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CAPÍTULO 3 NO QUINTAL DE DONA ROSA: APRESENTAÇÕES E O QUOTIDIANO

4.15. Mais transversalidades: Curar-se «à moda da terra»

Num dia de Março de 2014, num dos almoços no quintal de Rosa, encontrei, como já referi, vários rapazes a tratarem da parte da frente do quintal: plantavam, retiravam o capim, aparavam a relva, sob orientação de Josefina. Rosa não se encontrava em casa, pois tinha ido «dar uma mão no Instituto Superior Politécnico», um biscate ocasional, como referiu a filha. Para o almoço estavam presentes Arlindo e José, sendo que este último tinha pernoitado na sua casa situada no final da rua de Rosa, o que não era habitual em 2014, uma vez que José se encontrava desempregado210 e já não residia na cidade. José estava a passar por dificuldades económicas, debilitado física e psicológicamente.211 Todos se mostravam preocupados com a sua saúde, inclusive Jean, o amigo francês, que o foi buscar mais tarde, levando-o para casa, uma vez que para além de amigos também eram vizinhos.

José tinha trazido, no dia anterior, umas plantas do seu terreno que ofereceu a Josefina para esta se tratar de uma constipação que teimava em não desaparecer: «já tomei os comprimidos. Agora estou a fazer o tratamento à moda da terra», explicou Josefina, na nossa ida ao banco, a

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Há 1 mês e meio, à altura.

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Ao almoço falou-se na necessidade deste consultar um médico devido à ansiedade que não o deixava dormer em condições, o que José fez. Nesse dia, José ficou a descansar na sala de Rosa, a recompor-se das noites não dormidas, assistindo televisão, dormindo, o que não era comum.

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seguir ao almoço. Esse tratamento tradicional também não resultou, como me explicou semanas depois, em entrevista: «fiz tratamentos da terra, tradicionais, tomar colher de óleo de palma ao deitar, aquecida na vela, morna. Fiz 3 dias. Depois passei a tomar chás que pessoas me arranjaram. Tomei micocó de campo, 3 dias. Mas não passou, fui de novo ao médico que me passou novos medicamentos […]. Entretanto já fiz suco de agrião, antes das refeições, não resultou, sumo laranja, pessoas aconselham mais chás, ontem comecei chá de coentro, à noite. E acho que a tosse hoje tem estado a atenuar. Mas tenho crises de tosse e o que realmente me tem ajudado nisso são os rebuçados de mentol! Entretanto alguém trouxe uma folha, uma igual ao que papá João – [cabo-verdiano que visitámos, que descreverei mais à frente] – arranjou, tem um cheiro bem forte […] talvez experimente à noite, alternando com o de coentro».

Como já referi, há uma grande valorização, por parte destas pessoas, dos conhecimentos sobre a natureza, os tratamentos tradicionais, sobre os produtos «da terra» usados na comida e em tratamentos específicos, oferecidos por José, por Arlindo, por vizinhos: «os vizinhos vêm-nos pedir, nós damos micocó, ou outra folha que precisem, pedem. E eu também, com a tosse, uma vizinha disse que tem coentro, e que dizem que é bom para a tosse, eu fui buscar na vizinha. Nós já tivemos coentro mas secou […] pessoas amigas, vêem que tou com esta tosse, vão dando conselhos e sugestões».

Jaf: «usas muito medicina tradicional?», perguntei.

Josefina: «não muito, mas neste momento tou um bocado aflita, para não tar sempre a tomar comprimidos, faço pausa e tomo coisas naturais».

Neste capítulo, demonstrei como a família «de sangue» tanto se pode constituir enquanto um lugar de reforço e de aposta na diferenciação étnica, como o seu oposto, havendo rejeição dos membros mais pobres,212 que poderão denegrir a imagem da própria pessoa e restantes membros da família. Haveria sempre pessoas e parentes «demasiado próximos, perigosamente próximos», de quem se quer distanciação (cf. Harrison, 2007:12).

Os membros considerados da «família» - de sangue ou não – teriam de provar ser, isto é, teriam de se comportar, ao nível dos percursos, dos estudos, do estilo de vida, do corte de cabelo, enquanto metáforas do estatuto, conforme o exigido tal como Rosa aprendeu em casa dos familiares mais bem posicionados da cidade. Demonstrei como a etnicidade pode ser contextual e relacional, sendo que uma mesma pessoa se apresenta de diversos modos conforme o «lugar», como vimos, por exemplo, com Gustavo na galeria de arte ou em contexto

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Ambas as realidades coexistem: o rejeitar-se o membro «mais fraco» da família e o reforçarem-se os laços familiares para reprodução de um estatuto étnico e socioeconómico. Como disse Arlindo «se não estudas deixas de fazer parte da família», mas se correspondes, reforça-se o fechamento - também - com base no «sangue».

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de fundão.213Descrevi também como uma pessoa pode reivindicar mais do que uma pertença

étnica, como faz Arlindo214 ou Fausta, mesmo e quando as categorias a que se referem se definem por contraste. Demonstrei reivindicações de pertença a estatutos mais valorizados tendo em conta referenciais identificatórios semelhantes, como por exemplo a «europeidade» e a forrosidade, entre pessoas de diferentes estatutos étnicos - cabo-verdianos de diferentes estatutos, angolanos de diferentes estatutos, forros de diferentes estatutos - o que corresponde à proposta teórica de Simon Harrison que definiu a etnicidade enquanto semelhança (ex.2007:2). Estas são categorias que encerram em si diferentes significados, por vezes ambíguos, o que aprofundarei. Exemplifiquei como as categoria étnicas se relacionam diretamente como o género e com a ´classe`, como observámos entre os forros jiquiti, considerados mais autênticos mas também mais «ruidosos» e «com manias». Exemplifiquei, na continuidade com outros capítulos, como o movimento através das fronteiras étnicas se relaciona diretamente com o posicionamento socioeconómico e ocupacional, havendo uma transferência de carácter de «classe» para a categoria étnica, mas não em termos absolutos, como também referi. É a análise da relação entre etnicidade e classe/estatuto, que permite entender a fundo a diluição temporária da identificação étnica e/ou de classe, entre outras, bem como o seu reforço. Descrevi diversas transversalidades entre pessoas de diferentes estatutos, como a ligação à terra, aos conhecimentos da terra e das plantas que curam o que os aproxima, por um lado, e que, por outro, contribui também para a reprodução de lugares estereotipados, como vimos, por exemplo, com os cabo-verdianos que tomam conta das roças e «ficam lá a vigiar» e mesmo com algumas ideias preconcebidas de Rosa e Josefina em relação a papá João e esposa, ideias que José discutirá abertamente no capítulo que se segue. Isto é, há um fino equilíbrio nas interdependências demonstradas, que se poderão transformar em capital social e cultural efetivo – recorde-se José, Mimi, Luisinho- não se limitando a ser dispositivos que continuam a remeter os protagonistas para lugares de subalternidade. No capítulo que se segue demonstrarei precisamente percursos e reivindicações de cabo-verdianos e descendentes, complexificando ainda mais os «lugares» de pertenças tendo em conta as suas vozes.

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Há momentos em que a pertença étnica é relevante, e outros em que não o é de todo: «só sou forro no fundão», como nos explica Gustavo.

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CAPÍTULO 5 – «PARA SAIR E NÃO VIVER MAIS ESCONDIDO»: PERCURSOS DE

CABO-VERDIANOS E DESCENDENTES; O CASO DE JOSÉ215

«Por um lado eu quero deixar de ser o que sou, ou não sei se ainda sou, ou se já sou mas de outro modo...porque agora já está mais fácil sair e deixar de ser o que se era» (itálicos meus).216

Neste capítulo reflito sobre as socialidades que ocorrem em diferentes lugares de interacção protagonizadas por antigos contratados de Cabo Verde e seus descendentes, já são-tomenses. Muitos procuraram deixar as antigas roças coloniais em busca de um «lugar na cidade, para sair e não viver mais escondido», segundo palavras de José, já apresentado,217registando-se um fluxo de migrações que ocorreu também noutras épocas. José simbolizava essa mobilidade, apesar de se considerar «uma excepção». Analiso o que é referenciado como fundamental para um percurso de ascensão social, como o ter-se uma casa na cidade, o que proporcionaria o acesso aos estudos, ao hospital, a outras atividades ocupacionais, ao alargar de redes de socialidades. Dou conta de percursos protagonizados por cabo-verdianos e descendentes de diferentes estatutos socioeconómicos e de gerações diferenciadas, reflectindo sobre os mesmos e a sua relação com as identificações evocadas, da cabo-verdianidade próxima da europeidade e de outros referenciais transnacionais, da são-tomensidade «de certa maneira», do ser-se «misturado», da identidade de trabalhador rural, a outros modos de se «ser do meio rural», entre outras identificações relacionadas com as reivindicações de direitos base, como o direito ao voto, à terra, entre outros explicitados. Dou assim continuidade à análise sobre as alianças em torno da terra e das suas resignificações, atentando em disputas em torno da mesma, exemplificada em afirmações como «cabo-verdianos estão a sair, a ganhar poder», como disse José. Analiso, como tenho vindo a fazer, a etnicidade em relação, demostrando como esta é definida em lugares como a casa de campo de José, as roças que com este visitei assim como outras, o quintal de Rosa, os arredores da cidade, a cidade, atentando em José mas também outros interlocutores como Faustino, um antigo capataz cabo-verdiano, o «pau de dois bicos», um senhor descendente de português e moçambicana, o cônsul de Cabo Verde, Bebiana, cabo- verdiana que aprendeu «outra» atividade com pessoas de estatuto angolar, Alberta, descendente de cabo-verdianos e esposa não oficial de um forro bem posicionado, entre outros. Observo processos de desetnicização, processos nos quais são evocados múltiplos referenciais étnicos e outros, bem como processos de etnicização - como na festa da cidade – e em contexto, com a

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Uma versão deste capítulo foi publicada em 2016 com o título «Cabo-Verdianos e São-tomenses de ascendência cabo-verdiana em São Tomé e Príncipe na atualidade: Uma abordagem etnográfica» inserido no livro A Diáspora

Cabo-Verdiana: Temas Em Debate, org. Iolanda Évora. Lisboa: ISEG-CEsA, 197-222.

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Sérgio Godinho «Pode alguém ser quem não é», álbum Pré-Histórias, 1972.

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valorização da cabo-verdianidade. Porém, trata-se de um quadro de socialidades bastante hierarquizado, como se pode constatar pelas histórias de discriminação que também apresento.

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