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Do fino equilíbrio entre cabo-verdianidade valorizadora e a essencialização culturalista em dia de cerimónia

CAPÍTULO 3 NO QUINTAL DE DONA ROSA: APRESENTAÇÕES E O QUOTIDIANO

5.3. Elogio – relativo da cabo-verdianidade na ilhas; Ir a «São Tomé»

5.3.2. Do fino equilíbrio entre cabo-verdianidade valorizadora e a essencialização culturalista em dia de cerimónia

Se por um lado, se assiste à valorização de Cabo Verde e por consequência, para o modo como se olham para as pessoas com esta ascendência, isto faz-se também através de uma certa aposta oficial no multiculturalismo – com todas as suas vantagens e desvantagens – o que poderá contribuir para o reificar de essencialismos entendidos enquanto culturais e que muitas das vezes não o são. Relembro a este propósito, o discurso sobre os cabo-verdianos nutrirem um «gosto inato» por realizar determinadas atividades ligadas «à terra e ao natural», realidades que correspondem antes a diferenças de estatutos e de acessos, transformadas em diferenças naturalizadas. Teme-se que «a multiculturalidade foclorizada» e essencializada, possa contribuir para a manutenção das desigualdades nos acessos, reforçando distâncias, ao mascararem-se as desigualdades socioeconómicas em diferenças «culturais». Como afirmaram Machado et al «a ideologia multiculturalista é forte não só entre os cientistas sociais […]. O problema é que, ao colocar-se a discussão exclusivamente no campo da cultura, se esquecem

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Género musical angolano.

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Dança «de rua» associado à cultura do Hip-Hop, criada por afro-americanos e latinos nos anos 70 nos Estados Unidos. É muito usual em países como Angola, com novas variações locais.

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Dança que mistura calipso, um estilo musical afro-caribenho e a makossa, um estilo musical originário das regiões urbanas dos Camarões. .

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Género musical proveniente de Angola.

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Relembro Benny e a sua prática da capoeira do Brasil, no parque popular da cidade, nas roças e na galeria da cidade.

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as desigualdades sociais, particularmente as de classe, mas também as de género ou as de natureza territorial» (2002: 695). Este autor afirmou ainda que: «Ao limite, o multiculturalismo é, portanto, uma forma de desconhecimento» por se ocultarem as desigualdades sociais,

impedindo um entendimento cabal das mesmas (ibid: 695-696). 240

Hoje em dia, nas festas, nas cerimónias oficiais, nas rádios e televisões nacionais, escutam-se mensagens e informações proferidas nos vários crioulos existentes nas ilhas: o crioulo forro, o angolar ou n´gola, o crioulo do Príncipe (lunguié) e o crioulo cabo-verdiano, o que não acontecia há uns anos atrás. Assisti, na televisão nacional, a vários programas que pretendiam dar conta «das várias manifestações culturais do arquipélago, pertencentes aos vários grupos», e que eram exibidas on and on. Estas «diferenças culturais» ´agrupadas` existentes nas ilhas transformadas em atracções turísticas - eram muitas das vezes apresentadas sob a forma de diferentes danças,241que poderiam ser exibidas nas roças mediante pagamento,242como em cerimónias oficiais, como a celebração do dia da independência de São Tomé. Relembro o facto da missa na sé da cidade ser celebrada, em ocasiões de cerimónia, em diferentes línguas, como explicou Rosa: «Porque cantamos português e cantamos forro. O padre é são- tomense, mas às vezes aparece também um padre português. O padre são-tomense lê o evangelho em português e depois lê em forro, para toda a população ouvir. Quando temos cerimónia na igreja, vai uma pessoa de Cabo Verde falar e traduzir para Cabo Verde, vai uma pessoa do Príncipe, falar na língua moncó do Príncipe, vai uma pessoa, mais quê? [pensa]. angolar não…vai sim, exatamente, vai uma pessoa também falar angolar, vai sim, quando a gente tem uma grande cerimónia».

A propósito dos estatutos das diferentes línguas, remeto para um episódio ocorrido em 2012, ao assistir a uma conferência no instituto Superior Politécnico, sobre as várias línguas de São Tomé e Príncipe. No final das apresentações, alguns jovens estudantes foram ao palco ler o

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Segundo este autor, a ideologia multiculturalista nas escolas portuguesas tem tido o grave efeito de ocultar as desigualdades sociais (ibid:696-697).

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Existe uma certa materialização artificial e folclorizada – ainda para mais em contexto de promoção do turismo no arquipélago – do que supostamente seriam «danças, músicas e tradições» de determinados «povos ou raças» [expressões emic] de STP, transformadas em substratos culturais que definiriam uma suposta identidade étnica. Este é um processo «de objectificação» que pressupõe, como já se disse, a descontextualização de práticas e a sua re- contextualização em algo supostamente novo, ignorando-se, muitas das vezes, os contextos originais de produção e circulação, bem como as suas diferentes significações (cf. Leal 2007b:135). Leal afirmou que «mercantilização e empowerment» poderão não ser «mutuamente exclusivos» (ibid:135), a propósito da «marca Açores» em Santa Catarina, Brasil, com a intensificação do turismo na região.

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Várias vezes me propuseram assistir a «dança de Angola ou Táfua», por exemplo, mediante o pagamento de uma quantia exorbitante de dinheiro. O mesmo me foi proposto em relação à realização de outras performances como a Tragédia ou Tchiloli e mesmo certos tipos de Djambi, que poderiam ser patrocinados por turistas particulares ou agências de turismo.

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poema de Alda Espírito Santo243 É nosso o solo sagrado da terra, nas línguas forro, n´gola e lunguié. O crioulo de Cabo Verde não foi considerado. No fim das leituras, gerou-se uma acesa discussão pois um dos conferencistas, um designado «forro com orgulho», afirmou não estar correto o modo como a rapariga angolar dissera determinadas palavras do poema. Vários estudantes se insurgiram, defendendo-a, afirmando que: «a língua dela é assim! Tem de respeitar», ao que o conferencista respondeu: «é assim, mas tá mal! Está in-co-rreto!», sublinhou.

5.3.3. «Angola é quem manda agora»; «angolano atual, de Angola próprio»

O mesmo tipo de afirmações – de relativa valorização categórica - observei em relação a Angola, país de emigração são-tomense e de onde «vem o dinheiro [pois] Angola tem bué de fama! Angola agora é que manda agora!»,244 ouvi em diferentes contextos. Gustavo afirmou que hoje em dia, os antigos contratados angolanos e seus descendentes «procuram apanhar visto para Angola», referindo-se às enormes filas na embaixada da cidade. Sublinhou porém, que «um angolano di tempo, contratado, não tem nada a ver com um angolano atual, de Angola próprio. Não vais dizer que aquele tonga, assim todo roto, é de Angola, ou vais?! […]. Eles agora querem vir para a cidade, pedir nacionalidade angolana! Porque angolano, angolano, angolano, que nasceu na Angola, tem direito a ter um documento azul, tás a ver? Há um bilhete azul. E estes são descendentes e vão à embaixada, para ter esse cartão azul, mas não [os] aceitam, são descendentes!» disse, com desprezo, ao pronunciar a palavra descendentes. Em Lisboa, em 2013, num encontro entre são-tomenses na diáspora, escutei a propósito dos angolanos: «um angolano atual, que chega agora à ilha, é diferente do angolano da roça, que veio contratado, esse é ainda muito bárbaro, não tem nada a ver». Esta é a mesma distinção que se faz em relação aos cabo-verdianos «de roça e di tempo», como demonstrei, bem como em relação aos angolares (Feio 2008), num quadro de crenças na primitividade e na inferioridade de «certo tipo de pessoa» consideradas vestígios «de outros tempos» apesar de partilharem o mesmo presente.

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Importante escritora e ativista, Já falecida, pertencente à elite intelectual forra e ao movimento de Libertação de STP. Entrevistei-a em 2004.

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Têm-se feitas inúmeras parcerias com Angola,, nomeadamente no contexto da descoberta do petróleo nas ilhas

são-tomenses. Deste país vem bastante capital, para inúmeras atividades, investido nomeadamente na área cultural e em especifico nas artes plásticas, como aconteceu na 7ª Bienal de Artes de STP, em 2014. Nesse ano fizeram-se parcerias com a Fundação Sindika Dokolo, realçando-se «a complementaridade histórica entre Angola e São Tomé e Príncipe», conforme o que se lê-se no Jornal de Angola de 3 Março de 2014.

A jornalista são-tomense Deu lima, acrescentou, na mesma notícia: «Ousemos despedir o estigma do medo e dos preconceitos que ameaçam tolher-nos as asas», referindo-se a Angola e aos angolanos, in http://jornaldeangola.sapo.ao/cultura/bienal_internacional_de_sao_tome_e_principe. Sobre a Bienal – a que pude assistir, mais uma vez - e as parcerias, consulte-se também https://www.facebook.com/bienaldesaotomeeprincipe/

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5.4. Ser são-tomense «da cidade» é não falar os crioulos: «não convém estares aqui a

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