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CAPÍTULO 3 NO QUINTAL DE DONA ROSA: APRESENTAÇÕES E O QUOTIDIANO

3.11. Voltemos ao quintal e à casa de Rosa

A televisão que estava no quintal dividia o seu tempo entre o quintal e a cozinha, encontrando- se maioritariamente sintonizada nos noticiários televisão nacional são-tomense (TVS), da RTP Internacional, da RTP África e no da TV France, noticiário que Josefina gostava de assistir à noite, já em casa, antes de passar à sala e a outra programação, onde estava o outro televisor, onde eu e Josefina assistíamos em 2012 à novela brasileira da Globo, depois das tais notícias em francês nas quais Rosa também atenta enquanto faz arrumações na cozinha, antes de se deitar. Na cozinha estão dois grandes frigoríficos e uma arca congeladora, bem como uma mesa enorme onde um dia houve um jantar de cerimónia, com uns oficiais «históricos», disseram- me.Para além da sala e da cozinha, a casa tem ainda 3 quartos e uma casa de banho «completa», com uma enorme banheira que nunca é usada, vendo-se nas prateleiras vários produtos de higiene expostos, inclusive para o corpo e cabelo. Os banhos tomam-se sempre na casa de banho do quintal, de água fria, num chuveiro de um pequeno poliban, ou então com caneca, uma vez que o chuveiro tem muito pouca pressão. Num fim de dia típico, depois do jantar e já dentro de casa, Rosa encontra-se a guardar o que sobrou do jantar nos frigoríficos e organiza a comida para o dia seguinte, que retira da arca congeladora. Logo depois, recolhe-se no quarto. Aí, liga o rádio, cuja programação oscila entre a música de conjunto e programas da igreja católica. Ao mesmo tempo manuseia ou lê a bíblia, adormecendo pouco depois. Acordará

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de madrugada, lá para as 5 da manhã, como é comum em São Tomé, indo acender o forno a lenha do quintal, que aguardará as panelas onde se cozinhará para alimentar os habituais comensais.

João, ao fim do dia, ou está fora com os amigos96 ou está no seu quarto a ver séries e filmes no seu PC, nomeadamente séries norte-americanas que conheceu em Cuba, segundo me disse.

Josefina, nos intervalos da novela da Globo, também se entretém no seu PC, nos programas Paint, Photoshop e quando passou a ter internet em casa, em 2014, no Skype.97 Em 2014, por vezes, trabalhava ainda à noite em traduções98 e estudava para o mestrado, depois e antes da novela, deitando-se tarde.99Em 2012, como referi inicialmente, estava previsto a minha estadia em casa de Rosa durar apenas uma semana, pelo que Josefina havia-me gentilmente cedido o seu quarto por esse tempo. Porém, devido ao acidente que sofri (ver capítulo anterior) acabei por aí ficar mais de 2 meses, pelo que Josefina passou a dormir numa cama situada na sala. Essa cama servia inicialmente para sestas, estando colocada estrategicamente junto a uma enorme ventoinha móvel. Todos os quartos da casa tinham ventoinhas - tal como em casa de Maria - e Rosa controlava sistematicamente o seu uso, por causa da conta da eletricidade. A decoração da sala era muito familiar: uma arca em madeira trabalhada, um termómetro antigo em forma de caravela, que encontrei em casas em Lisboa, um relógio de parede, uma aparelhagem gigante, que ocupava bastante espaço, várias mesas de apoio com bibelots, como animais de madeira: um elefante, uma girafa, caixas, dois cocos de artesanato são-tomense, tijelas «chinesas», dois pequenos candeeiros do IKEA a energia solar e fotografias da família emolduradas. Nas estantes e nas mesas, viam-se muitos livros - principalmente das áreas de estudo e de trabalho de Josefina e João, dicionários, dossiers, Cds, o PC de Josefina, velas em candelabros trabalhados e anjos de gesso branco, que se veem frequentemente à venda nas lojas de Lisboa. Ainda na sala, encontrávamos o telefone fixo, muito usado, um grande tapete axadrezado, que fazia lembrar os tapetes de Arraiolos, um grande candeeiro de teto, em vidro.

Havia dois grandes sofás tapados o tempo todo por lençóis brancos (o padrão que espreita é axadrezado em tons castanhos), onde por vezes João dormia a sesta. A cama onde dormia Josefina estava tapada por uma coberta em tons creme. Os móveis eram de madeira maciça, típicos dos anos 50-60, havendo estantes, mesa e cadeiras, um guarda-louça que expunha a loiça de cerimónia, como copos de cristal e pratos. Via ainda duplos cortinados, brancos e debruados em renda, que tapavam todas as janelas que teriam vista - se não estivessem sempre tapadas - para a parte detrás do quintal, onde estavam as capoeiras de galinhas, as plantas

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Só regressava tarde aos fins-de-semana.

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À altura não tinha Facebook, e ainda não tem: «prefiro não ter» - comentou.

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Ajudei-a algumas vezes, a seu pedido, em questões gramaticais do português.

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medicinais, as flores, as árvores de frutos e de fruta-pão. Reparei ainda em vários naperons, num enorme cisne azul de porcelana, que navegava em cima da arca trabalhada. Na parede, estavam pendurados os quadros recentes de Jean, o tal amigo francês de Maria e José, que compunha quadros que pretendiam retratar «São Tomé autêntico e exótico», regra geral feitos de areia que desenhava padrões e figuras «típicos». Via-se também um outro quadro de cortiça, com mais fotografias de familiares, algumas do tipo passe, tal como o que existia no quarto de Josefina. Observavam-se ainda as roupas de Josefina, os seus cremes, perfumes e malas, que estacionavam temporariamente em cima de cadeiras e de uma mesa de camilha, enquanto lhe ocupei o quarto. Uma das cadeiras segurava-lhe a roupa já escolhida e preparada de véspera, para ser usada no dia seguinte. Via-se ainda uma mala de viagem, minha, ainda por desfazer, encostada a um canto da sala, por não haver mais espaço no quarto de Josefina. O seu quarto situava-se mesmo ao lado da sala. Descrevi-o a partir da sua cama, no início de fevereiro de 2012, da seguinte maneira: «Estou no quarto de Josefina: há várias estantes com muitos dicionários (de francês, de português), romances de Haruki Murakami, livros de receitas e fotocópias com dicas sobre ginástica e dietas, coladas com fita-cola na porta do quarto. Na parede ao lado da cama, está um quadro de cortiça, onde estão expostas as fotografias do casamento dos seus pais – o casamento é uma prática muito pouco comum em São Tomé e Príncipe – fotos tipo passe, suas, de João, da mãe e do pai, e dos outros irmãos. Há ainda fotografias de crianças e bebés, e um postal com a imagem da Torre Eiffel. Também vi uma torre Eiffel, em forma de íman, colado num dos frigoríficos da cozinha. Numa das cómodas em frente a um grande espelho, vejo cruzes e rosários, uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, e ao lado uma panóplia de cremes de rosto e corpo, amaciadores de cabelo e perfumes de marca. O quarto tem ainda um grande guarda-fatos que não fecha devido à enorme quantidade de roupa, sapatos e malas que Josefina comprou - quase todas - ´no exterior` (roupas da Zara, Mango, H&M, etc.). Debaixo da cama onde durmo - que é enorme, feita em madeira trabalhada, e que possui um ótimo colchão ortopédico - está um copo de água100 cheio quase até cima […]. Também aqui estava a bíblia, num banquinho ao lado da cama, sempre aberta, mas Josefina já a levou para a sala, onde dorme».101

Voltemos ao quintal. Ao pé da mesa onde se comia e antes de entramos na parte de trás do quintal, onde estavam as capoeiras, estava o forno a lenha, onde Rosa cozinhava, alternando com o fogão a gás situado no anexo, ou, em raras ocasiões - quando estamos só nós – com o

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Mais tarde percebi que o copo contém água e sal e é usado contra os maus-olhados, prática comum a outros contextos.

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micro-ondas situado no mesmo anexo. No quintal havia ainda uma parte de lavandaria, onde a empregada - Elsa em 2012, Emília em 2014 - passava a maior parte do tempo. Elsa e Emília só trabalhavam de manhã e, no caso de Emília, apenas alguns dias da semana. Ambas dedicavam o seu tempo a tarefas como lavar à mão, corar e estender roupa. Elsa estava mesmo proibida de cozinhar – não poderei afirmar o mesmo em relação a Emília - tarefa exclusiva da dona da casa, proibição que não é de somenos importância, como explicarei. Elsa nunca entrou dentro de casa de Rosa e era vigiada com bastante desconfiança. Podia porém entrar no anexo do quintal, onde estava também a cozinha que descrevi. Em 2012 praticamente não estabeleci diálogo com Elsa, pois Rosa não gostava que eu o fizesse. Elsa também não me deu qualquer tipo de abertura, pelo que resolvi não insistir, até para não a prejudicar nem ao seu trabalho. Em 2014, Elsa tinha sido despedida e estava outra senhora no seu lugar, como já se disse, Emília, que ia apenas 3 vezes na semana. Perguntei por Elsa ao chegar de Portugal (em 2014) e Rosa não quis adiantar informação dizendo apenas que «são coisas que acontecem, empregada é difícil de manter». Emília era tratada com muito mais respeito e vim a perceber que era vizinha de uma grande amiga de Rosa mas que agora estava «a passar necessidades», pelo que foi trabalhar para o seu quintal. «Dona Emília já comeu? E chegou? Não come mais? Dona Emília senta. Dona Emília quer uma boleia?», ouve-se com frequência, um tratamento cuidadoso e gentil, impensável ao tratar-se de Elsa, que não era Dona.

Em 2014, ao chegar de Lisboa, reparei que, pendurado na parede do quintal, estava outro espelho – muitíssimo discreto, dos que se vendem no mercado - pequeno e vermelho. Dois anos antes, havia um outro, do mesmo tipo, mas em azul, o que pude confirmar comparando fotografias. Mais tarde, alguém me disse que este tipo de espelhos servia para tirar o mau- olhado. «Aquele só pode ser para isso», escrevi, pois estava colocado a uma altura a que ninguém consegueria chegar para se ver «a não ser que se tenha dois metros de altura ou mais. «Quem se verá naquele espelho?», foi uma das questões que não fiz a Rosa. Reparei ainda nas habituais flores de plástico em cima da mesinha do rádio, apesar de no quintal se plantarem lindas rosas de porcelana, uma flor endémica das ilhas, e que se oferecem a visitas de maior cerimónia, como aconteceu num almoço com uma médica cubana (ginecologista da família) a trabalhar há muitos anos nas ilhas.

O rádio estava ligado, como sempre, tocando música «tradicional» follo ou conjunto, como se diz. Os cadeirões de madeira, feitos pelo tio de Rosa, esperavam os corpos que os ocuparão na sesta a seguir ao almoço. «Eu mereço Joana», dirá sempre Rosa ao instalar-se, antes de adormecer.

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Na parte de trás do quintal, afastadas da mesa onde se comia e conversava, estavam capoeiras com galinhas, onde se iam buscar «ovos frescos» e várias plantas medicinais usadas nos pratos que Rosa elaborava. As plantas, e os frutos, eram ainda usadas em diversos momentos da vida quotidiana relacionados com situações de saúde e doença, como demonstrarei. Na parte da frente da casa, via-se relva bem aparada - de vez em quando iam lá uns rapazes aparar a relva e podar as árvores - e árvores de frutos, como limoeiro, abacateiro, árvore da fruta-pão, e outras plantas que Josefina nomeará mais à frente. Havia também um grande reservatório de água, em cima do qual se colocavam a carregar, diariamente, vários pequenos e coloridos candeeiros que funcionavam a energia solar, comprados no IKEA de Alfragide, disseram-me. Assim, o quintal de Rosa, lugar multi-referencial, constitui-se enquanto lugar de trabalho, de socialidades diárias e outras mais cerimoniosas, de reforço de laços e afetos, e ainda enquanto espaço de aprovisionamento, de água e luz, de alimentos, como galinhas e ovos, frutos e fruta-pão, o alimento base de toda a população, a par da banana; de cuidados de saúde com o recurso às plantas medicinais, muitas das vezes usadas os pratos que Rosa confecionava, e de segurança, constituindo o quintal uma barreira até à casa. É ainda no quintal, na parte da frente, que se guardavam os automóveis, um novo e moderno, pertencente a Josefina, mas muitas vezes conduzido por João, e outro automóvel mais clássico, pertencente à empresa onde trabalha Josefina, e que a própria conduzia ocasionalmente.

O quintal possuía um grande portão, que estava sempre trancado à chave. Assim, cada visita tinha sempre de se apresentar, ao bater. A casa principal tinha duas portas: uma com rede de proteção de mosquitos, mais exterior, e outra de ferro, com várias fechaduras e trancas que Rosa fechava sempre e só depois de todos os membros da família terem entrado, estando sempre alerta no seu sono, e se preciso, levantando-se durante a noite. No quintal encontrávamos uma cadela, que era muito querida pela família e visitas, tratada «como gente!

Vê só!» e que morreu em 2013 devido a «morte misteriosa».102 A morte da Bonita foi sempre

um assunto do qual não se podia falar, pois «tudo o que tem nome existe», desconfiando-se de uma morte não natural. Em 2014 havia outro cão no quintal, ainda cachorro, que se estava «a educar». Um dia referi-me ao facto de este ser muito brincalhão e «bem-educado», comentei. Rosa respondeu: «a mãe desse cão é cadela de um médico. É por isso», o que achei muito curioso, até cão tem estatuto. «É metade nosso, metade do José», acrescentou Josefina.

3.12. De novo entreajuda e capital social; as trocas: «a minha jaca», azeite natural da

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