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CAPÍTULO 3 NO QUINTAL DE DONA ROSA: APRESENTAÇÕES E O QUOTIDIANO

3.13. Keep-while-giving: estratégias profundas de retenção

Pense-se no conceito de «keeping-while-giving», desenvolvido por Annette Weiner,107a propósito das práticas de trocas na Melanésia. Esta autora problematiza o significado das trocas, nomeadamente o seu simbolismo, sugerindo que muitas destas práticas, entendidas superficialmente enquanto reciprocidades, deverão também ser entendidas enquanto estratégias de retenção, processo que a autora denomina de «keep-while-giving». Estas práticas seriam

2007.

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José Manuel Sobral tem vindo a escrever sobre as dinâmicas - que considerou transnacionais - vinculadas à busca de tradições, muito em parte relacionadas com práticas de consumos alimentares (ex. 2014), mas também relacionadas, por exemplo, com a arquitectura «vernácula e nacional» apontando inclusivamente a antiguidade destes processos -desde o século XIX, -de autenticação e patrimonialização do rural e do popular, analisando ainda a sua relação com as identidades nacionais, nomeadamente em Portugal (Lowenthal 1993 [1985]: in 2004: 395- 396).

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Weiner desenvolve este conceito no seu livro de 1992 Inalienable Possesssions: The Paradox of Keeping-

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assim também reivindicações identitárias, representações de si, ou seja, os bens das trocas seriam entendidos pelos sujeitos enquanto bens inalienáveis – e na verdade, intransmissíveis - pois representariam as suas próprias identidades (Weiner 1992 in Harrison, 2007:5). Estes bens, integrados no sistema económico ou de troca direta, seriam trocados de modo a assegurar o estatuto identitário de uma pessoa ou grupo (ibid). Segundo Harrison, Weiner sugeriria uma outra perspectiva na antropologia económica, que se focaria sobretudo na reciprocidade, desenvolvida em importantes trabalhos como o de Mauss (1925) e Lévi-Strauss (1969), nos quais se assume que a motivação para práticas de «gift transactions» ou mesmo das alianças matrimoniais, seria a obrigação moral de repor dívidas no futuro, isto é, oferece-se algo porque se espera vir a receber, em retorno. Porém, não negando esta hipótese, que existiria a par, Weiner propõe olhar-se para além da reciprocidade, de modo a compreender como muitas práticas de trocas poderão ser estratégias profundas de retenção, pois na verdade o que se troca seriam muitas das vezes objetos considerados pelos sujeitos enquanto inalienáveis, estando a sua troca intimamente relacionada com constituição de identidade, nomeadamente identidades coletivas, e ao longo do tempo. Na verdade, a troca, consistiria numa ação de reivindicação e de reforço de um estatuto, representado pelo tipo de bem «trocado», ou melhor, retido. Ou seja, a manutenção de determinada identidade estaria dependente da manutenção de «an exclusive association with a distinctive set of symbolic objects,and preventing rivals and others from acquiring them» (Weiner 1992 in Harrison, 2007:7). Também Simon Harrison estudará as práticas simbólicas que representam identidades socais, focando-se nos consumos, e nos modos como estes são, muitas das vezes, prolongamentos identitários. Esta hipótese teórica parece-me muito profícua para esta tese (a par da da reciprocidade), senão vejamos: José, um descendente de cabo-verdianos, população a quem foi negada uma série de acessos, nomeadamente à terra (como explicarei em detalhe), conseguiu obter um lote de terra na roça onde nasceu e cresceu, e onde pode cultivar para seu consumo, sem ser por conta de outrem. José reivindica o acesso dos cabo-verdianos e seus descendentes à terra, no sentido literal e metafórico, uma terra que muitas das vezes lhes é negada, o que se poderá facilmente compreender, por exemplo, pelo uso do termo gabon ou estrangeiro, associado a todos os cabo-verdianos e descendentes. Estes foram e ainda são excluídos do espaço público, dos bons empregos na cidade, da própria cidade, da posse de terra, e até por vezes do direito à nacionalidade e ao voto, como se verá. José reivindica pertencer e revindica autonomia, que passa por poder oferecer – retendo – a jaca da sua terra. O mesmo faz Arlindo, que demonstra ter acesso aos produtos da terra da sua mãe e a outros que traz das roças por onde passa, devido ao seu trabalho, que é quase um prolongamento do trabalho do seu pai no que toca ao conhecimento sobre a vida nas roças. Não será por acaso que ambos escolhem trazer para os almoços partilhados em casa de Rosa, os

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produtos que plantam - ou que plantam por si, no caso de Arlindo. São produtos «seus», em toda a sua significância, são os tais «bens inaliáveis» a que se refere Weiner, no sentido em que são bens que os representam, que lhes reforçando a pertença, sendo as oferendas reafirmações de estatutos: deste modo, também podem pertencer ao quintal de Rosa. É preciso entender o que a terra – a posse da terra - representa para os forros, para os «quase forros», para os angolares, para os cabo-verdianos como para qualquer pessoa nascida e/ou residente em São Tomé, no presente e no tempo colonial. Basta compreender a história das ilhas: ter terra, significou muitas das vezes – nem sempre – um vislumbre de liberdade. José pode finalmente afirmar-se enquanto detentor de terra, o que conseguiu há cerca de 15 anos, como explicarei. Arlindo também reivindica uma ligação à mesma, supostamente privilégio apenas dos forros «antigos», que não seria o seu caso - por intermédio da mãe, que planta o campo e por intermédio da sua profissão. Cada um se afirma enquanto detentor de conhecimentos do mundo agrícola (como se verá melhor) e enquanto detentor de produtos essenciais, da terra, da sua terra, São Tomé, uma importante reivindicação de pertença nacional, através de dois sentidos da terra, a terra agrícola e a ilha onde se nasceu e/ou reside.

Neste mesmo sentido, eu representei a pedido de Rosa (por intermédio da filha), o produto importado108 da mercearia portuguesa – retive essa identificação, seguindo Weiner, uma certa noção de europeidade e de exterior, de alteridade. Eu não poderia ser da terra, apesar de por vezes lhes levar para dentro de casa «a rua» daquela terra, a rua de que queriam distância, através das minhas socialidades, por exemplo com Benny, o que senti por diversas vezes. Assim, também a minha pertença se reforçava, a seu pedido, enquanto portuguesa e europeia, ao trazer produtos da tal mercearia, o que pude comprovar. Um dia, levei para um almoço partilhado, frutas frescas que tinha ido comprar ao mercado, o que não foi do agrado de Rosa, mostrando-se incomodada: «Joana vai saber a que pessoa comprar? Vão enganar Joana». Não faria algum sentido, em termos representacionais, tendo em conta esta lógica, ser eu a levar «produtos da terra», ainda para mais «sem orientação de Rosa», o que não voltei a fazer.

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