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Os outros: os que fazem barulho e têm mistura, os que «ficam a ver só!»

CAPÍTULO 3 NO QUINTAL DE DONA ROSA: APRESENTAÇÕES E O QUOTIDIANO

3.3. Os outros: os que fazem barulho e têm mistura, os que «ficam a ver só!»

Rosa afirmou que gostava de morar ali: «Aqui é uma calma. Não tem aquelas pessoas que no fim-de-semana pegam no rádio muito alto e ficam a fazer festa. Aqui não.76 Nem [tem] vizinhos a incomodar». Pergunto-lhe mais informações sobre a vizinhança: «vizinhos? Damos bem quando encontramos, ´bom dia, está tudo bem? Muito obrigada`, assim. Cada um tá na sua casa, não há cá essas conversas do diz que disse». Os seus vizinhos diretos, os da sua rua, teriam «classe e educação», ao contrário daqueles dos «outros lados»: «Há outras zonas que são in-supor-táveis [soletra]. «Exemplo? [responde-me]. No Riboque.77Há lá muita confusão, casas ficam muito próximas umas das outras. Eu aqui estou longe da confusão».

Rosa, num outro momento, comentou com tio Silvino, visita cerimoniosa do seu quintal, a

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A Trindade é uma importante vila de São Tomé, capital de Distrito de Mezochi e bastião da forrosidade. No tempo colonial aí foram construídas residências, um posto sanitário, a igreja, a escola primária, o mercado, o posto da polícia, entre outros edifícios.

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Localidade onde entrevistei vários forros agricultores, que aí cultivavam, em 2012, as suas próprias hortas.

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A sua rua não é considerada «popular».

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É um bairro muito conhecido, situado muito perto da capital, considerado tipicamente de forros, porém forros de vários estatutos socioecónomicos, inclusive mais populares.

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propósito de uma festa78 que esta visitara no fim-de-semana anterior, numa localidade «mais abaixo»: «Tio, nesse lugar tinha tanta gente, que tia Julieta [a esposa] não teria aguentado […]. Tinha muita gente, barulho, rádio com música alta. Não dava para a tia Julieta», a quem Rosa considera uma «senhora de gosto requintado», tal como a avó Bibi, cuja casa Rosa frequenta.

Ainda a este propósito, registei a conversa entre Rosa e uma enfermeira,79 no seu quintal, no fim de um dia de Março de 2012: «Primo Isildo construiu a casa lá em baixo [Riboque], diz que não está a gostar nem um pouco. Eu disse-lhe, quando ele estava a construir [a casa], porque não a construía cá em cima», referiu a enfermeira. Rosa respondeu-lhe: «É, ele não ouviu os conselhos. Aquilo lá, as pessoas são muito ignorantes! Casa aqui, casa aqui, casa aqui, em comboio,80 não dá. As pessoas ficam sentadas, levantam, vão sentar, ficam ali só, não trabalham, não vão à luta. Ficam a ver quando pessoa entra, quando pessoa sai, o que tem pessoa, ficam só a ver. ficam a ver só! São muito ignorantes», disse Rosa, referindo-se ao controle social muito apertado, bem como a um estilo de vida «sem interesse e menor» que associa à ignorância de pessoas que classifica enquanto pertencentes a «outra classe» socioeconómica mas que podem ter, no entanto, o mesmo estatuto étnico que a própria. Estes seriam «forros populares» ou jiquiti, uma categoria que representa tanto a popularidade como a autenticidade, e que aprofundo no capítulo que se segue. O olhar de quem fica só a ver, não estaria relacionado apenas com o controle social exagerado. Na obra de Paulo Valverde (ex. 2000:50) lemos várias referências ao olho e ao olhar e ao seu simbolismo nas ilhas atlânticas: o olho da pessoa que fica a ver só - o que não seria um ação inocente - estaria relacionado com a capacidade de fixar, reter e roubar os pertences mais íntimos de cada pessoa observada, em última instância, a «sua pessoalidade humana», o próprio espírito e alma, esvaziando-se a pessoa, «causando-lhe doença ou morte» (ibid). Assim, os olhos teriam um papel de destaque na cosmologia são-tomense, estando relacionados com intenções de «fazer o mal» (ibid). Voltarei ao tópico dos olhos e do feitiço, num outro capítulo, pois esta é uma associação recorrente nas histórias que Arlindo contava ao serão, no quintal de Rosa, ao alertar-nos sobre os poderes sobrenaturais de certo tipo de gente.

Ainda sobre a conversa entre a enfermeira e Rosa:

Jaf: «Onde mora o primo?», perguntei. Rosa: «Lá na roça….quer dizer, não é bem roça, é lá

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Tratava-se da festa de Santo Isidoro, o santo da agricultura, cuja festa foi realizada na localidade de Ribeira Afonso, considerada «terra de angolar» e cuja visita descrevo melhor no capítulo seguinte.

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Tinha ido mudar-me o penso da perna, devido ao meu acidente.

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numa zona…ao pé do Riboque. Joana conhece Riboque?».

Não deixa de ser significativo que se use a expressão «roça» para se designarem lugares menos valorizados, que se consideram mais populares, bem como o facto de se usar o termo casas- comboio relativamente às casas desses bairros, termo pelo qual se designam as antigas sanzalas das roças coloniais, os lugares mais desprestigiados das ilhas, sobreposição categórica cheia de significados. Os «mais populares», mesmo que de um estatuto étnico mais valorizado, como os forros, poderão - por exercerem certas práticas e comportamentos, por habitarem certos bairros - aproximar-se perigosamente dos «sanzaleiros», dos gabons, tongas ou misturados, ou dos seus descendentes, categorias muitíssimo desprestigiadas, como já se explicou (ver capítulo introdutório).

Em São Tomé, nenhuma categoria ou pertença está assegurada, sendo o contágio identificatório um tema dominante, o que não está de modo algum desligado da história do próprio

arquipélago. Relembre-se que Maria também denomina a cidade de São João dos Angolares81

de roça, terra que é a sede de distrito de Caué (a sul), de onde vem a sua sobrinha Joana, menina de um estatuto desvalorizado, mista de angolar e cabo-verdiano. Neste caso, São João dos Angolares seria roça por ser «terra de angolares» e de «não-forros».

Rosa e Maria, como tantos outros interlocutores, associam um determinado estatuto socioeconómico e étnico a um certo «modo de ser», a um estilo de vida, o que também se associa a determinados lugares de residência, onde «a gente se não é ignorante, torna-se», como que por contágio. As pessoas mais populares – mesmo que forros - habitariam lugares – residenciais, existenciais – considerados ruidosos, constituem-se enquanto corpos que se apresentam em «alto volume», com pouca diferenciação entre si, pessoas «que não se aguenta!», segundo expressões de Rosa e de outros interlocutores. O bairro do Riboque, considerado um bairro tradicional di forro, sendo por isto valorizado em certa medida, é também por outro lado, uma localidade de forros demasiado populares, «forro que já tá muito misturado!», ao nível de costumes, práticas, estatutos.

3.4. Voltemos às apresentações: os filhos de Rosa e os filhos do marido que «a gente teve

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