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CAPÍTULO 3 NO QUINTAL DE DONA ROSA: APRESENTAÇÕES E O QUOTIDIANO

4.1. O percurso de Rosa: «aprender a ser»

Como já referi, Rosa nasceu na Trindade, vila bastião da forrosidade. Aos 9 anos deixou a casa dos pais e foi viver para a cidade, com familiares mais bem posicionados, para «aprender a ser» [expressão sua]. Aí estudou até à 6ª classe, que completou aos 24 anos, tendo interrompido os estudos para casar e constituir família. Em 1975, obteve um ótimo emprego na cidade, primeiramente enquanto datilógrafa, e mais tarde, enquanto funcionária pública, trabalho do qual se reformou aos 53 anos. Era deste emprego que recebia a sua reforma «sem atrasos», que

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ia levantar ao banco em dia certo, sempre muito aperaltada, como descreverei.

Rosa chegou a morar com o marido no prédio náutico, que se situava numa «zona muito chique mesmo no centro da cidade capital», referiu em entrevista de 2012.

Os seus pais, «forros tradicionais», possuíam terra, na qual trabalhavam diariamente e da qual retiravam os produtos que vendiam, como café, cacau, caroço: «meu pai era uma pessoa […] pronto, era um agricultor. Gostava muito de… cultivar, está a ver? Plantar…tinha cacau, tinha café, tudo isso, e eles só viviam disso, não tá a ver? […]. E a minha mãe era doméstica, não trabalhava, quer dizer também trabalhava com o meu pai, eles iam os dois, trabalhavam, ficavam lá, depois vinham para casa, minha mãe cozinhava, lavava roupa, vendiam um caroço, partiam um caroço, sabe o que é caroço? […] escolhiam e iam vender.Vendiam cacau, vendiam café, nas lojas. Antigamente era assim». A terra situava-se «a uma hora para ir, outra para vir, a pé […]» da casa onde viviam: «não é aquela casa que fomos ver,142 é num outro local[…]», contou.

Rosa ainda hoje vende café, nomeadamente a um cabo-verdiano na cidade, que é quem possui uma máquina apropriada para o moer, episódio que retrarei.

4.2.«Forro é quem tem terra»; o estereótipo do cabo-verdiano «antigo» que fica lá a vigiar

Rosa possui várias pequenas glebas herdadas, quer do pai143quer do falecido marido, porém apenas uma se encontraria cultivada em condições, entregue «a um cabo-verdiano, que fica lá a vigiar, […] tá lá uma casota com um velhote, talvez a gente ainda vá lá um dia», referiu. Perguntei-lhe como tinha conhecido esse senhor: «Olha, nos conhecemos ele assim, eu acho que ele veio de Cabo Verde, há muitos anos, devia estar numa roça ou numa coisa qualquer, porque os cabo-verdianos quando vinham, vinham para as roças, e o pai do Álvaro, o meu marido, conheceu o senhor. Ele tem [tinha] lá roças,144e então ele tinha lá uma casa numa roça e foi buscar o senhor e ele lá ficou a tomar conta daquela roça. E entretanto ele lá ficou, ficou, ficou, o pai do Álvaro acabou por morrer, e o Álvaro ficou a tomar conta do senhor. O meu marido também acabou por morrer, olha fiquei eu a tomar conta do senhor, o senhor tá lá, na roça. [Quando] o senhor tá doente ou tem qualquer coisa lá, tenho que ir logo tomar conta do senhor. Coitados…então os velhotes, que trabalharam tanto tempo na roça, e ficam lá, dá-me impressão, ninguém fez nada por eles. Parece que Estado de Cabo Verde lhes dá uma mesada.145 O senhor que eu tenho lá na minha roça recebe mesada da embaixada de Cabo

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Refere-se a uma visita à Trindade que fizemos juntas, na qual pude conhecer a casa onde nasceu, bem como uma das glebas da família.

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A herança viria do pai, não se referindo à mãe.

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Roças di forro.

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O termo mesada é polémico, pois é um termo – e uma prática - associado às crianças, que receberiam uma quantia dos pais ou outros familiares, de modo a se tornarem mais responsáveis e a aprenderem a gerir dinheiro.

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Verde. Acho que eles de 3 em 3 meses, vêm para a cidade, receber».

Repare-se no estereótipo do «cabo-verdiano» enquanto aquele que de facto colocaria a mão na terra, enquanto empregado de outrem, idealmente de um forro, que seria o legítimo dono de várias roças, marca identitária e simbólica muito importante na etnoteoria forra, e que se relaciona com um passado de resistência ao trabalho nas roças coloniais. O forro surge enquanto aquele que não «sujaria as mãos», tendo para isso um cabo-verdiano «antigo» ou «como os antigos», a trabalhar para si, e a vigiar a terra.

Rosa comentou sobre a terra herdada do pai: «ainda é uma área relativamente grande, porém está pouco plantado. Aquilo está um pouco abandonado. Até já faz um ano que eu não fui lá. Ganda roça que tá lá», disse, orgulhosa. Apesar do relativo abandono, teria porém lá plantados produtos como banana, café, cacau, fruta-pão e abacate. A roça que herdou do marido, localizada na zona onde Arlindo nasceu também: «é uma grande roça», acrescentando que, tal como a outra, também não estaria convenientemente plantada, devido ao facto dos terrenos não estarem murado ou cercados, sendo por isto, alvo de roubos: «A Josefina muitas vezes já tentou fazer assim cercado, para ver se as coisas mantinham dentro, mas as pessoas não deixam, vão lá, destroem cercado para roubar banana, manga», explicou.

Rui também planta na sua roça: «Eu tenho bananeira, banana pão, prata, no mês passado comprei 1000 plantas de matabaleira! Tem também cacueiro, tenho pedaço com cacau, e a outra parte que não tem assim grande plantação de cacueiro, eu guardei para a matabaleira, que eu sei que daqui a 6 para 9 meses, eu tiro esse dinheiro. Matabaleira preta não tem assim muito a perder», esclareceu numa visita ao quintal de Rosa.

Da sua terra retirava produtos para consumo próprio – e tinha muito orgulho disso – e para «mandar vender no mercado a senhoras que compram e vão revender», disse. Rui não depende dessa atividade para subsistir,146 referindo que as pessoas que dependem da vida na terra, teriam de migrar para a cidade: «aqueles que esta lá só à espera dessa parcela pequenina, tem de vir para baixo. E depois o governo está sobrecarregado dessa gente que veio para a cidade e sem ter como voltá-los para a empresa,147 porque a empresa perdeu!».

Também no seu terreno trabalhava «um cabo-verdiano», como o designa, na verdade era um jovem descendente de cabo-verdianos, um são-tomense portanto. Este rapaz não reside na gleba de Rui: «vai para lá, mas não todos os dias, pois terreno é pequeno, 1500 m2. Ele é duma

roça perto, onde vive, de uma comunidade».148 Rui pagava-lhe um salário mensal e também em

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Trabalha na sua terra apenas aos domingos, pois tem outra profissão, como já se disse.

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Termo atribuído, desde a Independência, às antigas roças coloniais.

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Nome pelo qual se designam as antigas roças e seus habitantes, remetendo-nos para um imaginário de uma ruralidade associada a uma suposta homogeneidade.

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géneros, no caso de obter uma razoável produção de cacau: «ele tem percentagem de cacau, exemplo 300kg, 100kg fica para ele», referiu.149

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