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CAPÍTULO 3 NO QUINTAL DE DONA ROSA: APRESENTAÇÕES E O QUOTIDIANO

3.5. As visitas diárias ou quase diárias: Arlindo, José, Maria

Como já referi, uma das visitas mais assíduas do quintal de Rosa - ali almoçava e jantava todos os dias - era um empresário da construção civil, Arlindo, de 40 e poucos anos, «misto de angolar e forro». Este estava a apoiar a construção da casa de Josefina, numa das zonas mais prestigiadas da capital, onde o próprio residia. Arlindo é casado: a sua mulher estava em

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Tinha alguns problemas de saúde que exigiam vigilância regular. Frequentava médicos em Lisboa e também em Paris, e em 2015, estava a pensar em fazer um seguro de saúde em Portugal. Quando se encontrava «na Europa», aproveitava para ir a Londres visitar a irmã e o sobrinho estendendo a sua estadia para pouco mais de 1 mês.

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Portugal há três anos, país que Arlindo visita anualmente. Conheceu Rosa por intermédio da esposa pois ambas frequentavam a igreja e faziam parte do mesmo grupo coral da prestigiada sé da cidade capital. Arlindo conheceu Maria e José na casa de Rosa. José, Maria e Arlindo conhecem Rosa e a família há cerca de 6-7 anos. Rosa também cozinhava todos os dias para uma das suas sobrinhas, muito vulnerável a nível socioeconómico, sendo que era uma criança (seu filho) que vinha buscar a refeição distribuída por caixas, o que descreverei mais à frente. Passemos a apresentar Arlindo, que nos presenteia com várias histórias ao serão, descritas e analisadas em pormenor noutro capítulo.

3.5.1. Arlindo: «estou entre o forro e o angolar»; «meu pai era pessoa de outro patamar»

Arlindo situa-se entre categorias, como muitos outros interlocutores:87 «Eu estou…bom [riu- se] eu estou entre…forro e angolar. Um forro assim diluído um bocado, mas eu estou entre forro e angolar.» A nível de fisionomia já se considera «mais próximo do forro. Mas há pessoas diz que pareço nigeriano88[riu]. Ela [a sua esposa] é descendente, tonga de Angola e do Príncipe», referiu em contexto de entrevista, em 2012. Arlindo nasceu em «zona», expressão local para designar espaço «que não é roça», equivalente a vila ou aldeia. Porém, com 4 anos, foi viver numa dependência de uma roça, para a qual o seu pai foi «chamado para feitor», no período da independência, tendo-se para aí mudado com a sua segunda mulher e alguns dos seus filhos. Arlindo contou que não havia escola na roça, pelo que por volta dos 8 anos, voltou a ir viver com a família materna, na zona onde nasceu, para poder estudar. Arlindo revelou ainda que teve uma infância muito infeliz, palavras suas, sobretudo devido à pobreza por que passou. Destacou porém a ocupação do pai, pois «quando se era feitor naquele tempo, feitor geral, é pessoa de um patamar diferente, que as pessoas também aproximavam e coisas assim». Contou como o pai «morreu na pobreza, sem nada», o que atribuiu ao facto de este ter tido «13 mulheres e quase 30 filhos e dava coisas a todas as mulheres. Ficou sem nada!». Arlindo tem «4 irmão em Cabo-Verde! Meu pai teve 4 filho com uma cabo-verdiana, uma cabo-verdiana que tava cá, então, estão em Cabo-Verde […] desses todos meus irmão, eu sou o que tenho mais estudo. É. São 14 irmã, nós damos muito bem, eu gosto muito delas todas». E continuou, dando destaque à posição do pai, o que de certo modo me surpreendeu devido a outras suas afirmações, como se verá: «Meu pai era feitor, sabe o que é feitor? Numa empresa, é o chefe, depois tem o capataz, tá abaixo dele, ele é que dava ordens, tá a ver? Ele é que vivia na casa do…[calou-se, ia dizer casa do branco][…].Mas antes da independência, ele sempre trabalhou

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Tal como afirmou um deputado que disse ser «angolar-cabo-verdiano», a quem me refiro num capítulo posterior.

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muito, como capataz, nas roças do branco [...]. Tinha a 4ª classe, ele já tinha outro conhecimento, um bocado de estudo [...]. Branco dava ordem para fazer o trabalho, e depois ele dizia assim ´deixa os homens comigo` [imitou um tom de voz calmo, sedutor], se branco dava ordem, trabalho não avançava! [referiu, orgulhoso], mas com meu pai, sabia como motivá-los para o trabalho [...]. Feitor naquele tempo era português, meu pai dizia ´deixa comigo, esses homens, deixa comigo` e trabalho avançava, e hoje, muita gente trabalhou com ele naquela época, quando me veem sempre falam ´epá, teu pai foi muito bom homem, teu pai foi muito bom homem`».

3.5.2. «Ninguém repara de ti e você vai crescendo, eles vão-te notar, quem é esse gajo pá?!»

Arlindo relatou vários episódios de discriminação pelos quais passou e concluiu: «tem um filósofo indiano que diz ´você quando nasce você é invisível`, eu tenho dificuldade em pronunciar o nome, há Neru e há Nerú, é Nerú, não é? Eu fui assim, nunca tive família de nome importante. Tem o Gandhi…se calhar era o Gandhi que dizia ´ninguém repara de ti, e você vai crescendo, eles vão-te notar, quem é esse gajo pá?!`. Depois eles vão…invejar-te, depois, eles vão lutar contra ti, e quando eles não conseguem-te vencer, eles vão-te respeitar. E minha vida é isso».

Arlindo tem muita família de e em Praia Gamboa, da parte da mãe. O seu avô materno era pescador «de canoa e a avó vendia peixe, [era] palaiê»,89 profissões associadas aos angolares. Afirma-se por isso, como referi, «forro com uma mistura de angolar, angolar da parte de mãe, mãe tá mais próximo de angolar, tá a ver? Há uma mistura…e… pai, é mais forro, porque o meu avô, pai do meu pai, é mesmo forro. Depois, mãe do meu pai é que é capaz de ter algum traço de angolar. [É de] zona de Santana, misturado com pessoa que veio lá do sul», de onde vem angolar memo, como se costuma ouvir. O seu avô paterno «é forro memo, era agricultor e alfaiate. O pai desse avô, veio do Brasil, e também tem mistura de coreano. Aquele [o bisavô] até já tem [tinha] cabelo de mulato. É mulato. Não tem cabelo assim [aponta para o seu], tem cabelo de mulato. Tá a ver? Tinha cabelo fininho».

3.6. O cabelo que se mostra, o cabelo que se esconde – representações de uma certa

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