• Nenhum resultado encontrado

No presente trabalho, analiso momentos nos quais a identidade étnica é «undercommunicated» e momentos em que a mesma é «overcommunicated», seguindo expressões de Eidheim (1969 in Eriksen, 1993:29), utilizadas a propósito do seu estudo entre os sami da Noruega, um contexto aparentemente longínquo. Este autor demonstra como a identidade étnica era vivida entre os sami, em segredo, escondida quando em relação com o grupo mais valorizado, precisamente porque os sami eram tradicionalmente considerados «inferiores e sujos». Esta era uma «identidade estigmatizada» (ibid). Tal como acontece com as identidades de pessoas de estatuto mais desvalorizado em São Tomé e Príncipe, como os antigos contratados, os seus descendentes, e os angolares. «This kind of self-contempt is characteristic of powerless groups in polyethnic contexts», refere Eidheim (ibid). Porém, o facto da dimensão étnica das relações poder ser escondida, não significa que esta não possa surgir e ser até realçada pelos próprios atores sociais, noutras relações.

Os sami reclamam-se, em espaço público, noruegueses, tal como os descendentes de cabo- verdianos se definem por vezes enquanto são-tomenses, na reivindicação de certos direitos. Ainda no mesmo sentido, em que muitos cabo-verdianos e muitos forros da elite se reclamam, muitas vezes, próximos da «europeidade» – como os angolares se reclamam perto da forrosidade – apostando na incorporação de estatutos mais valorizados, «regarding acess to political power and economic resources» (Eriksen, 1993:28). Há assim momentos em que a etnicidade não é relevante na definição de determinada relação social e outros em que o é. Como refere Eriksen, não há um acordo no modo como as relações étnicas são definidas e vivenciadas, daí o foco na negociação e manipulação das categorias, não em termos absolutos, é certo, uma vez que existem sempre relações de poder (1993:30-32). Tal como Eidheim e Eriksen, também autores como Cohen (1974), Hall (1993) ou Bhabha (1990), olham a pertença étnica – pessoal e grupal – como reflexo de opções estratégicas de pertença a comunidades

Pode alguém ser quem não é

19

socialmente mais valorizadas e de maiores recursos, acentuando a natureza socialmente construída35 da etnicidade e a sua permanente reconfiguração situacional (cf. Smith e Hutchinson, 1996). Cohen (1969, 1981), Eriksen (1993, 1998), entre tantos outros, realçam como a par de processos de abertura étnica, poderão existir, simultaneamente, processos de reinvestimento em pertenças étnicas mais fechadas. Ou seja, extinção e revitalização étnica cruzam-se, alimentam-se e coexistem em situações de encontro e de mudança.

Como já referi, as categorias atrás enunciadas influenciam a vida e as escolhas que se fazem, e não se podem fazer, o que se reflete nos percursos de mobilidade socioeconómica e estatutária. Pretendo perceber esta relação, bem como a relação destas categorias com outras identificações dos sujeitos. Exemplifico momentos de reforço de certas categorizações, os seus vários sentidos, as estratégias de as usar, mesmo com velhos princípios em ação, bem como os contextos de criação de novas categorias; e como estas se relacionam com novas e antigas significações. Analiso assim, tanto os momentos de fraca etnicidade, bem como os momentos de reforço étnico.

Pretendo responder às seguintes problematizações: como se relaciona, em São Tomé e Príncipe, a mobilidade socioeconómica com a mobilidade étnica? As pessoas que têm percursos de ascensão socioeconómica, contribuem para a reconfiguração e/ou reforço de determinada categoria étnica, e se sim, de que modos? Existe mobilidade étnica e se sim, como se dá esse processo e como se «sustentam/argumentam» as pertenças categóricas? Como se encaixam e desencaixam, sujeitos, entre categorias? Que estereótipos perduram do passado? Como se reformulam, redefinem, apagam, reforçam? Que peso têm estes e outros estereótipos, nos trajetos das pessoas e nos seus encontros relacionais atualmente? E como contam, entre outras coisas, no acesso aos «empregos da cidade»?

Privilegio, na minha a abordagem, como é comum na antropologia, a autodefinição dos meus interlocutores, comparando o que dizem e fazem sobre «si mesmos» – ao nível dos discursos, e das práticas, das afirmações e das negações – com a heterocatalogação, ou seja, com o que dizem e fazem «os outros» sobre uma pessoa que é inserida em determinada categoria. Como referem por exemplo, Holy and Stuchlik (1983 in Eriksen 1993:16), uma coisa é o que as pessoas dizem outra o que fazem, e cabe aos antropólogos tentar perceber essa relação.

O meu objetivo é o de aprender as dinâmicas da etnicidade, pelo que atento também nos interstícios das categorias e as suas ambiguidades, as suas «descontinuidades», no seguimento

35

Os críticos sugerem a sobrevalorização dos «interesses de momento» e a desvalorização de sentimentos de pertenças étnicas mais permanentes (cf. Smith e Hutchinson, 1996).

Pode alguém ser quem não é

20

de Eriksen (1993). Este autor afirma que, ao escolherem-se estudar categorias étnicas e ou grupos, em certos contextos, poderá contribuir para a reprodução e reificação das barreiras e estereótipos que as próprias categorias encerram, sendo por isto necessário entender-se os «interstícios» das mesmas. Alerta também para o facto de que o estudo da dimensão étnica das identidades, poder impedir a observação de outras dimensões da atividade social, eventualmente mais relevantes para as pessoas e grupos em causa, por isso é importantes analisar várias dimensões, em relação. Segundo Brubaker, a etnicidade do dia-a-dia poder tornar-se invisível aos olhos dos «estudiosos da ação coletiva ou da violência étnica», mas esta tem a sua relevância, tornando-se perceptível se mudarmos a escala do olhar para uma dimensão mais pequena, típica da antropologia (2004:2). Neste sentido, podemos falar de uma espécie de etnicidade banal, que nos remete para o conceito de «nacionalismo banal» descrito por Michael Billing (1995), conceito seguido, por exemplo, pelo antropólogo português João Leal na sua análise da açorianidade nos Estados Unidos da América e no Brasil (ex.2007b). A etnicidade, tal como o nacionalismo, são muitas vezes banais, do «comum», e não constituem «preocupações diárias» dos sujeitos. Porém, a banalidade, não atesta de modo nenhum a sua irrelevância, nem sequer a sua pouca importância na forma como a etnicidade e o nacionalismo são experienciados pelas pessoas. Não significaria sequer, segundo Brubaker (2004), que parte da vida social não se estruture - de forma difusa e desigual – tendo em conta linhas étnicas. Demonstro, na minha etnografia, os modos como a etnicidade «acontece» no dia-a-dia, numa variedade de lugares (cf. Brubaker 2004:2). Uma vez que a etnicidade é um processo dinâmico, que emerge e se revela nas relações sociais quotidianas, este fenómeno apenas será apreensível pelo cientista social que mergulha no seio da «local life» – o espaço de excelência da sua construção e negociação (Eriksen, 1993:11), que é o que pretendi fazer. Nesta análise, mostro a relação entre pessoas em diversos contextos de interação, o que permite observar tanto os lugares fronteiriços, como os reforços categóricos e as estereotipizações, isto é, um conjunto de «conhecimentos» tidos a priori sobre determinada pessoa/categoria. Assim atento quer na fluidez categórica quer no peso efetivo das categorizações étnicas e «raciais» que, no caso de São Tomé tiveram reforço no contexto colonial e noutras situações de mudança, da pós- independência ao presente.

Interessa-me a etnicidade do dia-a-dia, que se encontra incorporada e expressa no quotidiano, entre pessoas anónimas e «from below» (Hobsbawm 1990:10 in Brubaker 2004:2), e não apenas aquela que está presente em projetos políticos oficiais36 ou em retóricas mais ou menos

36

Em São Tomé, há uma certa materialização folclorizada – acentuada pelo contexto de promoção do turismo no arquipélago – do que supostamente seriam «danças, músicas e tradições» de determinados «povos ou raças» (expressões emic), que nos revelaria algo acerca do fenómeno étnico do dia-a-dia nas ilhas e acerca do modo como

Pode alguém ser quem não é

21

consolidadas. Os «especialistas da etnicidade»37 evocam grupos, «call them into being» (ibid:10). Ao se reificarem os grupos, contribui-se precisamente «to producing what they apparently describe or designate» (cf. Bourdieu 1991c:220 in 2004:10). Seria preciso estar atento às dinâmicas do group making, analisando-se também estes processos enquanto projetos sociais, culturais e políticos que transformam categorias em grupos ou em altos níveis altos de «groupness» (ibid:10). Como afirmou Hobsbawm (1990:10, in 2004:2) torna-se relevante apreendermos o nacionalismo – e acresente-se a etnicidade - «in terms of the assumptions, hopes, needs, belongings and interests of ordinary people, which are not necessarily national and still less nationalist» (Hobsbawm 1990:10 in 2004:2). Na presente etnografia, parto da

análise do mundano e das rotinas38 das pessoas que acompanho - e com quem convivo e vivo -

olhando as suas/nossas socialidades enquanto «experiências vividas» (Viegas, 2007:54), relacionando o que se diz e faz com os «processos históricos vividos» (2007:23). Viegas - no seguimento McCallum (ex. 1999; 2001), Strathern (ex.1988; 1996), Toren (1996a:74 in 2007:54) - propõe uma visão crítica à natureza abstrata do conceito de sociedade e ao modo como é muitas das vezes definido: como se fosse uma entidade que se posiciona exteriormente e acima das pessoas. Como refere Strathern, o indivíduo não existe enquanto cogito puro, nem enquanto subjetividade, mas enquanto «ser no mundo» (1996:51 in 2007:57). Viegas, no seguimento dos autores referidos, propõe uma abordagem teórica que volte a centrar o estudo da sociedade na socialidade, entendida enquanto «experiência vivida» (2007:54). Viegas recupera uma abordagem fenomenológica, à la Merleau-Ponty ([1945], 1999): «o conhecimento do mundo e os processos de identificação e orientação nesse mundo são de uma única ordem, que é a da experiência vivida» (Merleau-Ponty [1945], 1999 in 2007:55). McCallum argumenta que a socialidade não seria ainda um conceito teórico por não se basear ainda numa base metodológica consistente (2001:4 in 2007:50). Porém existem «plataformas» ou pressupostos teóricos comuns aos autores que utilizam este conceito: o não conceberem um sujeito no vácuo, sem contexto, histórico e social; o modo de olhar o social, que não seria nunca um pós-fato nem poderia ser assim analisado; a rejeição da ideia de que «para que o social exista, tenha que ser suscetível de uma reificação, como entidade agregativa de partes que comporiam um todo» (cf. McCallum, 1989: 24; 2001:4 in 2007: 50).

a etnicidade é experienciada pelos atores «anónimos».

37

As análises sobre os «especialistas da etnicidade» ou os «entrepeneurs etnopoliticos», possibilitam olhar para o lado performativo da etnicidade, o que também seria relevante analisar, tal como afirma Bourdieu (1991c: 220 in Brubaker 2004:10).

38

No seguimento das propostas malinowskyanas, não há uma análise central nos «eventful» (cf. Viegas, 2007). Esta autora faz referência ao trabalho de autores como Gow (1991), Casten (1997), Mccallum, (1998, 2001), Overing Passes (2000b), que se inspiraram em autores como Meyer Fortes (1981), Malinowsky (1922), entre outros (cf. Viegas 2007:38).

Pode alguém ser quem não é

22

Esta proposta parece-nos de algum modo próxima da visão de Brubaker, ao propor estudar a «etnicidade sem grupos», como explico em detalhe à frente. Roy Wagner (1974), por exemplo, nos anos 70, e referindo-se aos povos das terras altas da Papua Nova Guiné (Melanésia), propõe precisamente o conceito de socialidade como uma forma de privilegiar os modos de constituir e agir socialmente, em alternativa «ao modo de conceber os sujeitos a viver em grupos» (1974:97 in 2007:52). Esta insatisfação face ao conceito de sociedade fez-se sentir entre os antropólogos desde os anos 70, nomeadamente num célebre debate entre Viveiros de Castro, Seeger e da Matta (Seeger et al. 1979 in 2007:53). Estes autores avançaram com alternativas ao conceito de sociedade «em torno do significado simbólico do corpo, da temporalidade» e da «construção da pessoa na conceção da vida ameríndia», porém abrangível a outros contextos (cf.2007:52). Segundo Viegas, a «visão antipredicativa inscrita no conceito de experiência vivida», possui a vantagem de «permitir compreender como as pessoas se situam no mundo, ao mesmo tempo que objetivam a sua vivência histórica à medida que nele se situam» (2007:57). O conceito de socialidade possibilitaria, a concretização do projeto comparativo, num debate abrangente, que não reduziria questionamentos a contextos regionalistas, nem oporia «mundos como ´ocidente` e os restantes» (ibid:49), no seguimento de autores como Pina-Cabral (ex. 1991a), Gregor e Tuzin (2001a), Gringrich e Fox (2002), Melhus (2002), e como outros que estudam especificamente o contexto ameríndio, como Viveiros de Castro (1999) e Mccallum (1999) (cf. Viegas, 2007:49). O âmbito específico da utilidade desta postura, para o estudo do contexto ameríndio, que é o contexto da autora, não impossibilita que o recupere para outros contextos, nomeadamente para o «debate comparativo […] dos conceitos de sociedade, cultura, e até mesmo de identidade», olhando com o mesmo rigor «processos de contextualização historicamente informados e regionalmente específicos» como refere o antropólogo Pina- Cabral (1991 a: 86 in Matos Viegas 2007: 49).

Outline

Documentos relacionados