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CAPÍTULO 2 «SÃO TOMÉ EM MIM É COMO SANGRAR CLOROFILA» E OUTROS REGISTOS DOS DIÁRIOS DE CAMPO

2.10. A chegada, 11 de janeiro

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Outra identificação que foi atribuída em 2012, por um casal de portugueses residentes, foi o de ser o que consideravam «uma portuguesa betinha»: «Tu és uma portuguesa betinha», disseram-me numa festa de São João, que ocorreu no «bairro dos portugueses» ou da cooperação, em Junho de 2012. Assim entendiam a minha separação da restante «comunidade portuguesa», associando a minha distância «a questões de classe»: «sabes, a maioria dos portugueses que para aqui vêm são refugo […]», razão pela qual os próprios mantinham distância da dita «comunidade». «Tu tens outro modo de comportar-te, és educada. Moras onde em Lisboa?», representação que me causou bastante surpresa, mas que permitiu entender melhor as relações entre portugueses nas ilhas, que não constituem, de modo algum, um grupo homogéneo.

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«Cheguei. Saí do avião. A humidade quente não era assim tão forte, o cheiro, que tanto adoro, esse sim […]. Inconscientemente travei o cheiro a verde e a floresta, como se fossem encantatórios e de repente poderia pegar numa moto e derrapar […]. Era um pé atrás, que o meu corpo identificava com o cheiro que tanto gosto. Mas, pensei, não quero estar assim receosa […]. Fui rever imensa gente, foi um dia com tantas e boas horas! […]. No dia seguinte, fui fazer um piquenique, ao sul, com a «minha família». Escrevi assim:

«Depois de um lindo passeio de domingo com duas das pessoas mais queridas aqui […] tenho os olhos a transbordar clorofila. E fico a pensar que, se eu chorasse, sairia verde, se eu abrisse assim as mãos sairia oxigénio» (São Tomé, 12 de Janeiro de 2014).

Na mesma noite, escrevi esta nota: «Cheguei, acendi uma vela: em que São Tomé quero estar?».

Ainda no sábado da chegada, revi o meu amigo Gustavo. Este teceu um comentário sobre mim com uma colega antropóloga, com quem jantámos e que acabáramos ambos de conhecer: «Essa

aí?! Não tem como. É dura memo. Tem marca62 daqui e tudo». Ele e o Rui costumam dizer que

sou «todo-o-terreno», que vou para as roças onde ninguém mais vai. Às vezes até dizem coisas que me irritam por considerar conselhos imprudentes como: «você a pôr repelente? Você é daqui mesmo, não precisa! […]». Às vezes sinto que me tratam como se eu fosse uma «rapariga-rapaz», ou alguém sem género, não sei explicar bem. Porém, respondi ao Gustavo que eu este ano já não iria ser todo o terreno, ao que este responde: você até marca tem daqui. Você é militar!», o que reforçou ao olhar a minha colega: «Essa aí?! Não tem como! É dura memo. Tem marca62 daqui e tudo!», o que me inquietou, ao contrário dos outros anos, pois ansiava, desta vez, por uma estadia menos atribulada. Na altura do acidente de moto, G. ao ver a minha cicatriz na perna, disse meio a brincar, que eu deveria fazer uma tatuagem ali. Eu respondi-lhe: «Claro! Vai ser São Tomé e Príncipe forever e ao lado um coração». E rimo-nos muito.

2.11. A casa que tem a minha perna

Não queria deixar de partilhar o que senti assim que me sentei, à minha chegada em 2014, à mesa da casa onde estivera a recuperar do acidente. Falavam-me sobre isso, que queriam ver a cicatriz […]. Dei por mim, a agarrar a perna, enquanto falávamos. Agarrei-a no sítio exato onde costumava agarrá-la com as dores, e fiz a mesma expressão facial arreganhada. Era um gesto que nunca mais tinha repetido, tinha-o esquecido. Mas ali, àquela mesa, com aquelas pessoas e

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naquela conversa, dei por mim a agarrar uma perna como se esta ainda estivesse doente. Isso só me aconteceu dessa vez, no primeiro encontro, e durante a minha estadia não o voltei a sentir. Ao ouvi-los falar da perna, colocava um pouco mais de pressão na parte detrás do músculo, procurava não o esticar, tal e qual quando me levantava da cama para vir almoçar, a proteger os pontos […]. Fiquei mesmo surpreendida: como é possível os nossos gestos esquecidos renascerem assim, pelo facto de voltarmos a um certo lugar! Quase voltei a sentir a dor e senti a impressão da pele a esticar! Que raio! Já em casa, à noite, fiquei a pensar nos corpos das pessoas nas roças. Se eu sinto isto por causa de uma simples cicatriz na perna….Nessa noite, sonhei uma mulher a chegar a um abismo num deserto […]. Era um local onde ela já tinha estado, sem saber. Agachou-se e involuntariamente soltou um grito infinito. Não era um grito qualquer. Era o grito de quando nasceu, naquele local, tal e qual. Era um grito seu, mas era também o grito do local, que ficou lá guardado, entranhado no pó da terra. E ela gritava assim, tal e qual a quando nascera, porque eram os sons que o lugar lhe pedia, não era nem mais nem menos que isso. O sol queimava-lhe a cara, de perfil, e a pele arreganhava-se. Depois de acordar, pensei como os locais têm nomes e cores e sons e vida, alma e gritos e dores. Aquele local na casa de Rosa, à mesa, tem as minhas dores na perna. Tem um pouco a minha perna. Tem sem dúvida muito de mim. Impossível não voltar a pensar nos corpos das pessoas nas roças. Que ficaram nas roças, enterrados. Nos castigos, nos bebés que nunca chegaram a nascer. Há bebés que nunca chagaram a nascer, contam-me. Haverá as histórias das roças no pó da terra das roças […]. Haverá muito mais do que pele a esticar no corpo da mulher que se senta ali assim, a contar-me «história di castigo». Sentir-se-á a escravatura, a história do país, as revoltas, as lutas, os partos, a morte, no chão das roças, nos corpos das pessoas das roças […]. São Tomé tem muito de pele rasgada. Nas roças, mas também nos quintais, sentir-se-á o bater dos corações se encostarmos os ouvidos ao chão, se provarmos o pó da terra? Há cheiros e sons que ficam connosco para sempre. Ainda ontem, ao rever tudo isto, inspirei clorofila. De verdade. Estava húmido e abafado. De vez em quando acontece-me. STP forever.

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CAPÍTULO 3 - NO QUINTAL DE DONA ROSA: APRESENTAÇÕES E O

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