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Apresentação da Avó Bibi: «venha ficar a conhecer a minha família toda»

CAPÍTULO 3 NO QUINTAL DE DONA ROSA: APRESENTAÇÕES E O QUOTIDIANO

4.9. Apresentação da Avó Bibi: «venha ficar a conhecer a minha família toda»

Rosa preocupava-se muito com a avó194 Bibi, uma senhora de 80 anos, forra, de uma família

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Rosa também encomendou algo mas não consegui perceber. Aproveitei à altura para encomendar pilhas e cassetes, uma vez que o meu gravador digital se tinha avariado. Houve no entanto alguns percalços com as encomendas, minhas e de João: no meu caso, chegaram a São Tomé muito menos pilhas do que as que encomendei, pelo que Josefina fez questão de me devolver o dinheiro das mesmas «é uma questão de honra, aceita por favor», disse. Em relação ao João, percebi, apesar da conversa ter sido em tom de secretismo, que o relógio que este encomendou era falsificado, apesar deste ter enviado o dinheiro para um relógio de marca. João ficou muito zangado e Rosa deu a entender que «não se esperava outra coisa» daquela irmã de pai, conforme escutei.

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muito conceituada, nomeadamente enquanto resistentes195ao colono, senhora que Rosa visitava

com regularidade, tal como faziam Arlindo e Josefina, João, e até Maria e José.196 Num almoço de 2014 no quintal de Rosa, perguntei pela saúde da avó. Rosa avançou: «Ela vai ficar bem contente se Joana for lá», e os outros concordaram. Combinei assim uma visita, pelo telefone. Rosa quis ir comigo «ensinar casa», pelo que marcámos encontro para o dia seguinte de manhã, numa rua central da capital, perto do seu antigo emprego. Cheguei primeiro e fiquei à espera de Rosa, que tinha resolvido vir a pé de casa, pelo que a fui avistando chegar, ao longe, verificando como muita gente a cumprimentava. Já juntas, apresentou-me aos seus conhecidos que passavam: «esta é uma minha amiga». Antes de partirmos, Rosa foi ainda visitar o seu antigo lugar de trabalho, para «cumprimentar pessoas», disse. Resolvemos apanhar um táxi partilhado, que nos levou até casa da avó, que ficava num prestigiado bairro associado aos forros de elite «o coração de forrosidade na cidade», dir-me-á Francisco. Enquanto nos dirigíamos para a praça de táxis, passaram por nós dois jovens rapazes: «Joana, tá a ver só? são bandidos. Quando tem esse cabelo, gente sabe que é bandido mesmo». Chegámos a casa da avó, uma bonita vivenda com um quintal cercado, no qual se viam árvores de frutos e de fruta- pão: «Avó!», chamou Rosa. Esta abriu-nos a porta de casa, visivelmente satisfeita. A porta estava bem trancada, tal como fazia Rosa na sua casa, antes de se deitar. Tinha-lhe levado um sumo Compal de maçã, por indicação de Rosa, que por sua vez lhe levou o almoço, divido em caixas: «avó, o almoço é simples. É feijão com peixe, bem simples», olhando também para mim. Comentei «que maravilha». A avó ficou ligeiramente desapontada, apesar de tentar disfarçar, com a sua extrema boa educação e cerimónia. Rosa sentou-se no sofá da sala e pouco depois adormeceu, tendo-me deixado a fazer companhia à avó na cozinha, enquanto esta almoçava. Escrevi no diário: «Sinto-me num salão de chá, os gestos, a fala, tudo muito delicado e elegante. Eu imito-a. Depois da refeição, a avó vai buscar os seus biscoitos caseiros que a própria faz e que já me tinha dado a provar em 2012: são mesmo deliciosos. Rosa continua a dormir no sofá da sala, um sono intermitente. A avó conta que o seu único filho está para chegar de Angola, país no qual reside. A avó já tem os biscoitos feitos para ele pois diz que são os seus preferidos.

Rosa, que de vez em quando abre os olhos e pelos vistos também está atenta às conversas, dirá mais tarde a Arlindo ´ela fica só à espera do filho, mas ninguém sabe se filho vem mesmo e quando`» (excerto de diário de campo, Abril de 2014).

A seguir ao seu almoço, a avó foi mostrar-me a casa: tinha uma parte de lavandaria, no quintal, tal como Rosa. Soube que Arlindo a tinha ajudado com as obras na casa, uma vez que a avó se

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Chegaram a estar exilados.

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Foram todos convidados para a inauguração da sua casa em Junho de 2012, à qual também fui. No início de 2012 já conhecia a avó, sem saber que Rosa a conhecia, tendo-a entrevistado ainda na sua casa antiga, situada no centro da cidade capital.

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tinha mudado há pouco tempo, após um divórcio. A avó contou que tem novos planos para um muro e falou-me do seu terreno que se prolongava bastante para fora da área murada, e que era um terreno de família, herdado há muitos anos, mas que só agora a avó estava a querer utilizar. Rosa veio ter connosco ao jardim, dizendo à avó que o quintal precisava de ser capinado. A avó respondeu que tinham estado «a capinar há uma semana, mas com chuva cresceu tudo. Até queimada fizeram». Rosa voltou à sala. A avó vivia com duas raparigas novas, uma mãe e uma filha. A mãe tinha sido sua empregada interna em tempos, tendo entrado ao serviço com uma recém-nascida nos braços, criança que já era adolescente e estudava no liceu nacional. Por motivos financeiros da avó, esta já não podia pagar a uma empregada, pelo que a rapariga era agora cozinheira num restaurante da cidade, mantendo-se porém a residir com a avó. Esta queixou-se muito da solidão, contando que passava os dias sozinha, pois mãe e filha chegavam a casa já tarde. Perguntei-lhe o que fazia para se distrair e acabámos a falar dos programas da TV Internacional: a avó via habitualmente um «programa da manhã com o apresentador português Jorge Gabriel» e perguntou-me se eu tinha notícias da apresentadora Sónia Araújo, de quem disse gostar «muitíssimo, mas nunca mais apareceu». Referiu ainda que em Fevereiro iria a uma consulta médica em Lisboa, oferta do seu filho, e que iria aproveitar para lá ficar «uma temporada». Contou que preferiria ir até ao Brasil, onde já tinha ido com o filho e nora, sobretudo a Petrópolis «ótima zona balnear e não fica longe do Rio de Janeiro. Faz lembrar tanto São Tomé! Gosto muito. Estou a gastar os últimos cartuxos!»,197 disse-me. Falei-lhe da minha tese, ficou contente, perguntando: «também vou entrar nisso?». Mostrou-me depois a fotografia do seu filho e convidou-me a conhecer o seu espaço mais íntimo, o quarto, sob o seguinte convite: «venha ficar a conhecer a minha família toda».

O quarto era bonito, com mobília boa e antiga. Ao lado da sua cama de casal, estava uma cama mais pequena, onde dormia a adolescente, vendo-se os seus pertences em redor: sabrinas, ganchos, elásticos coloridos. Na cómoda da avó, estavam colocadas as fotografias da sua família, que me apresentou, pessoas extremamente elegantes e vestidas de forma muito formal. «Conheci» os seus pais: a avó muito pequena ao colo da mãe, o pai que parecia vestir uma farda militar. Vi ainda uma fotografia do seu pai com a madrasta. Por fim, na mesinha de cabeceira, uma fotografia da sua mãe, uma mulher muito bonita e elegante. Mais tarde, já de saída, Rosa perguntou à avó o que queria que esta lhe trouxesse da próxima vez, pelo que a avó respondeu que precisava de peixe, pois já não tinha na arca congeladora. A avó deu dinheiro a Rosa, para a compra do pescado, perguntando várias vezes se aquele dinheiro chegaria, o que Rosa confirmou sempre. Ao portão, conversaram ainda sobre Arlindo, que tinha ficado de lá ir consertar algo. Entretanto chegou um rapaz, dos seus 17-18 anos: «ele estuda no liceu, ele vem

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cá ver-me, é como se eu fosse mãe dele», explicou-me a avó. Despedimo-nos e viemos a pé para casa, até porque Rosa quis passar no banco, que ficava a caminho.

4.9.1. «Ela é meu bijou, menina de saída»; os bailes e a organza da juventude

Num outro dia, voltei a visitar a avó Bibi, desta vez acompanhada por Josefina, uma vez que a avó estava de cama, com dores nas costas e pescoço, pelo que levámos a pomada voltaren que tinha trazido de Lisboa. Encontrámos a avó muito abatida e nostálgica, recordando os tempos de quando vivia em Lisboa, localidade onde fez o liceu,198 não tendo ido para a faculdade devido à morte dos pais, pois «faltou dinheiro». Ficou radiante quando soube que cresci na «zona do Areeiro […]. Então seríamos vizinhas, menina! Você é minha filha ou neta branca. Quem me trata bem, é sim», referiu. Josefina riu-se, visivelmente admirada. «Tenho outra filha branca, é Alcinda. A Alcinda não sei se vive no Porto ou em Lisboa». Explicou que Alcinda era a filha da empregada, ambas «brancas, lá em Lisboa […].Ela saía connosco, era menina de saída, bonitinha. Eu chamava ela de ´meu bijou`. Quando chegávamos a casa, ela não cumprimentava a mãe dela, a criada. Nós ralhávamos: ‘não cumprimenta sua mãe?!`. Ela respondia: ´As senhoras quando chegam a casa não vão cumprimentar a criada!´», e riu-se muito ao contar isto. Continuou a falar de Alcinda: «Ela cresceu connosco, mudávamos-lhes as fraldas. Comia connosco à mesa, tudo». Rapidamente passou para a descrição dos bailes da Casa do Império, esmiuçando ao pormenor os vestidos de uma e outra pessoa, cujos nomes preferiu manter em anonimato: «Vocês até conhecem, mas não vou dizer quem é», disse a Josefina. «Ela uma vez levou a um baile um vestido lindíssimo, de organza, cor violeta muito claro, organza em rede, com uma flor de orquídea natural no peito. Ela nunca sentava, desfilava só. Em solteira era muito vaidosa. Nunca sentou na festa, para nós vermos os seus vestidos», referiu. Percebi que Josefina nunca ouvira a avó contar essas histórias, pelo que a minha presença – enquanto portuguesa, mulher - não é de todo irrelevante perante o que se escolhe recordar, nomeadamente um certo «Império».

4.10.«Ser família de alguém: ser forro só não chega»

Ainda a propósito da insatisfação face ao presente, remeto para as constantes conversas no quintal de Rosa sobre «a bandidagem» e a corrupção: «São Tomé é um país de injustiças e bandidagem, não há respeito! Como é possível ele não conseguir nada e outros conseguem só porque é família de alguém!», comentavam Rosa e Arlindo, referindo-se ao fato de João não ter ainda conseguido um bom emprego. «Muita coisa foi prometida aos jovens que foram fazer formação fora do país, até casa foi prometida! […] se ele não tivesse família, eu não sei como seria!», disse Rosa, acrescentando que os colegas de João – alguns conheci no seu aniversário -

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estavam «a passar grandes dificuldades!».

João tinha inclusivamente escrito uma carta a um ministro, na qual explicava a sua situação, destacando ser altamente qualificado e que mesmo assim não conseguia um emprego, pois as vagas que apareciam, já se encontravam atribuídas a determinada pessoa, mesmo antes de se abrir concurso: «por ser família de alguém», redigiu, assinando em nome próprio. Josefina fez referência em 2014, em entrevista, à diferenciação de acessos entre pessoas da mesma categoria étnica, nomeadamente entre os forros. Falando de uma diferenciação social ´interna`, que é porém muitíssimo maior entre pessoas de diferentes estatutos étnicos, como a própria acabou por também reconhecer. Josefina referiu-se a uma espécie de democratização da discriminação: «Eu diria que não é discriminação entre pessoas de diferentes grupos, mas há entre pessoas do mesmo grupo por causa dos níveis sociais que são diferentes. Há uma elite que não hesita em pisar os outros […]. É verdade que os forros são maior percentagem […], desde a era colonial era grupo que já trabalhava nas repartições, alguns estavam mais ou menos bem posicionados. E hoje continuam a ser a maioria nas administrações públicas, no governo, à frente de negócios. Mas hoje já existe nos vários grupos uma maior mistura e a discriminação não é por ser de grupo diferente mas tem a ver com a situação de corrupção generalizada, a classe política tem feito muito pouco para o povo […]. As elites que se foram criando, que estão lá em cima e fazem parte do mesmo grupo. A discriminação encontra-se aí: dentro do próprio grupo [de forros]», disse Josefina, reconhecendo que os lugares privilegiados seriam ocupados maioritariamente por forros, o que não significaria que a maioria dos forros ocupasse esses mesmos lugares. As pessoas de outros estatutos socioecónomicos – e também étnicos - nunca chegarão a trabalhar na repartição pública, nem sequer a ter reforma. A discriminação de que fala Josefina é mais acentuada se olharmos para os percursos de pessoas de diferentes categorias, que não chegam a ter certos direitos base, tal como explicará José. Esta diferenciação de estatutos – que é também uma diferenciação de acessos – verifica-se, porém, dentro da mesma família.

4.11. Famílias diferenciadas: «é família, mas não é bem família». De novo, os forros

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