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CAPÍTULO 2 «SÃO TOMÉ EM MIM É COMO SANGRAR CLOROFILA» E OUTROS REGISTOS DOS DIÁRIOS DE CAMPO

2.7. O regresso da roça: alto-mar e acidentes

No regresso da roça, já de noite, tivemos de parar mais do que uma vez, para descansar e retomar forças. O caminho era muito acidentado, e nas zonas cerradas não se via nada. A moto,

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apesar de todo-o-terreno, estava bastante danificada, e chegámos a perder uma ou outra peça pelo caminho. Finalmente, depois da grande descida – a roça estava num ponto altíssimo- chegámos a uma estrada mais regular. Aí podíamos ver a lua enorme. Estava muito contente. Como era impossível conversar, devido ao barulho da moto, resolvi ligar o ipod. Mas coloquei só um auscultador. Na cidade, tínhamos um jantar combinado, por volta das 23h, um restaurante perto do museu. A. não queria ir por achar não ser «pessoa de frequentar restaurantes». Eu insisti. Ao chegarmos, já no passeio, encontrávamo-nos a tirar os capacetes e gabardines, quando uma motorizada nos abalroa. Primeiro bateu em mim e depois no José, que estava do lado de lá da moto. Dois miúdos conduziam a moto que nos tinha atropelado, que tinham roubado de uma oficina. Para além de não saberem conduzir (e de virem com alguma velocidade),tentaram desviar-se de um cão, a causa do despiste, passeio adentro. Pelo que nos foi contado, os miúdos ficaram em bastante mau estado.

Já no chão, com a minha amiga N. a meu lado, recordo-me de algumas caras a olhar para mim, o que achei desagradável e pouco reconfortante. Identifiquei o que me doía, sobretudo a perna esquerda. O meu ipod continuava a tocar uma compilação de Sting. […].A certa altura terá chegado um bombeiro português, voluntário de uma ONG, precisamente na altura em que uns homens discutiam entre si como me levantar do chão. As minhas memórias são dispersas, pelo que escrevo o que me reconstituiram depois. O Nuno percebia de primeiros socorros e terá chegado na altura certa. Sob as suas instruções, fui transportada para o hospital na parte de trás de uma carrinha fechada. A. e os dois miúdos que nos atropelaram, foram transportados numa carrinha de caixa aberta, aí depositados sem cuidado. Já no hospital, mais desperta, ouvia discussões, gente a gemer. Olhava para o teto, tentei concentrar-me «pensamento positivo», apesar de me preocupar a hipótese de não existirem anestesias. A Neusa e o Nuno telefonaram a uma médica portuguesa, F., voluntária em São Tomé e Príncipe, que prontamente se chegou ao pé de mim, dizendo-me que tinha em sua casa uma caixa cheia de anestesias. Fiquei mais descansada. F. inspecionou-me a ferida na perna e aconselhou-me a não olhar, o que cumpri. As enfermeiras davam-me algo para tomar. De resto, fiquei por ali na maca, no corredor […]. Às tantas comecei a tremer com muita violência […]. José contou-me que lhe acontecera o mesmo. Ao que parece seriam reações comuns ao choque. Entretanto, e segundo me contaram, negociações entre a médica portuguesa, e as enfermeiras do hospital, uma vez que queriam ser estas a coser-me. F. discordava, e exigia a presença do cirurgião. Não havia nenhum médico de serviço, pelo que depois de algum tempo, alguém lhe terá ligado. Nesse tempo, lembro-me da visita do diretor do hospital, preocupado por eu tremer tanto […]. Foi

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nessa altura que me trouxeram mais um lençol. O José disse-me que não teve direito a isso. O diretor também não foi ver mais ninguém. A certa altura, senti muito a falta da minha família, ou de alguma familiaridade que não estava a conseguir encontrar, sobretudo nos momentos em que as enfermeiras me transportavam na maca com muito pouco cuidado por entre as estradas esburacadas do hospital, entre os vários edifícios. Senti-me de novo em alto mar, mas desta vez não era bom.

Durante a cirurgia, F. manteve-se ao meu lado. As anestesias locais doeram, e eu queixava- me. O cirurgião estava incomodado por eu expressar a minha dor. Disseram-me, mais tarde que «não é hábito» fazê-lo […].Mas eu ainda lhe disse «deixe-me se faz favor exprimir a minha dor». Não gostou. Desde que chegara, ainda não me tinha olhado. Fiquei com medo, afinal ele estava a coser-me, e tentei ser mais simpática. Este finalmente falou comigo – o que eu teria agradecido muito mais cedo – e perguntou-me o que fazia em São Tomé, se era turista. Expliquei-lhe o meu trabalho. Expliquei-lhe também que já lá tinha estado antes, há muitos anos atrás, e a minha relação intensa com as ilhas. Falei-lhe do tema da minha tese de mestrado […].Olhou-me finalmente! Disse-me então que nasceu em São João dos Angolares. Fiquei radiante. Fiz-lhe uma série de perguntas, parecia que estava a vomitar um qualquer guião, ele ria-se, senti-me feliz, mas talvez precisasse apenas e urgentemente de dar sentido àquilo tudo. Não sei. Pensei que gostava realmente do meu trabalho, que acidentes muita gente tinha […]. Era suposto ficar internada, mas F. dizia-me que não seria a melhor opção, e perguntou-me se tinha quem cuidasse de mim. A família, que ouvia a conversa, prontificou-se a ajudar. E assim acabei por ser tratada em casa: antibióticos, analgésicos, pomadas, mudar o penso todos os dias, depois dia sim, dia não, voltar ao hospital todas as manhãs, tirar novas radiografias, ver a evolução dos pontos, conseguir levantar-me sozinha, conseguir ir à casa de banho sem ajuda, começar a andar com muletas, primeiro uma, depois as duas, poder tomar banho à vontade, sem banco ou plásticos, voltar a andar, voltar às entrevistas, ir à praia. Este processo demorou um mês e meio, relativamente rápido. Rosa tomou conta de mim como uma mãe. Assim como a sua filha, e outros amigos da casa, que me vinham visitar neste período.

José continuou internado mais 3 semanas. Rosa e Maria iam diariamente levar-lhe comida e água, pois no hospital não se distribuem refeições. Recuperámos o resto do tempo muito juntos, nos sofás da sala da casa de Rosa. José fora catequista e filosofava como ninguém. Além do mais, partilhávamos do mesmo sentido de humor.

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filosofia cristã, o que me transmitiu muita confiança, apesar do meu agnosticismo, não tanto os livros, mas o gesto, a crença. Quis curar-me na fé dos meus cuidadores, não tive dúvidas de que iria ser assim. Acreditei muito em qualquer coisa. Acreditei muito nas pessoas. E quem sabe em algo mais. Como o acidente não foi de risco, nunca coloquei a hipótese de voltar a Lisboa. Lembrei-me do exemplo de coragem de vários familiares próximos […] e conclui desde logo que havia atropelamentos bem piores. Sabia que estava tudo bem. Escrevi no diário, na madrugada do acidente, assim que cheguei à cama. Primeiro escrevi no diário e a seguir telefonei para Lisboa. «É preciso ir aí buscar-te?» perguntaram-me. «Não, não é». Está aqui parte do que escrevi:

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