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CAPÍTULO 3 NO QUINTAL DE DONA ROSA: APRESENTAÇÕES E O QUOTIDIANO

5.14. José: «eu quero uma casa no campo» 297 que não é roça

Como já se disse, José valorizava a terra – os produtos da terra, a agricultura biológica - e de algum modo a associação que se fazia entre trabalho rural e a categoria de cabo-verdianos, uma identificação desvalorizada no contexto geral, mas que José estava a querer ver reconhecida, já com outros referenciais. Utilizou-se assim de um estereótipo hegemónico – negativo – revertendo-o em potencial capital social e cultural, não sendo caso isolado. Recordo que José esteve inserido num projecto internacional de desenvolvimento rural, no qual se valorizavam novos modos de se ser agricultor, relacionados com referenciais transnacionais.298 Este encontrava-se a construir a casa dos seus sonhos «fora da confusão da cidade» mas também fora da roça, onde nunca mais conseguiria viver, segundo palavras suas, numa área que viria a ser - a partir de 2014 - muito disputada por complexos de turismo internacional. A casa estava em obras, mas José acampava «até porque já fui campista», contou, rindo-se. Aí plantava tudo

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Remeto para a música Casa no Campo, eternizada por Elis Regina, composta por Zé Rodrix e Tavito em 1971, no Brasil.

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Os projectos da ONG internacional estavam relacionados com «o desenvolvimento sustentável» e a agricultura biológica em produtos como o cacau, o café, a pimenta, a baunilha, entre outros, que se queriam inserir no mercado internacional. Como já se disse, autores como Sobral (ex.2004), Leal (ex.2007a), Silva (ex.2008) têm estudado fenómenos relacionados com o que se designa de pós-ruralização (2007:57), dando conta de uma série de práticas e discursos, históricos e contemporâneos «produzidos a partir da ruralidade e da cultura popular» (ibid:62), que também têm eco em São Tomé, muito por via dos projectos de desenvolvimento rural das organizações internacionais, que se baseiam num mesmo modelo de desenvolvimento com forte sensibilização comunitária e ecológica, como nos demonstrou José.

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«natural, sem químicos» e fazia «experiências […] modos de construir ecológicos», juntamente com os seus sobrinhos criados na sua roça mas que tinham ido viver para perto de si. Estes também se encontravam a construir uma casa «moderna», semelhante à de José e dos vizinhos franceses, os únicos que já tinham a casa finalizada: «Fizemos depois projeto de construção, foi aprovado e cada um foi fazendo conforme a sua possibilidade. O Jean era a pessoa com menos problemas e dificuldades, não é? Já terminou a sua casa. Depois mais pessoas vieram a mostrar-se interessadas pelo terreno nesse lugar», como Josefina (ver capítulo anterior).

5.14.1. «Você é um pouco estrangeiro»; Ser são-tomense que veio de fora

No que respeita à sua identificação, José valorizava uma certa imagem da Europa e um certo modo de entender a cabo-verdianidade enquanto próxima de uma europeidade idealizada, o que era transversal a outros estatutos étnicos, como já vimos: «Pelo que já me disseram, eu sou uma mistura de cabo-verdianos, são-tomenses e portugueses, ou seja, de europeus. Tive muitos amigos europeus, como os Leigos para o Desenvolvimento, convivi em casa deles […]. Depois, mais tarde, vim a trabalhar com voluntários franceses, familiarizei muito com eles e vim a notar, que já não sabia qual era a minha identidade. Eu tenho um amigo francês que me disse ´você é um pouco estrangeiro, você não é muito parecido com os são-tomenses´, acha-me muito mais aberto. Eu detesto muita coisa de São Tomé, como hábitos de arranjar várias mulheres […]. Também não gosto de entrar em corrupção para conseguir algo». Reforçou mais uma vez a valorização da exterioridade, associada ao «modo de vida natural» que tanto elogia, dizendo mesmo que: «um são-tomense que vem de fora é melhor, valoriza mais o natural. Quando eu vejo um são-tomense que viveu muitos anos fora, vem diferente, começa a ter mais

cuidado com a natureza, dá mais valor às coisas naturais, mais responsáveis com a forma de estacionamento dos veículos, desperdiçam menos o tempo […]. Quando um são-tomense vem da Europa, também parece muito com os europeus. Mas anos depois voltam à origem, mas os cabo-verdianos mantém uma origem que acho mais responsável, mais bonita, em termos de simplicidade. Um cabo-verdiano pode ter um curso que lhe dá até um certo prestígio social, mas não se faz valer, nem quer ser tratado por engenheiro ou por doutor», que seria o oposto do que faziam os são-tomenses. Em entrevista, o cônsul de CBV, também se referiu a uma proximidade à Europa, que caracterizaria desde sempre a cabo-verdianidade: «Todos eram portugueses, com o colonialismo. Mas nunca deixaram de ter esse orgulho em Cabo Verde. Aliás sempre se disse que Cabo Verde não era bem África, não era África profunda, tinha essa

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proximidade a outras culturas, à Europa, não é?».299

5.14.2 Ser um pouco vegetariano, quase francês: «Eu agora sei que com dieta simples eu consigo alimentar bem»

Consumir o que se usa na Europa é, como já vimos, um referencial identificatório e estatutário forte, também para José. Este contou ter ficado vegetariano por influência de uma amiga e antropóloga francesa, assim como apreciador de queijos como «roquefort, camembert […] Jean tem sempre em casa, habituei», elaborando uma associação direta entre o que ingeria e a sua identificação «mais aberta» e por consequência, o seu estatuto. A categoria de francês surgiu mais uma vez enquanto uma categoria de prestígio: o francês seria quem tem poder, quem arranjaria bons empregos, quem oferecia oportunidades únicas. José acrescentou ter uma alimentação «sem açúcar e sal. Eu gosto de fazer dieta, comer pouca carne, sou um pouco vegetariano», valorizando os produtos hortícolas que cultivava na sua horta, como o tomate cherry que queria começar a vender para restaurantes finos, disse, sorridente. Estes alimentos eram partilhados com o casal seu vizinho, que também possuía uma horta biológica, sendo que várias vezes os ouvi referirem-se a um modo de vida ideal e simples, no campo, comendo o que plantavam, o de «regresso ao básico», como diziam. Se estes o escolhem fazer, a par de idas aos restaurantes mais finos da capital ou à fábrica de chocolate, José fá-lo em exclusivo e por necessidade, até porque em 2014 precisava do que produzia no seu lote, para sobreviver, por estar desempegado e sem subsídios. Os seus sobrinhos também começaram a «ser vegetariano», tendo-me preparado um almoço «nesse modo, só com produtos naturais», disseram. O almoço consistiu numa massa chinesa, acompanhada de tomate e de uma omelete, temperada com moringa, uma planta que José estava «a experimentar […]que é uma planta que nós descobrimos agora, muito rica em proteína», disse. A sobremesa foi «a sua jaca».300Rui, que também tinha sido convidado para o almoço vegetariano, não saiu do carro, inventando uma qualquer desculpa. Num outro dia dir-me-á que não almoçou por «não conhecer higiene de pessoa», o que confessou após o episódio de intoxicação alimentar severa

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Mais uma vez surge o tópico da mistura remetendo-nos para a tal crioulidade de tendência europeia de que já falei nos capítulos anteriores, de algum modo próxima de um quadro luso-tropicalista.

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Enquanto almoçávamos no jardim da casa de campo de J., sentados numas pedras transformadas em bancos e mesa, víamos uma fantástica vista para o mar. Perguntei-lhe sobre o que tinha plantado ali naquele terreno, ao que respondeu ter poucas coisas, pois a maioria dos produtos que consumia plantava num lote de terra «15.000 metro quadrados de terra» que obteve em 1996, situado «um bocadinho longe» e que se encontra a tempo inteiro trabalhar em 2014. Aí plantava: «frutas, abacate, papaia, jaca, fruta-pão, banana madura», produtos com que ocasionalmente brindava a família de Rosa, como demonstrei. José conseguiu o seu lote já estando a morar na cidade, tendo sido «o pessoal da sua roça deu meu nome, para ganhar lote de terra, eles são muito meus amigos», referiu.

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