabo-verdiana é para ficar na roça! Vêm aqui pôr carga à frente da minha?!», e riu-se muito. Contou também outro episódio revelador da vontade de categorizar as pessoas hierarquicamente por «origem e ascendência», o que lhes traria mais ou menos direitos, discriminações dirigidas aos considerados gabões mas também aos angolares: «Uma vez a minha avó foi ao mercado. Ela costumava contar esta história e nós riamos. Houve uma discussão qualquer no mercado e a minha avó disse ´n´golá291 di merda!`. E a mulher angolar respondeu em crioulo [forro] ´Já não bastava chamar-me angolar? Ainda tinha de pôr merda em cima?!» concluiu Beatriz, rindo-se muito. Repare-se como a prática linguística desta senhora de estatuto angolar, no mercado da cidade, era falar o forro, língua que certamente esta associava a um estatuto mais valorizado, mas que outros, como Rosa, associam, em certos contextos, a um estatuto mais popular, como tenho vindo a exemplificar.

5.11.2 Proximidade e distância entre pessoas com o mesmo estatuto: quem pode ser um

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