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A visita a papá João: a terra que une, a terra que desune Troca de produtos e de saberes

CAPÍTULO 3 NO QUINTAL DE DONA ROSA: APRESENTAÇÕES E O QUOTIDIANO

4.14. A visita a papá João: a terra que une, a terra que desune Troca de produtos e de saberes

Em 2014, fui com Josefina a Fernão Dias, visitar papá João «um cabo-verdiano que conseguiu sair da roça», disse Josefina, e que residia em casa própria,208à beira de um campo que cultivava. Connosco ia também Mimi, uma rapariga que não voltei a encontrar. Ao chegarmos, papá ficou muito satisfeito por nos ver. Encontrava-se muito perto de sua casa, a trabalhar no

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«Num dia em que fui almoçar a casa de Rosa, ouvimos as notícias de rádio, muito alto, o que não era comum. Discursava o ministro das finanças, que era acusado de corrupção. Este disse que ´não roubou ou lesou o Estado`. Rosa ia comentando o que ouvia, o que também não era comum fazer, normalmente era a filha e os ´homens`». Rosa e a filha estavam bastante mais interventivas em 2014.

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A este nível, remeto para uma serie de entradas dos diários de campo: «João fala com Arlindo de política, das vantagens e desvantagens do comunismo. João num outro dia apareceu com uma t-shirt do Che-Guevara. Arlindo reagiu muito entusiasmado: ´João arranja uma para mim, que eu também sou revolucionário!´»; «Um outro dia, na cidade, Rui dizia-me ao observar um homem que passava: vê só doido fala sozinho na estrada!`. O homem dizia o seguinte: ´São Tomé, São Tomé, essa terra tem problema. São Tomé, São Tomé, somos todos primos, ´tamos unidos. São Tomé, São Tomé, mais depressa, mais devagar´. Rui, irritado, gritou da janela do seu táxi: ´a terra não tem problema! É sistema, é governação!, sendo este um discurso muito comum tal como ´o são- tomense não gosta de ajudar o outro são-tomense`».

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seu campo, estando também presente um seu amigo, ambos trajavam roupa de trabalho. Cumprimentámo-nos do seguinte modo: «Estamos aqui, só com fé», disse Mimi e Josefina concordou. «Tem de ter fé, se não, não avança. O peixe miúdo nunca ganha nada…estamos aqui mas só com fé», respondeu o papá João. Mimi retorquiu: «É, peixe miúdo nunca tem nada». Josefina concordou de novo, assim como o amigo de papá João e eu própria disse que sim.

Papá João passou a mostrar-nos o que tinha ali plantado no seu quintal (não murado, porém), enquanto os seus netos espreitavam da janela da casa. Mimi demonstrou muitos conhecimentos sobre as plantas e seus fins medicinais, conquistando a admiração dos dois homens: «Essa é muito esperta!», disseram. Josefina manteve-se em silêncio, pois não sabia os nomes das plantas, nem os seus fins. Mimi, visivelmente satisfeita, contou como tinha sido criada numa roça, fazendo parte de um família humilde: «Lá por estar na cidade, não se esquece! Eu também fui criada [na] roça!» insistia.

Note-se como a sua vivência na roça, a pertença a uma família humilde «de roça», se pode transformar, contextualmente, em capital social e cultural, o que também já vimos acontecer com José e Arlindo. A roça, a vivência na roça, também pode ser concebida como algo a valorizar-se, até porque Mimi, José e Arlindo possuem uma série de conhecimentos sobre plantas curativas e medicinais, o que é muito valorizado nas ilhas por pessoas de todos os estatutos étnicos e socioecónomicos.

No regresso a casa, já no quintal, Josefina descreveu a visita a Rosa: «Papá João conseguiu erguer essa casa há dois anos! Mamã, ele [dantes] ficava em casa no chão mesmo. Joana, ele morava mal, sem condições. Mamã ele agora tá bem, tem tudo plantado. Esse homem é muito trabalhador», referiu. Desde que Josefina travou este conhecimento, devido ao seu trabalho numa empresa de prospecção relacionada com a construção de um porto de águas profundas na zona de Fernão Dias, Rosa passou a comprar no mercado «diretamente das mãos da esposa de papá João», pois assim certificavam-se da «origem dos legumes e de como são tratados», referem mãe e filha. «[…] a mulher do papá João vem de Fernão Dias com as coisas para vender. Mulher dele, fica lá no mercado a vender. Quietinha. Ela é bem quietinha. Coitada. É mulher batalhadora mesmo. É, essa gente trabalha mesmo. Ela vem todos os dias de lá, para vender no mercado, todos os dias, vai e vem» explicou Rosa. «A mãe dele era de Cabo Verde, trabalhou muito nas roças, nas dependências. Ele ainda chegou a trabalhar também», acrescentou Josefina.

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«Mamã, ele explica plantas todas, sabe muito esse senhor!». «É», confirmou Rosa.

Josefina contou-me que o visita mais ou menos de dois em dois meses, abastecendo-se de uma variedade de legumes e frutos e de plantas medicinais que este lhe oferece comob«abóbora, tomate, beringela, chá chalela, chá outro». Josefina dividiu comigo alguns dos produtos que o que papá lhe ofereceu, como plantas para chás tradicionais, legumes e frutos. Acabei por fazer uma sopa, na minha casa na cidade, e ao longo da semana fomos falando do estado da mesma: «Joana já tomou sopa? Ficou boa? Ainda tá boa? Já acabou sopa? Bebeu chá?», perguntavam com insistência Rosa e Josefina. No mesmo dia da visita a papá, Rosa tinha-me oferecido umas plantas para eu curar um eczema nas mãos, juntamente com uma pomada «tradicional», pelo que a par das questões sobre a sopa e os chás, também me perguntavam diariamente sobre o tratamento com a tal planta: «já aplicou? É todas as noites! Planta tem de deitar suco, percebeu como se faz?», dizia Rosa.

Josefina levou a papá bules e garrafas de água de plástico vazias, que serviam para «apanhar água», usável a nível doméstico e para a agricultura, uma vez que este não possuía água corrente em casa, nem luz, como é habitual.209

4.14.1. «Estes já tomaram terra deles»

Depois da visita, quando voltávamos em direção à cidade, Josefina mostrou-se furiosa com os cercados que ia vendo, comentando: «estes já tomaram terra deles». Esclareceu, a meu pedido, que a terra naquela zona era muito valorizada, pelo que havia uma série de gente «a tomar terra que não lhes pertence, pessoas que não tinham aqui terra, pessoas grandes, puseram seu nome, para receber indemnização!», disse revoltada.

4.14.2. Plantar no meio da cidade

Antes de entrarmos na cidade, Josefina enfiou o carro no terreno do Sr. Luizinho, um cabo- verdiano com ligações à Associação Morabeza, que entrevistei em 2012. Fiquei perplexa, pois não sabia que se conheciam.

Jaf: «Conheces Luisinho?

Josefina: «Nós temos cafezeiros e Sr. Luisinho tem máquina para moer. Nós temos 20 kg para moer. Conheço sim, São Tomé é muito pequeno!»

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Eu também juntei algumas garrafas, futuros bules, a pedido de Josefina. O mesmo me pediam José e Rui. Registe-se como é profundamente desigual comprar água engarrafada- a que os portugueses bebem - para oferecer o recipiente como bule para quem precisa de ir buscar água longe de casa, o que só de si nos demonstra a profunda desigualdade estatutária entre são-tomenses e portugueses nas ilhas.

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No fim da transação, Luisinho enviou «cumprimentos à sua mãe».

Relembro aqui a minha visita a Luisinho que fiz com o objetivo de o entrevistar, bem como à sua mãe e esposa, com quem este residia, recorrendo a um excerto do diário de campo: «A mãe de Luisinho anda no campo, ´a plantar hortaliças`, referiu L. Julgo que é perto da casa. A sua esposa não tem tempo para entrevistas pois ´tem o café no forno`, disse-me L. Possuem uma impressionante fábrica artesanal de café em casa, e empregam bastantes pessoas. À medida que vou entrando, vejo mais pés de café […] no chão muito café a secar, quase parece uma roça. Vejo ainda uma divisão da casa com máquinas e muitos trabalhadores em volta das mesmas,

homens, mulheres e crianças. […] plantam mesmo no meio da cidade tal como os forros de São

Gabriel» (excerto de diário de campo de 2012).

4.14.3. Ainda o que os une: «vontade de plantar»

Escrevi o seguinte no diário de campo: «cabo-verdianos, descendentes e forros, une-os uma forte ligação à terra e aos conhecimentos sobre a natureza e os usos das plantas (comer, curar e proteger), práticas e interesses que ultrapassam estatutos étnicos e de classe. Josefina, José, Rui, Rosa, Arlindo e tantos outros, têm um verdadeiro interesse nas atividades relacionadas com a terra, o que no caso de José, desde que ficou desempregado na cidade, acaba por ser também uma atividade de subsistência. É uma atividade para a qual todos olham com muito respeito, também por estar inequivocamente associada às atividades dos seus ascendentes, quer os avós de José, contratados nas roças coloniais, quer os pais de Rosa e de Rui, agricultores na própria gleba. Qualquer um deles possui, na actualidade, um ou mais lotes de terra. No caso de Josefina, as atividades agrícolas têm também um estatuto de um hobby prazeroso: «Eu gosto, às vezes, de plantar no meu quintal […]. Eu tenho mesmo vontade de plantar, sabes?», disse-me, referindo-se a uma espécie de vontade inapta, que lhe estaria no sangue, herdada dos seus ancestrais. E como dizem Rosa e restantes interlocutores «quando se sente vontade, tem de se seguir, é algo a pedir», pois em STP levam-se «as intuições» muito a sério.

Perguntei a Josefina o que plantava no quintal. Esta respondeu-me, evidenciando os poderes curativos do que planta – matéria que estava a aprender - usadas para a saúde, para a alimentação tradicional, como para usos cosméticos, como máscaras para o cabelo. O que plantava revelaria também o seu estatuto e da família, até porque não seria qualquer um que teria plantadas no jardim rosas de porcelana, flores que «exigem muita água», como referiu, e que se poderiam oferecer às visitas cerimoniosas. Josefina descreveu, em entrevista, o que tinha plantado: «Algumas plantas, algumas árvores de frutos, goiabeiras, sape-sapeiro, tem uma mangueira, que plantei há 3 anos, é preciso esperar mais 3 anos para dar mangas. Há 2

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meses plantei maracujá, ainda tá muito pequenino. Também plantei pitangueiras. Fiz viveiros de mangueira, uns 10, de romã também, vamos ver como fica daqui a 4-5 anos. Também tenho plantado flores, temos limoeiros, 1 laranjeira, depois temos as plantas que tradicionalmente se diz que têm virtudes curativas: folha anina, folha madrusso. Se tem ferida ou se queima, esmaga-se na mão e põe-se na ferida. Para a tosse também diz-se que é bom comer esta folha misturada com a folha madrusso e um pouquinho de sal. Depois beber água. Eu experimentei uma vez, mas como não deu sinal de melhoria, parei, desisti. Também já me disseram essa folha, espremer para colher com óleo de palma e tomar a noite, mas não me fez efeito, em mim não resultou, há pessoas que resulta. Temos ainda folha de micocó, para fazer omelete tradicional, há pessoas que agora têm feito sopa mas aqui em casa não se faz sopa com folha de micocó. Também se usa para fazer feijão à moda da terra. E a flor da folha de micocó seca é pisada, com sal e tempero, para o feijão à moda da terra. O calulu eu não tenho certeza se se usa flor da folha de micocó…eu sei que é mais folha de mosquito…já tivemos, mas só deu uma vez. É tipicamente o que temos. Ah, e também temos aloé vera. Muito de vez em quando uso para fazer máscara no cabelo, já tomei gotas, ajuda a limpar, mas não tenho tomado. Temos também rosas de porcelana no quintal», esclareceu.

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