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Pode alguém ser quem não é

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Como expliquei, parto do estudo de categorias, categorias de mesmice, que são simultaneamente categorias de «otherness». Em termos de perceção identitária, as pessoas incorporam tanto o que consideram semelhante como a alteridade: uma e outra não se constituem em termos absolutos, mas podem adquirir outros significados e valores em contexto, como demonstrarei. O «outro» - que no fundo, também seria o mesmo, seguindo, por exemplo, Simon Harrison (2007) - «residiria em mim, no meu corpo», o que seria visível nas ambiguidades classificatórias em São Tomé e, em especial, numa série de práticas corporais, como por exemplo em processos de possessão espiritual seja ou não em contexto de Djambi, como tão bem exemplifica Valverde (2000). Como explica este autor, em certas situações sociais dá-se a incorporação – de outros, de mesmos - «literal» e simbólica, pois«muitas vezes a incorporação de identidades é tão profunda que ultrapassa a própria morte corporal» (2000:XXIII). Mortos e vivos, de diferentes estatutos étnicos, encontram-se no mesmo corpo, um «espaço» onde se revelam afirmações de pertença e diferenciação étnica onde não supus encontrá-las. Este modo de viver as relações étnicas, no corpo e nos espíritos de quem vive além da morte, permite-me compreender melhor as ambiguidades das categorias em São Tomé, que ultrapassam binarismos dicotómicos. São pertenças que surgem em espaços-tempos que nos permitem observar o que está para lá dos discursos e é sentido nos corpos. Estas «ambiguidades perturbadoras» (Jameson 1991:44 in Valverde 2000:24), são as do dia-a-dia e tornam-se de algum modo mais claras quando em ação no corpo de um curandeiro, no corpo de uma criança em transe, no silêncio e nas ausências das conversas, uma vez que muitas são as palavras que não se podem proferir, uma vez que «tudo o que tem nome existe», como se diz em São Tomé, pelo que é preciso não evocar determinadas realidades. Tal como afirma Bourdieu (1979 in Curto et al, 2010: XXII) é imperativa a «necessidade de inquirição da lógica das práticas», produto de processos sociais específicos que irremediavelmente se reproduzem por intermédio dos corpos. Acrescento que os corpos, passam a ser, isto é, ganham existência em si, são espaços de vivência e transformação e não apenas intermediários. Bourdieu olha-os como «corpos históricos por excelência». Neste sentido refere que os «corpos julgam, e fazem- no de acordo com princípios de classificação, categorias de análise e perceção, que resultam de condições históricas e sociais precisas e que se traduzem, de acordo com a terminologia do autor, em disposições individuais, formas de agir e interpretar o mundo, produto de uma experiência prática», resumida no conceito de habitus (ibid.). Porém, hoje sabe-se que os próprios corpos são bem mais que traduções ou repositórios de interpretações do mundo que representariam. Os corpos de que falo na minha etnografia são corpos «no mundo», que o criam, tanto quanto são criados por este. Ou seja, na mesma linha do conceito de socialidade

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atrás explicitado, podemos dizer que estes corpos ganham existência na relação vivida, nomeadamente em processo de «possessão» espiritual. Estes corpos são tão estruturantes de um contexto, quanto são estruturados pelo mesmo. A sociedade ou a história não estão acima destes corpos, isto é, o habitus expressa uma condição histórica e social bem como reflete padrões de socialização, tal como referem Curto et al (2010:XXII). E vice-versa: o habitus também cria contextos históricos e padrões de socialização. Sem dúvida que, o habitus não deve ser considerado, como referem estes autores, «como um conjunto de disposições relativamente homogéneo, porque associado a uma dada posição de classe», mas deve ser olhado tendo em conta diversos fatores, em si e em interação, e o papel que detém na formação do individuo e de grupos, como a etnicidade, o género, a idade (ibid: XXXI). Em São Tomé e Príncipe, muitas vezes os outros são aqueles considerados «demasiado africanos», que não deixam porém de ter o seu valor, contrariando-se os binarismos42 categóricos coloniais. A representação da «africanidade» terá gerado diversas incorporações de estigmas, como mostrarei, mas também «espaços de resistência e de alguma liberdade», nomeadamente identitária, vivida muitas vezes nos segredos dos corpos. Estes seriam espaços secretos, onde encontraríamos muitas camadas de discursos praticados, nomeadamente as mais profundas, os tais «buracos negros» a que me refiro no inico deste capítulo, que não se entendem facilmente e que são mais ou menos velados, tal como os «hidden transcripts» de que Scott (1990) nos fala. O corpo, as práticas do corpo, podem ser vistos enquanto lugares onde se manifesta a repressão,bem como lugares de alguma liberdade, nomeadamente opositória43 a uma série de discursos, que vão além do binarismo e dicotomias eurocêntricas. Segundo Valverde (2000), a cosmologia – uma visão do mundo, uma visão do que é ser pessoa – pode ser observada no corpo, que esconde a ultrapassagem das divisões coloniais entre pessoas. A antropologia, seria, de algum modo e em última análise, a ciência que estuda as contradições, enquanto algo inerentemente humano (cf. Berliner et al, 2016: 1-27).

Autores como Harrison (2007), Eriksen (1993; 1998), Brubaker (2004) e Ortner (2006), chamam-nos a atenção para o facto de que, muitas vezes, ao estudar as perceções da diferença na construção de identidades sociais, o investigador adota as perceções da diferença na construção de identidades sociais, as próprias perspetivas dos interlocutores. O discurso do senso comum apresentar-se-ia por vezes, em termos primordialista e essencializador, pelo menos em determinadas camadas do mesmo. Como sugere Brubaker, torna-se importante distinguir o que pertence «[…] to our empirical data not to our analytical toolkit» (2004:9). Deste modo evita-se que, em determinadas investigações, as folk teories se tornem dados

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Tal como o «europeu» que tanto é valorizado como é considerado o «mais fraco de todos».

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adquiridos e realidades efetivas, contribuindo-se para o reforço de diferenças que não existem a não ser como perceções e vontades de afirmação de diferença, nomeadamente biológica e cultural (cf. Harrison, 2007:9). Nos estudos da etnicidade, o antropólogo deverá estar atento aos seus próprios aparatos conceptuais, aos aparatos concetuais nativos, e ao que seriam os próprios processos sociais (cf. Eriksen, 1993:16-17). Seria assim importante dar ênfase às categorias praticadas. Ortner alerta para a mesma «confusão», o que aconteceria, segundo esta autora, em muitos estudos sobre ´a classe` (2006:25, 70-71-72).

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